Escritores da Liberdade
Dia desses, ao rever o ótimo filme "Escritores da Liberdade" ("Freedom Writers", do título original em inglês), não houve como eu não traçar um paralelo com a questão polêmica da pena de morte.
Explico: parte dos que se postam contrários à adoção da "pena capital" no Brasil emprega, entre outros, o argumento de que nosso sistema prisional está falido, e que, por essa razão, é incapaz de "educar" o apenado, para que quando ele deixar a prisão possa se reintegrar ao convívio social, recuperado e em condições de exercer sua cidadania, ainda que o crime que cometera no passado tenha sido dos mais graves. Nesse contexto, a pena de morte seria meramente uma saída "providencial" para compensar as deficiências do nosso sistema prisional, resolvendo, de tabela, a questão econômica, haja vista o elevado custo para se manter um preso em nossas penitenciárias.
O paralelo que mencionei (guardadas as devidas proporções) diz respeito à falência do nosso sistema educacional em algumas situações, como a que serve de cenário no filme. O status quo representado pela alta direção da escola defende a continuidade do que vem sendo praticado pela via do modelo tradicional, que se mostra ineficaz quando se trata de alunos indiferentes ao propósito da escola "eminentemente ensinante", e que simplesmente rotula de "sem-futuro" seus alunos-problema. Nessa linha, os professores se acomodam e acabam se limitando a ministrar as mesmas aulas de sempre, que praticamente em nada são absorvidas pelos alunos; e os problemas continuam, assim, sem solução, já que a escola falha exatamente naquele que deveria ser o seu papel primordial, que é bem educar e ajudar a formar cidadãos de caráter, pessoas de bem.
Quando a escola falha, os alunos-problema simplesmente acabam tendo decretada sua "pena de morte" no "submundo" em que (sobre)vivem. Uma espécie de "seleção natural" forjada pela incompetência e omissão - da família desestruturada e da escola que, no caso, se omite.
Problemas sociais, familiares e raciais são visíveis em cada um daqueles alunos, todos na faixa dos 15 aos 17 anos, ainda adolescentes, portanto. A intolerância com as "diferenças" é marcante, e o sentimento reinante no grupo é o de "vítimas do sistema", já que se sentem oprimidos e marginalizados, inclusive perante a escola, incapaz de enxergá-los "por dentro", de motivá-los.
A professora novata entra em cena armada com seu idealismo verdadeiro, e abraça a causa, o desafio que se lhe apresenta, abrindo mão de sua vida particular, inclusive, o que lhe traz problemas de relacionamento com seu pai e seu marido. Chega a custear material escolar com seu próprio dinheiro, vendo-se obrigada a partir para mais dois empregos. Mas não se intimida com a diretora da escola, que não a vê com bons olhos, e percebe que o dito método tradicional em absoluto não funciona com aquela turma – isso já nas primeiras aulas, quando não encontra nenhum eco nos alunos, chegando a se ver sozinha na sala-de-aula, falando para as carteiras e paredes.
Com muito tato, ela logo percebe que o que falta naquele grupo é uma oportunidade de reflexão sobre suas próprias situações pessoais, de questionamento íntimo acerca das raízes de seus problemas de relacionamento na escola e fora dela. Então, ela parte para dinâmicas não convencionais, estimula os alunos a ingressarem no mundo mágico da leitura; mais ainda, os convence a escrever sobre suas próprias histórias de vida, oportunizando-lhes virem a enxergar os seus próprios equívocos de pensamento e de conduta. Pouco a pouco, ela vai fazendo com que eles se deem conta de que são muito mais do que meros figurantes descartáveis na sociedade em que (sobre)vivem, já que têm os mesmos direitos constitucionais de todas as outras pessoas, e que para exercê-los dispõem de uma arma poderosa que nada mais é que a via da educação, do conhecimento.
Eis que o golpe de misericórdia sobre o status quo reinante na escola vem com outra ideia inovadora da professora Erin, que leva seus alunos a ver de perto o "mundo exterior", além dos muros a eles impostos desde que nasceram, pelas gangues que dominam o bairro. Leva-os a visitar um museu do holocausto, onde travam contato com uma realidade do passado até parecida com a sua em alguns aspectos, mas numa escala infinitamente superior. Eles são levados também a um inusitado jantar, onde finalmente, talvez pela primeira vez na vida, se sentem "incluídos" e podem ouvir sobreviventes daquele cruel genocídio relatar suas histórias, seus dramas. Diante daquele cenário, fazem uma espécie de mea culpa, e, a partir de um mergulho interior, começam a desatar os nós que os mantinham presos à sua vida tida como sem futuro até então.
Escrevendo sobre si mesmos, sobre suas trajetórias, seus sonhos e pesadelos, e traçando um inevitável paralelo com os personagens do holocausto nazista, eternizados no livro "Diário de Anne Frank" - que tiveram a feliz oportunidade de ler graças a sua professora, agora querida e respeitada -, cada um daqueles alunos se apercebem de seus erros de postura moral e social. São levados por si mesmos a reformular muitos de seus conceitos éticos, e a ver que seu sentimento, sua postura de "vítimas reativas" era na verdade um grande equívoco, já que eles próprios, no fundo eram os verdadeiros responsáveis por suas escolhas e atos de exclusão que a si mesmos findavam por impor.
A velhinha que lhes faz uma visita quase ao final do filme, que no passado abrigara e protegera Anne Frank, e que despertou nos alunos uma suprema admiração (um deles dirige-se a ela e diz que jamais estivera diante de uma heroína), resume tudo ao dizer que eles, os alunos, é que eram os verdadeiros herois de suas próprias vidas.
Um belo e contundente filme, enfim, baseado numa história real, e por isso mesmo denso e pleno de significado, que mostra que os problemas de desigualdade e exclusão social, desestruturação familiar e racismo existem, sim, e de fato originam muitos traumas entre os jovens ainda em formação, mas a solução, a saída, está em cada um de nós, em como vemos a sociedade em que vivemos, em como vemos a nós mesmos e aos nossos semelhantes, nesse contexto. Um filme obrigatório para os profissionais da educação, da psicologia, do Direito... pois sua temática permeia por todas essas disciplinas, levando a refletir sobre a necessidade do aprimoramento dos métodos educacionais em muitos aspectos, já que a educação deficiente está na base de todos os problemas sociais.