CASO BRUNO; SUCESSÃO DE ERROS
O artigo não é meu, entretanto, por concordar com o seu teor, por ter uma opinião semelhante e acreditar que é um artigo de opinião lúcido, resolvi publicá-lo.
O autor é um professor de medicina legal da Universidade Federal de Santa Catarina. O nome dele está no final.
Parabéns ao Dr. Sami.
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Está se falando demais em uma vítima de homicídio e um assassino, como se isso fosse fato “dado e passado”, como se dizia antigamente. Mas revisemos os fatos:
1) O goleiro tinha uma amante, dentre outras;
2) Essa amante engravidou;
3) Lá pelas tantas, ela acusou ele de tê-la agredido, para que fizesse um aborto. Essa alegação jamais foi investigada adequadamente, portanto dela nada se pode extrair;
4) Mais adiante, ela informou que iria viajar com ele (ou para encontra-lo) e desapareceu;
5) O filho de ambos apareceu com a esposa do goleiro;
6) Apareceu um sobrinho do goleiro contando uma história escabrosa, sobre um estrangulamento, esquartejamento e alimento para cães num sítio. O Goleiro não estaria junto. Depois a história mudou e ela teria sido levada para outro lugar e a esposa do Goleiro estava junto. Mas agora voltamos ao sítio, onde apareceu um colchão com sangue. Mas... e os cães???
Portanto, até agora não há cadáver, nem restos de cadáver, nem corpo de delito. A não ser que se queira considerar “corpo de delito” a história mal-contada pelo menor, no que parece uma extorsão ou uma vingança familiar (até já apareceu um irmão do goleiro que era gari, e não recebia ajuda do irmão, para “provar” que ele é mau mesmo).
A prova testemunhal não é conhecida como “prostituta das provas” à toa. Nem sei pq continua sendo chamada de “prova” hoje em dia. Em 1850 ainda podia ser, mas hoje? Aliás, me pergunto: se essa é a prostituta das provas, como se chamaria uma sistema de justiça sustentado principalmente sobre ela? Depois ficam ofendidos quando se fala em reconhecer o oficio e dar às prostitutas a proteção do Estado!
De fato, não se sabe se a Samúdio está viva ou morta, apenas que está desaparecida e há um suspeito perfeito, de ocasião, que até já tinha feito, entre outras, a besteira de dizer que batia em mulher. Pronto! Agora é só jogar a lógica, a inteligência e o bom-senso fora e... voilá: temos um assassino perfeito!!! Parece coisa de filme B.
O absurdo de tudo isso é que a investigação sobre o paradeiro (viva ou morta) da Samúdio cessou, e agora se trata de achar provas da culpa do goleiro. Ora, são coisas absolutamente diferentes e, no contexto de linchamento pela mídia ao qual ele está sendo submetido, o sangue no colchão, que pode ser de sexo durante a menstruação da desaparecida, vai virar prova de que ele a matou. Ou seja, uma evidência circunstancial de um fato vai virar prova de culpa de outro fato, com base num (pré)julgamento que já ocorreu.
Poucas coisas fazem sumir um corpo sem deixar vestígios. E dar para os cães comer não é uma delas. Se isso fosse verdade, o canil estaria cheio de DNA humano, pois os bichanos não comem em pratos, com talheres, laváveis em máquina de lavar (aliás, aquele detergente alcalino é ótimo para sumir com restos biológicos e DNA). Estou na dúvida sobre a “incompetência” da investigação de achar vestígios, pois me pergunto com que cara ficaria a polícia, que já perdeu um mês no pé do goleiro, se ela achar provas de que estava no caminho errado. Será que viriam a público??? O mais provável é que não, e aí “azar do goleiro”.
Prezados, este é um grupo de educação em direitos humanos! Aqui devemos ter claro que a arbitrariedade pode vir travestida de farda verde ou de manchete de jornal, mas sempre será arbitrariedade. As pessoas são inocentes até que se prove o contrário e não podem e não devem ser submetidas ao linchamento, por quem quer que seja, e isso é um princípio do respeito aos direitos humanos. Não é uma regrinha de ocasião, para aplicarmos aos amigos e esquecermos na frente daqueles de quem não gostamos.
O que está sendo feito com o goleiro não é diferente daqueles apedrejamentos até a morte (lapidação) aplicados como pena de morte em certos países da áfrica e no Irã que tanto deixam nossos sensíveis espíritos ocidentais chocados. Depois de ser moralmente linchado, ele ainda vai enfrentar a massa carcerária, insuflada de ódio, onde receberá o resto da vingança social. Talvez eu preferisse a lapidação.
E o mais absurdo de tudo isso é que gera um círculo vicioso de uma estupidez assustadora: ele é julgado e condenado sumariamente pela mídia e pela opinião pública è uma porcaria de investigação produz provas de má qualidade, que não provam nada em relação ao fato imputado è o cara vai a júri popular em tempo recorde, para que ninguém esqueça do que já foi dito sobre ele è acaba condenado, e aí se ouve dizer: “viu como era ele o culpado, tanto que acabou condenado”. Isso é o que chamo de “efeito cartomante”: criar condições para a realização da própria profecia.
Que insânia é esse que cega até os olhos de defensores dos direitos humanos? Ou estamos a sustentar a tese dos “direitos humanos para humanos direitos”, entre os quais aquele “negro, vileiro, bagaceiro, fazedor de orgias, poligâmico e, pior, rico e famoso” não se enquadra???
Ao invés de ficar alimentando esse ciclo de arbitrariedades deveríamos estar nos perguntando:
1) Pq a alegação de violência não foi devidamente investigada;
2) Pq a juíza concluiu que não havia “vínculo de afeto” entre um cara e sua amante, de quem ela estava grávida. E pq a juíza interpretou que precisava do raio de “vinculo de afeto” para aplicar uma lei criada justamente para proteger pessoas como a Samúdio? Se não estava convencida de que ocorrera violência, deveria ter dito isso em sua decisão.
3) Pq até agora a investigação não apresentou nenhuma prova da morte da Samúdio e parece estar andando em círculos, ao redor de um menor semi-analfabeto e um ex-policial com fama de matador? Se não posso provar que alguém está morto, como posso ter um assassino?
4) Que mídia é essa que pode linchar as pessoas até concretizar sua própria profecia sem que nada lhe aconteça? Isso é a tão festejada “liberdade de imprensa” da democracia?
5) Como é que a polícia brasileira consegue indicar quem indiciará já no primeiro dia do IP, até mesmo antes de estar concluída a necropsia? Se eles tem bola de cristal, para que inquérito, testemunhas, perícia, papel, papel, papel...? O genial delegado que investiga o atropelamento da professora por um motociclista em PoA concluiu que “era óbvio que ele estava em alta velocidade, pois se não estivesse, ela não teria morrido”! Cara... eu já ouvi muita asneira na minha vida, mas essa vai destruir a vida de alguém, para vingar a morte de outro alguém e satisfazer o grande ego do delega.
6) E, para mim, a maior de todas as perguntas: QUE TIPO DE POLÍCIA QUEREMOS NUM PAÍS DEMOCRÁTIO? UMA QUE INVESTIGA CRIME COM QUALIDADE E QUE INVESTIGA PARA PRENDER OU UMA QUE DECIDE QUEM É CULPADO, PRENDE PRÁ INVESTIGAR E PASSA O RESTO DO TEMPO TRABALHANDO PARA PROVAR QUE O CARA FEZ AQUILO E, PORTANTO, QUE ELA, POLÍCIA, SEMPRE TEVE RAZÃO???
Eu sei qual o tipo de liberdade de imprensa e qual tipo polícia quero para mim, para meus filhos, para a Samúdio e para o goleiro Bruno. E não é nenhum desses que estão aí sobrevoando essa carniça, cujo fedor está a incomodar minha consciência.
Se o cara matou mesmo, mas não houver provas da morte ou da prática do crime, que seja liberado. Esse é o sistema de justiça que escolhemos, e não é uma questão de oportunidade do MP, da polícia ou da Record. Que invistam mais no treinamento dos policiais e na qualificação da perícia (escrevi um artigo sobre isso que está disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13795).
E se nada disso funcionar, lembrem da sabedoria do Millôr:
“O que nos absolve do crime não é o juiz nem a sociedade. É nossa habilidade em não deixar vestígios”.
Dr. Sami A. R. J. El Jundi, MD, MSc
Assessor Técnico da Diretoria do GHC
Forensic Advisor & Risk Analyst