TRAUMA, DEPRESSÃO E ORGULHO FERIDO

A pensar no seu Guilherme (Hilel Silberfarb), o personagem do meu livro, Os Meninos da Guerra, que morreu com setenta e quatro anos a pouco menos de um mês, ponderava eu sobre os traumas que acometem os jovens da atualidade levando-os frequentemente aos psicólogos e pondo pais e mães, julgados como violentos até por palmadas e xingamentos, na prisão, sendo que o controle do Estado sobre as pessoas cresce de tal forma que em pouco tempo os pais não poderão nem mais ensinar aos filhos o que os visinho não concordarem.

Sem maiores detalhes, seu Guilherme sofreu muita violência na infância, especialmente entre os três e meio e os dez anos de idade, pois suportou toda segunda guerra mundial como um pequeno judeu na Polônia. E veio saber só quatro anos depois que fim levou e de que forma cruel foram exterminados seu irmãozinho de um ano e meio, as duas irmãs quase juvenis, a mãe, a avó e muitos outros amados familiares trucidados pelos fuzis dos nazistas e ucranianos. Isto ele soube depois de ter estado num campo de concentração onde os amiguinhos que ele fazia num dia desapareciam no outro, onde também assistia pela janela de um pavilhão seus patrícios judeus sendo fuzilados a beira das valas. Isso ele soube também depois de ter sobrevivido a um incêndio, tiros de fuzil em várias partes do corpo, estilhaços de granadas, corridões armados; depois de ter suportado mais de um mês sob um assoalho onde mal conseguia sentar-se, depois de ter sobrevivido ao tifo e a tuberculose sem atendimento médico e depois de passar muita fome. Entretanto, nada disso serviu para torná-lo incapaz, dependente da ajuda alheia, de tratamentos psicológicos e do Estado, como essas pessoas de agora que usam as experiências ruins como desculpa para fazerem somente e tudo o que querem, usando drogas, alcoolizando-se, desrespeitando os pais, roubando-lhes em casa, agredindo-os física e moralmente e rebelando-se contra a moral e os bons costumes, além de explorar os outros.

Todos esses que dormem pelas calçadas têm um histórico de traumas para justificar suas atitudes. E não só eles, mas também os usuários de álcool e drogas, os desviados sexualmente, os bizarros e também os delinqüentes. Em geral são incompreendidos e os culpados, em via de regra, são seus pais. Em regra a incompreensão de seus pais está em não permitir-lhes fazer tudo o que bem entendem. E quando eles começam a interagir com a sociedade e ela também lhes impõe limites, logo manifestam-se como incompreendidos também pela sociedade, pelo que de pressa protestam seu descontentamento através da agressão moral e física a si mesmos e a família, bem como contra a sociedade. Alguns partem para o crime ilegal, outros para o uso de drogas, para o comportamento e aparência mutilada e bizarra, e outros mais partem para a deturpação sexual, uma das formas mais agressivas de cuspir nos conceitos morais dos pais e da sociedade tradicional.

Em contrapartida, praticamente todos os que andam sobre os pés também possuem históricos ruins (ou o que usualmente se chama de traumas), como no caso do seu Guilherme que, ao contrário de postar-se de gosma vegetativa, apesar das dores que sofreu e suportou na infância e adolescência, tinha força emocional para trabalhar e prosperar, criar seus filhos e, além disso, ajudar os outros a superar seus negativismos, pois sempre tinha um conselho de ânimo e dispunha de sorrisos para curar os corações.

E assim são milhares os exemplos, como é o caso do Nestor Morais, personagem do meu segundo livro, Os Sonhos Não Conhecem Obstáculos. Dificilmente alguém apanhou mais do que esse menino. E não somente do seu pai, que domou sua rebeldia com o coração e o sinto, mas também dos outros meninos aos quais ele provocava e enfrentava por ser extremamente insolente e pretender inconscientemente responsabilizá-los por sua progressiva perda motora. Entretanto, apesar de quase vegetativo, nem mesmo aceitou esmolas de quem dele se compadeceu equivocadamente. Ao contrário, privou-se de muitas regalias e prazeres passageiros para prosperar e transportar-se para acima dos preconceitos, tornando-se bem-feitor de pessoas que usufruem de perfeitas condições físicas, as quais servem em sua empresa. E não só dessas, mas também de muitos portadores de deficiência física. Sendo assim, filhos que reclamam das correções que recebem de seus pais são rebeldes.

Levei muito tempo para compreender o que diferencia estes traumatizados daqueles. Antes, porém, tive que perder meu irmão para as drogas, sendo que ele era um que, embora filho dos mesmos pais, tendo vivido da mesma forma, freqüentado a mesma escola, a mesma igreja e ganhado sempre roupas iguais e tudo o mais que exigia, apegava-se aos mesmos sofrimentos pelo que passamos para justificar o uso de drogas e os erros de nosso pai ele utilizava para extorquir-lhe dinheiro.

Convém observar que os mesmos acontecimentos do passado que para ele eram motivos de revolta, para mim não significavam nada. As denúncias sobre os erros do nosso pai anteriores ou posteriores a nossa existência mudavam-lhe o sentido da vida ao passo que para mim nada mais eram do que constatações infelizes que nem tinham porque ser lembradas. Ao passo que, como filho dos mesmos pais separados, eu era como um náufrago que ao chegar a praia só quer voltar para casa para retomar a rotina indo trabalhar no dia seguinte, meu irmão se portava como quem aproveita o naufrágio para desculpar os seus fracassos e cobrar a indenização pelas coisas que deixou de fazer por sua falta de empenho. Na verdade eu não compreendia porque tanta disparidade entre nossos conceitos de justiça, coerência e igualdade; por que o que parecia justo para mim não era para ele; porque eu entendia que as pessoas não tinham obrigação para comigo e se me fizessem um favor, mesmo que mínimo, eu me sentia obrigado a gratidão, mas ele, ao contrário, achava que aos outros cabia servi-lo e se lhe fizessem um grande favor, mesmo por iniciativa própria, mas falhassem num só detalhe, tinham falhado com todos seus compromissos para com ele por toda a vida. Muitas vezes, porém, quando lhe convinha, nossas visões se harmonizavam.

Precisei viver muitos anos mais a observar as pessoas, ler livros de auto-ajuda e psicologia, estudar a história, conhecer melhor a Bíblia, conviver e ver tantas visões díspares da minha, bem como outras tantas semelhantes as dele para ver as semelhanças e diferenças gerais entre os indivíduos traumatizados do primeiro grupo e os do segundo, entendendo também o que é e o que dizem que trauma. E, vendo os rumos que nossa sociedade toma, observando as leis contraditórias que têm sido e estão para ser aprovadas por nossos legisladores e governantes, vendo como cresce a rebeldia contra a sociedade tradicional, contra os padrões morais, a ética e os bons costumes, especialmente contra a religião cristã fundamental, percebo que todo aquele comportamento do meu irmão refletia as mudanças que estão acontecendo em nosso mundo, o crescente aumento do egocentrismo, o crescimento vertiginoso do egoísmo afunilando a visão das pessoas para um prisma intra-uterino, levando-as a comportar-se no oceano de indivíduos como se estivessem acima dos demais e os outros estivessem a seu serviço, sem que isso lhes acarrete algum compromisso com o sentimento e necessidades desses serviçais.

O que há poucos anos se dizia das crianças que dominavam seus pais, manifesta-se nos adultos da agora, pois a população do mundo quase que maciçamente transforma-se em pequenos ditadores e tiranos adultos, manifestando cada um suas exigências da forma que melhor lhes convém – uns drogando-se, outros alcoolizando-se, alguns se prostituindo das formas mais bizarras e outros cometendo crimes ou impondo sua vontade sobre os demais na forma de leis que são o reflexo de uma população composta por indivíduos voltados unicamente para dento de si mesmos e magistrados que passam por cima de seus próprios princípios de justiça para fazer cumprir leis contraditórias contra pais e mães que ainda lutam para proteger seus filhos e famílias da crescente onda de deturpação e vulgarização do mundo.

Precisou, porém, o seu Guilherme morrer para que eu pudesse finalmente responder minhas perguntas sobre os traumas que acometem uma geração que cresceu tomando banho com sabonete da Mônica, comendo Danoninho, usando fraldas descartáveis, indo para escola com mochila de rodinhas, celular no bolso e assistindo aulas ministradas por professores infinitamente mais bem preparados, etc..

Que razões têm eles para traumas tão avassaladores, se, em comparação com uma e duas gerações anteriores, sua infância e adolescência foram infinitamente mais fáceis, sendo que cresceram servidos de mordomias? Entretanto, esses que foram criados com tantas regalias são os que (dizem) têm muito mais traumas do que as gerações anteriores, que muito mais motivos tem (na visão dos psicólogos freudianos) para ter traumas, entretanto, muito poucos os têm.

Numa definição popular, traumas são marcas na alma, são lembranças na parte pensante e funcional do cérebro. São como sulcos sobre uma superfície lisa. Se a alma fosse uma superfície, os traumas seriam afundados, como rodas de carreta sobre a terra macia. Os traumas são gravações como os sulcos dos discos de vinil, que podem conter informações alegres e tristes, pessimistas e positivas, de medo ou confiança. E todas as gravações são traumas, pois provocam afundamentos imaginários na alma. E é por isto e só por isto que nos lembramos das experiências e aprendizados. E lembramos muito mais das coisas que mais nos marcaram, sendo que as lembranças mais marcadas são as boas lembranças.

Nenhuma lembrança, porém, tem o poder de por si permanecer em evidência. Assim como na parte física do corpo, o cérebro pode apagar boas e más lembranças, que são sobrepostas por novas experiências, fazendo que as antigas percam a importância e cicatrizem. Mas se ficamos a relembrá-las, vivenciamo-las, reforçando o vínculo. Então a marca se aprofunda, fazendo as lembranças cada vez mais evidentes, tornado as marcas mais sensíveis e as lembranças não desaparecem jamais.

Entretanto, todas as lembranças são úteis em tudo, pois o cérebro reúne todos os elementos de todas as lembranças conscientes e inconsciente para montar as respostas a cada situação. E as lembranças ruins também desempenham papel importante, moderando as ações, nos levando a prevenir erros e a tomar precauções para com as novas ações.

Se formos justos, por um lado diremos que traumas não existem, que tudo é aprendizado, e, por outro, que todo aprendizado é traumático, pois aprender é sempre uma forma de contradição das convicções pessoais e antigas, da maneira de viver viciada e das vontades pessoais, pois impõe novos limites, novas exigências e estabelece maiores, desassossegando os indivíduos e o desassossego é traumático. Ninguém gosta do desassossego, a não ser os hiperativos, para quem a hiperatividade é sossego, porque é uma forma de desviarem a atenção dos maus pressentimentos. Somente os orgulhosos não aprendem, pois não se submetem a humilhação de aceitar que não sabem tudo, não se sujeitando aos traumas do aprendizado.

É bem verdade que muitas pessoas por mais que lutem contra o medo não conseguem dar um passo sobre uma ponte pênsil, olhar da janela de um andar mais alto, etc.. Esse medo incontrolável deriva de um trauma, de uma âncora ruim relacionada. Todavia, ninguém é obrigado a permanecer submisso a ele. As pessoas são dotadas de inteligência e senso de investigação para examinar, se informar, conhecer e distinguir entre a ponte segura e a perigosa, entre uma cobra venenosa e um cordeiro, entre o que é agressivo e o inofensivo. Sendo assim, após ter passado o perigo traumático que plantou a âncora ruim, examina-se as pontes, experimentando-as cautelosamente e, ao constar a segurança, em pouco tempo o medo irá se dissipando e, por fim, a lembrança ruim será completamente suprimida. Mas para isso é preciso desvencilhar-se do preconceito traumático. A pessoa jamais perceberá a diferença por mais que lhe seja explicado se mantiver a mente focada no medo e o preconceito por ele estabelecido. E manteria a mente focada no medo por parecer-lhe o meio mais fácil de resolver o problema sem ter que expor-se ao que teme. Trata-se de comodismo ou covardia.

É verdade que o medo é uma forma de auto-proteção. A auto-piedade humana nos impede de enfrentar o que nos amedronta. E auto-piedade excessiva resulta de auto-estima exagerada, preciosismo próprio. O medroso não se importa de ser chamado de rato e entregar-se ao desânimo, preferindo deixar que outra pessoa enfrente o problema em seu lugar, pois tal pessoa pode ser devorada enquanto o medroso foge, pois não é tão importante para ele quanto ele mesmo.

Convém lembrar que manter-se com medo é uma forma de se estar sempre as voltas com o que amedronta, fazendo muitas voltas na cidade em busca de terra firme, pois o Dr. Victor Frankl diz que o que mais se teme é justamente o que se atraí.

Fracassos pessoais também resultam em traumas, pois a pessoa fracassada vê-se obrigada a admitir a derrota, aceitar que não é infalível, como exige que os outros sejam, e tem que descer do pedestal e admitir humildemente que é igual aos outros. Mas a tendência natural do ser humano humilhado é exaltar-se e exaltando-se será sempre mais dolorida aceitação da derrota, o que inibirá no indivíduo o tentar novamente e assim ele entrará num círculo vicioso entre o relembrar e desejar os tempos de glória e o medo de sofrer novas derrotas. A essa sua frustração e falta de coragem decorrente se chamará trauma, mas nada mais é do que auto-piedade pelo orgulho ferido.

Todos os humanos passam por traumas emocionais e durante a vida muitos outros traumas sofrem. Todavia, nenhum trauma tem poder para desabilitar e imobilizar alguém, apenas a auto-piedade da pessoa pode, pois, se passamos pela boca de um leão, se vivemos alguma experiência ruim, essa nada mais é do que um belo treinamento para se enfrentar a vida. E estando agora do lado de fora da jaula, distante também daquele terrível acontecimento perdido no tempo, porque temê-los, se sabemos que não podem mais nos atingir?

Os acontecimentos ruins traumatizam as pessoas por sua falta de disposição, sua pouca vontade de sair do cômodo, mas esses acontecimentos as forçam a saída. Não que lhes traumatizem. As pessoas simplesmente se apegam aos acontecimentos ruins como desculpa para permanecerem acomodadas. É sabido, porém, que o melhor navegador é aquele acostumado com as piores tempestades, as mais assustadoras. Em geral os antigos navegadores, embora lutassem para manter seus navios inteiros em meio ao mar revolto, nem mesmo acreditavam que conseguiriam. Certamente que ao entrar no mar duvidavam que saíssem. Entretanto, para conseguir emprego, requeria que no currículo constasse larga experiência em tempestades. E por seus motivos particulares, eles entravam no mar embora sabendo que certamente enfrentariam as tempestades mais assustadoras e provavelmente não sairiam delas.

Finalmente, trauma nada mais é do que um apego a própria auto-piedade, a pena de si mesmo por causa do orgulho ferido proveniente de um auto-conceito muito elevado. Trata-se de cultivar a ferida mantendo-se merecedor da misericórdia alheia. Trauma é uma espécie de mimo, de dengo, de misericórdia própria desenfreada buscando atrair para si a piedade dos outros.

É claro que muitas crianças sofrem coisas ruís que as traumatizam. Entretanto, para manter-se ancorado nesses traumas somente através do cultivo e reviver sistemático do acontecimento passado; através do lembrá-lo e remoê-lo com pena de si mesmo. Se não fosse esse apego a auto-piedade de cada um, ninguém levaria a debilidade de um acontecimento ruim para a idade adulta. Ao contrário, todos usariam suas más experiências como ferramentas para enfrentar a vida e as surpresas que ela apresenta. Entretanto, os traumatizados do primeiro grupo se mostram inúteis, completamente aniquilados por seus traumas, sem a menor competência para enfrentá-los, mas cheios de forças e disposição para enfrentar as pessoas que os censuram na tentativa de levá-los a uma reação sobre si mesmos.

Por que se tornou crime até mesmo o xingar uma criança, por que dizem que isso traumatiza, se traumas são o aprendizado humano desde o parto e fracassos precisam inclusive fazer parte de nosso currículo? Não se pode nem mesmo censurar uma criança, permitindo-lhe a ilusão de que pode tudo. Sim, é verdade que o pode entre aqueles que a amam e que por um pouco tolerarão suas atitudes soberbas e destrutivas. Entretanto, a sociedade, para a qual a educação a está preparando, não tolerará nada e a fulminará pela força das leis, sem a menor misericórdia e remorso no primeiro delito. Tolos são esses filhos rebeldes que denunciam seus pais por impor-lhes limites e castigá-los, pois põem-se a mercê do Estado, onde serão criados por pessoas estranhas que não demonstram afeição nem mesmo em troca de seus salários.

A diferença entre os traumatizados do primeiro grupo e os do segundo reside no ponto de interesse de cada indivíduo. Os traumatizados que evocam traumas para livrarem-se das circunstâncias não intereçantes, bem como dos limites impostos por seus pais e a sociedade, não são sinceros, pois os traumas que alegam não são traumas, mas limitações naturais impostas também para os do segundo grupo. Todavia, os do primeiro não querem se submeter a ser limitados pelos padrões convencionais, pois desejam fazer livremente o que bem entendem, sem sofrer qualquer conseqüência por suas más escolhas. Entretanto, para os traumatizados do segundo grupo, os traumas nada mais são do que experiências educativas.

O grau de depressão e pessimismo dos indivíduos é proporcional a dor moral que sofrem. Poderíamos chamar a depressão de auto-piedade e pessimismo exacerbado, tendenciosa pena de si mesmo. Entretanto, não seria justo generalizar, pois a depressão de alguém poderia derivar de uma insidiosa doença. Ainda assim, seria pena de si mesmo e pessimismo, pois a origem da depressão está no não aceitar a doença ou a situação de privação ou sofrimento, limitação, etc., que nos desagrada. A Logoterapia do Dr. Vitor Frankl estabelece a busca de sentido como meio de aceitar situações difíceis e lembranças ruins sem sentir-se vítima das circunstâncias, sem sofrer pena de si mesmo e não deprimir-se por achar-se tão importante ao ponto de presumir que todas as forças do universo conspiram contra nós. Entretanto, a logoterapia não funciona em muitas pessoas, especialmente nos traumatizados do primeiro grupo, porque seu preciosismo é tão grande ao ponto de eles se acharem muito bons para sacrificarem-se pelo que quer que seja. Para a soberba dos imperadores não importa se há sentido para suportar algo. Eles não se sacrificam por nada. Sacrificar os outros parece-lhes mais fácil, por isto eles não se importam de agir rebeldemente, pisando e cuspindo nas convicções de seus pais e familiares. Não se sofrem em fazer algo por si mesmos, pagar o preço da felicidade real, da vida plena que os “caretas” têm e eles desejam, mas trocam por suas vontades satisfeitas, por seus impulsos, por seus desejos alucinados.

Sendo assim, é evidente que a auto-piedade deriva do orgulho individual e a dor que a pessoa sente é relativa ao grau da piedade que sente por si mesma, que é relativa ao conceito que tem de si, o preço com que se auto avalia.

Os traumatizados do primeiro grupo, os que manifestam sua depressão através da rebeldia, das drogas, do vestir-se agressivamente, do mutilar-se, do sexo distorcido, da insolência contra seus pais e familiares, contra a sociedade, etc., querem mesmo é ter desculpas para manterem-se na inatividade, vegetativos, dependentes das circunstâncias para obter felicidade. Se assumirem que os traumas que alegam nada mais são do que limitações as suas vontades egoístas estarão admitindo que não têm desculpa para suas atitudes. Então ver-se-ão obrigados a abandonar a aparência de coitados e suas máscaras serão postas por terra. Entretanto, sua maneira de ser é sua obra prima, portadora de sua marca pessoal e por essa sua personalidade eles se dispõe a quebrar os corações dos seus pais, parentes e amigos, enfrentá-los e forçá-los a embarcar no barco a deriva dos rebeldes sem causa.

Isto tudo deriva de auto-estima extremamente elevada, exacerbada ao nível da soberba de preciosos imperadores. A depressão nada mais é do que lamentar as ofensas sofridas, que estão relacionadas com a profundidade da humilhação que se sofreu. Em regra a humilhação causada pela agressão de qualquer tipo ou rejeição dói infinitamente mais do que a dor na carne. Uma dondoca chama um arranhão de amputação, enquanto um homem muito rico chama esmola de extorsão. Tudo depende do grau de preciosismo com que a pessoa se auto-avalia.

O grau de dor dessas ofensas depende do tamanho das feridas por elas causadas, sendo que o tamanho das feridas resultantes das ofensas sempre são relativos a sensibilidade do ofendido. Ou seja, dependem do ponto de vista individual do que é dor e suas graduações. E isto está intimamente ligado ao preço que a pessoa atribui a si mesma.

Não é errado ter auto-estima. Todos a temos e precisamos dela para nos mantermos. Sem ela estaríamos fadados ao pessimismo completo. Entretanto, o que parece baixo-estima, muitas vezes não é. Entendi que não existe baixa-estima, mas somente alta, pois mesmo o desleixo é uma manifestação de egocentrismo, de orgulho, de rebeldia. Alguém que deixa o serviço da roça para ir à uma revenda de automóveis comprar um carro zero quilômetro à vista trajando chapéu de palha, roupas desfiadas, fedendo a esterco e calçando tamancas, ao contrário do que parece, não é humilde, mas um orgulhoso querendo mostrar-se e chocar os demais, pois nenhum ser humano é tão simplório ao ponto de não saber pôr as coisas no seu devido lugar, porque desde pequeno tomou banho e pôs a melhor roupa para os eventos importantes, como ir à missa, por exemplo.

A auto-estima ideal oscila entre a compreensão de que somos criados a imagem e semelhança de Deus, podendo até refletir Sua luz, e a certeza de que não somos maiores ou mais importantes do que os outros seres humanos. Com essa consciência, não nos veremos tão altos (ou tão caros aos nossos olhos) para nos sentirmos muito rebaixados por toda atitude alheia. E, como não nos sentiremos tão humilhados, porque não somos tão exaltados, não sentiremos tanta dor. E quanto menos preciosos nos acharmos aos nossos olhos, mais capacidade teremos de compreender e tolerar as falhas dos outros ao ponto de as avaliarmos como insignificantes e nesse ponto nada mais nos poderá fazer sofrer.

A auto-estima ideal não é aquela que nega seus erros para manter a reputação, tampouco é a que admite os erros como quem diz “eu sou assim e é isso aí; têm que me aceitar assim”. A auto-estima ideal é aquela que admite suas falhas, mostrando-se triste por elas. Mas não ao ponto de desprezar-se a si mesmo e invocar-se punição. Essa também é uma forma de orgulho. A auto-estima ideal reconhece suas falhas, mostra arrependimento por elas e deseja desfazê-las ou compensá-las. Esta é a auto-estima de pessoas que sabem quanto valor têm por serem a imagem e semelhança de Deus, porém nada mais são do que seus semelhantes. E essas pessoas não podem entrar em depressão porque o preço que têm por si é igual ao que têm pelos demais e sabem que todos sofreram de alguma forma, pouco ou muito. Logo, essas pessoas não acham que são tão importantes ao ponto de os outros e tudo conspirar contra elas. E como tais pessoas não mais super-avaliam as ofensas alheias, ofensas que não são ofensas jamais terão importância para elas, chegando ao ponto de até mesmo as ofensas verdadeiras não poderem as atingir. Em outras palavras, porque seus olhos pararam de girar em torno de si mesmas, essas pessoas pararam de girar em torno do que os outros ou as circunstâncias lhe fazem, mas passaram a dar importância para os acertos dos outro em vez de para os seus erros, pelo que o bem passou a ser o centro de suas vidas e não o mal.

Pessoas assim não se apegam a traumas, não valorizam as ofensas e os erros, mas o bem que lhe fazem. Por isto não têm motivos para rebeldia, pois o que elas desejam, o prazer que buscam e tudo o que fazem é o que todos podem desejar, desfrutar e fazer; porque não almejam exclusividade e tampouco ser melhor que os outros. Sendo assim, podem viver em harmonia e jamais obrigar os outros por constrangimento a aceitar sua maneira de ser, porque são como todos os outros, satisfazendo-se com a vida simplesmente bela como ela é.

Por fim, concluímos que trauma e depressão nada mais são do que sintomas de orgulho ferido. E isto Freud explica, mas só complica ensinando as pessoas a olharem para dentro de si e não reprimirem seus impulsos. Imagine o mundo assim. O único que descomplica é o psicólogo Jesus Cristo, Mestre na arte de bem viver com todos, que diz que “dos humildes é o Reino dos Céus,”, porque "bem-aventurados são os mansos de espírito, pois herdarão a terra (...)". – Mateus 5.

Não existe humilhação capaz de humilhar um humilde, tampouco alguém poderá tirar do eixo um manso de espírito. E, com humildade e mansidão, algumas pessoas herdarão tudo o que os soberbos exigiram, mas perderão por sua incapacidade de valorizar seus semelhantes e as pequenas coisas.

Wilson do Amaral

Autor de Os Meninos da Guerra e Os Sonhos não Conhecem Obstáculos.