Sobre o fim da família como a conhecemos
No filme “Mulan”, personagem baseado numa história chinesa – 36ª grande obra-prima de animação produzida pela Walt Disney – uma garota da China medieval resolve se disfarçar de homem e substituir o pai, velho e doente, nas frentes de batalhas que todo homem honrado deve estar disposto a enfrentar pelo bem de seu país.
Caso perdida a honra, tal perda arruinará a família até a última geração de seus membros. Como o pai de Mulan não tem filhos, para manter a honra de sua família ele se dispõe a lutar, e então, depois de provar à investigadora casamenteira que não serve como uma boa esposa, Mulan dá uma de filho macho e foge pra guerra em lugar do pai a enfrentar a fúria e a ambição dos hunos, guerreiros selvagens que invadem a China com violência - embora aquela um tanto ligth que a pudica filosofia de trabalho da Disney produz em seus assépticos filmes.
Muitos detalhes da história são dignos de comentário à parte – como a referência ao estereótipo “pequeno igual a fraco”, superado no que conseguem conquistar na trama as personagens de Mulan e de Mushu, o dragão tamanho econômico que corre em seu auxílio acompanhado por um grilo da sorte.
Neste vou centrar as atenções num único ponto do filme que, como nos diz sempre um amigo, tem pano pras mangas ao desenvolvimento de textos de estudantes fundamentais, quando bem orientados por professores de artes em exercícios de interdisciplinaridades.
Ao serem despertados a saber sobre as ameaças que pairam sobre a honra da família, um das ancestrais de Mulan, que inicia uma cômica discussão sobre tendências de outros membros da família, reclama que ela sempre foi uma encrenqueira, enquanto outro observa: “ela puxou isso do SEU lado da família”.
No fim, quando Mulan conquista todas as honras – e na “desprezível condição de mulher”, honras maiores que a de qualquer homem na China – aquele que inicialmente a recusa como um membro de "seu lado da família" passa a considerá-la herdeira do que há de melhor apenas do lado da sua.
Entre os textos publicados no Recanto das Letras, penso já ter falado sobre os muitos influentes complementos que atenções às produções da Disney me proporcionaram à observação de determinados valores a minha formação pessoal e profissional. Como acontece também ainda agora - e mais, estando a Disney associada aos magos da PIXAR, herdeiros do legado de boa vontade, imaginação, espírito de equipe e competência técnica de seu fundador, Walt Disney.
Em seus filmes – muitos produzidos a partir de outras grandes clássicos da História e da Literatura – a Walt Disney sempre procurou prezar em seus argumentos pelo estímulo à amizade, a coragem, a honra, a justiça, ao amor como fundamento de suas tentativas de fazerem crer as crianças e, mais, de fazer adultos TORNAR A CRER em suas capacidades de sonhar com um futuro melhor e de serem melhores do que são. E até certo ponto tal ambição tem sua realização posta em evidência nos resultados de cada nova produção daqueles artistas que, criadores do boneco personagem astronauta Buzz Ligthyear (da saga “Toy Store”), acreditam poder ir “ao infinito e além”.
Entre nossas realizações mais difíceis, entretanto, embora tenhamos já conquistado um bom bocado de nossas capacidades humanóides, está aquela que diz respeito ao estabelecimento das condições ideais ao exercício de relações cada vez mais caracteristicamente humanas. E graças também a outras histórias educativas, contadas pelas artes que nos legaram o estímulo a valores como os que mencionei existir no filme “Mulan”.
No caso das considerações a relações familiares, o filme referenda o tipo de pensamento que rola entre membros de famílias a denunciar os muitos preconceitos sobreviventes que, ainda hoje, fundamentam as relações em família. Depois que filósofos cientistas e, antes deles, os santos nos descobriram essencialmente todos irmãos filhos da Vida – embora, como em toda família, pareçamos ser constituídos por “espíritos” tão diferentes – não deveríamos mais estar brigando uns com os outros pela posse de objetos ou por pedaços desta Terra que, como nos lembra Klaatu, personagem de Keano Reeves no filme “O dia em que a Terra parou”, não nos pertence, embora pertença à natureza dos corpos que nos possibilitam estar aqui presentes.
Depois de vivências e leituras, há muito avalio minhas relações familiares fora dos padrões de vivências das famílias tradicionais, hoje em franca extinção. Porém, a pioneira desestrutura de meu núcleo familiar aconteceu nos idos anos de 1960, por decorrência das vivências de meus pais nos primeiros anos da era da liberdade de expressão e das revoluções femininas.
A despeito das conquistas dos movimentos de emancipação feminina e dos direitos dos homossexuais, o estereotipo do machão ainda domina o inconsciente e/ou consciente coletivo dos "homens", o que nos leva a ter reações violentas indesejáveis contra as mulheres e homossexuais, além de uns contra os outros. Nesta perspectiva, ainda agora somos nós, os machos pré-sapiens, que nos sentimos os grandes responsáveis pela conquista da maior parte das condições que, por muito tempo, poderá manter o bem-estar daquela que adotamos como "nossa" família. Historicamente, sabemos que foi justa e injustamente em nome de sua manutenção que travamos as lutas que desfizeram os laços de nossa fundamental família planetária, laços que, agora, buscamos reatar a fim de que o temido "fim da História do Homem" jamais ocorra.
O fato é que, depois de minha boa infância, muitas perdas e outras filosofices, passei a viver minhas relações com a Vida na plena consciência a absoluta dependência de todos de Seus poderes de nos manter vivos, e então entendo melhor o que diz o filósofo francês Edgar Morin sobre suas dificuldades de, em enfrentamentos culturais, aceitar fazer parte de um partido em detrimento de outro. Porque outra coisa não é a família como a conhecemos senão o primeiro partido, célula das razões de todos os movimentos sociais, mãe e pai de todas as coisas boas e mazelas que deles derivam.
Em avaliações sobre a importância e influências da famílias como a conhecemos, a despeito das críticas que fazem determinado grupo de cristãos aos poderes conquistados pelas treze famílias de “privilegiados iluminatis" mais poderosas do mundo, vejo paradoxalmente em muitos cristãos a mesma ambição quando focam suas atenções à tentativas de resgatar núcleos familiares perdidos e, se possível, manter os núcleos que ajuda a unir, até que a morte os separe.
Entre os que andavam com Jesus, contudo, se ouviu dizer que ele considerava membro de sua família “qualquer um” que fizesse a vontade do Pai dele. A despeito de que ainda haja aí certa tendência exclusivista – mesmo que “o Pai dele” seja essencial e inevitavelmente também o nosso, ainda que muitos O rejeitem – com seu discurso integralista, Jesus abrira novas perspectivas de considerações familiares aos separatistas de seu tempo, para o desgosto daquela família de judeus que o criara como filho, a qual pensava tê-lo ajudado a entender melhor o lugar e sua importância no mundo.
Eles não contavam que, com o desenvolvimento da infinita perspectiva da terra ao céu que haviam estimulado Jesus a desenvolver, ele fosse desprezar suas riquezas e reconhecer os valores que diziam respeito ao seu ser apenas em “outro mundo” por vir, mundo que, como acreditam muitos, provavelmente é esta mesma Terra onde agora estamos, situada no futuro; ou seja, em nosso tempo.
Para Jesus em seu tempo, portanto, depois de tudo o que descobriu sobre si mesmo e sobre suas experiências com a Vida, seria impossível contar com a participação de todos a desenvolver um reinado de relações fundamentalmente celestiais na Terra. Porque tal seria possível somente se todos já se sentissem não apenas “partes uns dos outros”, mas UNS NOS OUTROS, a despeito das investidas da morte, numa ligação essencialmente indissolúvel com o que Jesus descobriu ser a grande força dessa Vida eterna que tudo sustenta.
Para certos crentes de boas vontades, assim deverá ser a natureza e as relações daqueles escolhidos a habitar a velha Terra num futuro, hoje, bem mais próximo.
Quando estabelecido o reinado das forças do Céu na Terra, prometido pelo avatar Jesus Cristo, já não haverá choro e ranger de dentes sobre este mundo – talvez porque, como também acreditou o escritor e filósofo inglês Aldous Huxley em seu livro “Admirável Mundo Novo”, não haverá a determinação de que qualquer um tenha que ser exclusivamente a representação de nosso Pai, mãe, filho ou irmão.
Finalmente, para a tranquilidade dos herdeiros de Mulan, será o fim das famílias como as formáramos, graças a ressurreição da consciência da irmandade universal entre todos os filhos da Vida.
Que assim seja.