Lembranças marcadas

O dia estava quente, o carro deslizava suavemente pelo negro asfalto, conversávamos alegremente. Um grande portão de ferro anuncia a chegada no Hospital São Roque, em Piraquara, distante apenas alguns quilômetros de nossa capital. O lugar é estranhamente envolvente, as árvores deixam-se embalar pelos ventos e estendem suas sombras aos que ali se encontram.

Na estrada ao lado direito do Hospital está a Igreja desenhada em estilo moderno com belíssimas esculturas, um aviário circular, uma capela em forma de santuário, flores colorindo e embelezando ainda mais o ambiente. Logo na entrada alguns homens que pareciam nem nos notar.

Sem falar seguíamos atentos pelos corredores e quando víamos alguma porta aberta, dávamos uma rápida olhada e como hipnotizados continuávamos. Em algumas faces o sofrimento, noutras o abandono, noutras a resignação, porém em quase todas as marcas da hanseníase.

Após percorrer alguns corredores chegamos a uma ala onde encontravam-se algumas senhoras sentadas em cadeiras de rodas – algumas amarradas com um pedaço de pano – e pareciam tão cansadas. Mais um pouco – uma atendente passava enceradeira – e como meu amigo notasse que algumas das portas estavam com ferros, perguntou o motivo deles, a qual ela lhe deu a resposta:

- Antes, como não havia maneira de segurar aqueles que se debatiam em desespero, eram trancados nestes cubículos para que se acalmassem. Depois adotaram a camisa de força e como não havia mais necessidade deles, foram desmanchados para dar lugar a novas camas aos internados. Fiquei a pensar na penúria pela qual passavam – será que algum dia descobririam uma maneira de segurar um doente débil e furioso? A camisa de força substituindo a cela fria. O amor substituindo a camisa de força.

Um quarto, a figura de uma mulher morena clara, os seus olhos pareciam vagar pelo quarto. Percebemos um sorriso doce em sua face, conversamos com ela – nos mostra a perna que já não tinha, uma delas estava amputada – mostrou-nos um pequeno radinho de pilha, ligou...mas ele também parecia tão fraco. Palavras ocas... sem sentido. Na despedida um aperto de mão e algumas lágrimas que pareciam saltar de nossos olhos.

Outra porta aberta – atrás de uma escrivaninha a enfermeira – entramos e conversamos um pouco. Perguntamos- lhe que ala era aquela que estávamos... calmamente nos respondeu: - Vocês estão na ala psiquiátrica.

Em nossa pequena jornada seguíamos pelos corredores até que encontramos uma porta que dava para a saída, descemos alguns degraus e notamos um bonito campo de futebol, algumas casas ao redor, estávamos na colônia. Paramos em um daqueles barracões em forma de casa, conversamos com alguns homens que nos explicaram que cada lugar daqueles atendia dezoito pessoas, porém quando o hospital, estava cheio chegava a abrigar vinte e uma pessoas.

Entre um barracão e outro, diversas flores como se estivessem a cantar a liberdade da vida estuante de paz. As rosas eram lindas e enfeitavam ainda mais aquele lugar bendito onde a redenção das almas se dá com o auxílio das flores.

Mais adiante uma construção onde uma bandinha tocava alegremente. Lá chegando notamos a porta aberta e nos atrevemos a entrar. Ao fundo uma pintura dando a impressão de algumas construções da Grécia antiga, era o palco. À sua frente algumas cadeiras e logo na entrada alguns hansenianos que se misturavam com jovens. Instrumentos de sopro. Em muitos olhares a paz indescritível, um em uma cadeira de rodas, sentados à sua frente dois homens, ao lado uma mulher a tricotar, mais outros em pé.

Sopros desordenados, que pareciam querer afinar aqueles instrumentos... pararam... juntos iniciavam uma sinfonia envolvidos por um único maestro que não estava ali. Como por magia não havia uma só nota desafinada, a bandinha tocava “Cisne Branco”. Novamente estávamos envolvidos por uma estranha vontade de chorar. Eles pareciam dizer na melodia imortal:

- Estamos vivos ! Estamos aqui !

Qualquer palavra naquele instante quebraria o encanto. Muitas vezes segurava-me ao máximo para não deixar que as lágrimas tomassem conta de meus olhos. A Música terminou, todos aplaudiram sinceros. Olhei ao meu amigo – tal qual a mim – com os olhos inundados de lágrimas sem que ali elas estivessem.

Fiquei muito tempo a pensar: - Nosso sofrimento se torna tão pequeno, tal qual uma pequena gota de orvalho, diante das grossas lágrimas que banham o rosto alheio.

Apesar dos tempos idos ainda guardo estas lembranças em meu coração.

Publicado no NOTIFISCO- Jornal do Sindicato dos Auditores fiscais da Receita do Estado do Paraná - Abril/Maio/90 (página 33)