DR. JOHN SNOW E O CÓLERA

Ao volume 21 no. 7 de julho/agosto/92 da Revista Inglesa “Indexo on Censorship”, os editores anexaram um encarte sobre o valor da discordância para a sociedade. Como exemplo da utilidade e necessidade da discordância relatam o que ocorreu com o Dr. John Snow (1813-1858), quando este cientista pesquisava as causas e a disseminação da epidemia do cólera no mundo.

De fato, reconhecer o valor da discordância é valorizar a tolerância. E o grau de tolerância reflete a saúde de qualquer sociedade, bem como seu potencial de progresso. Muitos escritores, jornalistas e comunicadores sociais, em geral, já demonstraram a importância em questionar e discordar das autoridades do Estado. E isto é muito natural, pois a liberdade de expressão, frequentemente, é cerceada por aqueles que exercem o poder. Este fato não significa que todos os governos são repressivos, e que, por isto, todos os atos da oposição devam ser legitimados. As dificuldades para o livre intercâmbio das ideias não provêm unicamente dos governantes. Existem também outras fontes de censura: grupos sociais e políticos, preconceitos coletivos e individuais. Os governantes, muitas vezes, conseguem cercear a liberdade de comunicação porque possuem o aval ou a conivência de grande parte dos cidadãos. O certo é que qualquer intolerância, provenha donde provier, é prejudicial à sociedade, e merece ser repudiada.

Vejamos como a divergência do Dr. Snow, em relação às opiniões vigentes sobre o cólera, salvou a milhares de londrinos no século XIX, e permitiu maior prevenção contra a epidemia do vibrião colérico dali por diante.

O Dr. John Snow pode ser considerado um dos pioneiros da epidemiologia. A sua maior contribuição para a ciência e a humanidade foi a descoberta da principal forma de disseminação do mal colérico, que assolava cidades inteiras da Europa e da Ásia. Com a descoberta do Dr. Snow tornou-se possível combater com eficiência os surtos do cólera por todo o mundo.

As ideias inovadoras do Dr. Snow, durante muito tempo, foram rejeitadas. Tanto a área médica como as autoridades eclesiásticas de Londres encaravam com ceticismo as explicações de Snow. Diante disto o Dr. Snow é considerado um exemplo de como as ideias inovadoras, muitas vezes, encontram inúmeros obstáculos, mesmo sendo extremamente úteis à sociedade. Um colega e amigo de Snow, Sir Benjamin Ward, descreveu as descobertas de Snow, em relação ao cólera, resumidamente, como segue.

Em 1848 o Dr. Snow, embora tivesse muitas ocupações, interessou-se vivamente em descobrir as causas e a forma de propagação da epidemia do cólera. Raciocinou que o “veneno” do cólera deveria ser um tóxico assimilado através da alimentação, e não algum fluido que se inalasse pelo ar. Se fosse por inalação, o sangue deveria ser o primeiro a se intoxicar, o que geraria sintomas gerais que precederiam os sintomas locais. Mas, no caso do cólera, os primeiros sintomas se manifestavam no aparelho digestivo. Os sintomas gerais eram consequência destes sintomas locais. A conclusão de Snow foi de que o tóxico do cólera entrava no aparelho digestivo pela boca. Uma série de considerações o levaram a concluir que a água era o veículo principal de contaminação, mas não o único meio de transmissão. Os excrementos do paciente também estariam contaminados com o veneno. A estas conclusões o Dr. Snow chegou em 1848, mas, por causa de algumas dúvidas, só as publicou em 1849.

Nos anos seguintes o cientista prosseguiu com sua pesquisa e a intensificou com o grande surto epidêmico de 1854 em Londres. Empenhou-se com altos custos pessoais e riscos. Onde quer que o cólera se manifestasse, ali estava o Dr. Snow, tentando confirmar suas intuições. A ocasião para a confirmação surgiu com os dados estatísticos do surto de 1854. Entre os casos fatais do cólera, neste ano, 286 haviam ocorrido no distrito sul de Londres, abastecido por duas companhias de água. Uma, a Southwark & Vauxhall, fornecia água misturada com resíduos fecais de Londres; a outra, a Lambeth, fornecia água pura. A proporção de casos fatais em cada 10.000 residências abastecidas pela Southwark era de 71, e nas abastecidas pela Lambeth de 5. Mas houve ainda um outro fato que despertou a atenção do Dr. Snow. Em agosto de 1854 eclodira um terrível surto de cólera nas vizinhanças da Broad Street, Golden Square (próximo ao Piccadilly Circus, no centro de Londres). Em apenas 10 dias ocorreram mais de 500 casos fatais. O Dr. Snow imediatamente se interessou por mais este surto. O Conselho Paroquial de St. James se reuniu em solene assembleia para discutir as causas desta epidemia. Havia o perigo de um pânico geral entre a população, como se tinha notícia de 1664/65, quando o cólera matara em Londres 70.000 pessoas, dum total de 400.000 habitantes, e a população fugira em pânico.

O Dr. Snow solicitou, humildemente, ser ouvido pelo conciliábulo. Descobrira que a fonte central da calamidade se localizava na bomba de elevação da água na Broad Street. Por isto aconselhava a remoção desta bomba. Os conselheiros se mostraram céticos, mas tiveram o bom senso de seguir o conselho do Dr. Snow. A bomba foi desativada e o surto contido.

Benjamin Ward comenta que as intuições do Dr. Snow foram totalmente originais, pois conseguiu provar que o “veneno” do cólera se alojava nas vias gástricas, e entrava no corpo pelo sistema alimentar. Estabeleceu também a relação entre o fornecimento de água impura e a epidemia.

O Dr. Snow, embora vivendo na Era Vitoriana, tornou-se um símbolo de médico e cientista que, através de suas qualidades de imaginação, perseverança e coragem de expressar as suas próprias opiniões, publicou e defendeu o que achava honesto e verdadeiro, mesmo ante o ceticismo dos colegas e das autoridades.

Realmente, para discordar do poder é preciso coragem. Mas esta coragem é louvável e necessária. Também hoje. Especialmente neste momento do “lulismo” personalístico e alienante da história brasileira.

Inácio Strieder é professor de filosofia – Recife/PE