GIL GOMES LHES DIZ...
Hoje pela manhã tive o desprazer de ter que acordar cedo e assistir a uma palestra na OAB de São Paulo.
Sábado de manhã, sobre improbidade administrativa, ninguém merece.
Isso se deve ao fato de ter que acumular umas malditas horas de atividades complementares para concluir o meu bacharelado em direito. Já não me bastava ter que ouvir as lorotas dos professores, tenho que ouvir esses babacas da OAB.
Mas o que não faço por um diploma?
E lá estávamos nós, na rua o sol, as moças bonitas a desfilar e mostrar suas belas pernas, nós lá de paletó e gravata ouvindo. Sentadinhos, bem comportadinhos, passivos, simples coadjuvantes desse teatro imenso chamado vida. Estava eu lá.
Contudo, paguei o ingresso do filme açucarado. Agora vou chorar. Vou ouvir o que esse boçal tem a dizer sobre a improbidade administrativa.
Nisso, chega o palestrante. Sob as formalidades sempre onipresentes nestes eventos de doutores, coisas que eu particularmente dispenso.
O camarada era jovem. Nenhum fio de cabelo branco na cabeça. Cheio de gás e energia, pegou um microfone sem fio e, contrariando o comum, ficou em pé, foi para frente da mesa e começou a falar.
Ao começar seu discurso, o doutor não percebeu que o volume de sua gritaria estava bem acima do normal. Muito acima mesmo, chegava a incomodar e muito, a ferir os nossos ouvidos. E o tonto nem notava a papagaiada que estava aprontando.
Nisso, ainda bem, o operador da câmera deve ter notado as caretas do pessoal e disfarçadamente entrou numa porta e nos fez o enorme favor de abaixar o volume do microfone do retardado que não percebia que estava gritando e irritando a todos.
Abençoado homem da câmera! Devo minha saúde auditiva a ele!
Mas o jovem doutor era muito empolgado. Coisa de jovem e babaca. Gesticulava muito, andava muito, falava bem, devo confessar, mas seus trejeitos não deixavam que prestássemos atenção no que ele falava.
E não é que logo de início percebi uma coisa bem familiar.
Bem familiar mesmo. Lembrei-me das manhãs no colo do meu pai, comendo pão com ovo e tomates fritos, na década de 1970. Meu pai trabalhava à noite e chegava em casa pela manhã; invariavelmente ouvia o tenebroso Gil Gomes.
Lembram-se dele?
Gil Gomes era ou ainda é, nem sei se está vivo, um repórter policial que narrava no rádio casos policiais e crimes escabrosos com uma dramatização ímpar.
O camarada da palestra, o doutor, falava igualzinho ao Gil Gomes, simplesmente, se eu fechasse os olhos poderia me ver naquelas manhãs daquela década chumbosa.
Os silêncios, as dramatizações, o tom da voz, o falar devagar e o retornar falando bem depressa e de forma desesperadora; quem se lembra do Gil Gomes falando vai entender do que falo.
Nisso, ele começava a falar sobre Thomas Hobbes e aquela velha ideia do Leviatã e tal. Olhei para a pessoa ao meu lado e disse:
- Olhe, o cara é o Gil Gomes!
A pessoa disse:
- Ah! Obrigada.
Então olhei para a folha na qual esta pessoa escrevia e vi lá:
Thomas Gomes.
Pensei comigo que às vezes uma grande eloqüência gera ruídos na comunicação e que Gil Gomes e Thomas Hobbes podem ser a mesma pessoa.
Fiquei feliz porque me recordei de minha infância e acumulei as horas das atividades complementares que tanto preciso.
O que o palestrante disse?
Não sei. Não consegui prestar atenção. Vou ter que ver em algum livro o que é a tal improbidade administrativa.
PS. Ah, querido leitor e querida leitora, isso é uma crônica, como já devem ter notado, e não um artigo. Caprichos de escritor.