Entre a lei e a ordem. Por uma polícia pedagógica
O debate sobre a emenda à Constituição que torna obrigatório o título de bacharel em direito para oficiais de carreira da Polícia Militar de Minas Gerais tem esquentado os meios policial e político. Há tempos já se sabe que as polícias de alguns estados da federação exigem tal diploma, o que na verdade, não se sabe é se adiantou alguma coisa. O curso de bacharel em direito para oficiais, entretanto, não passa de falácia, de uma guinada em favor de melhores salários ou ganho de campo no jogo contra a Polícia Civil que tem seus delegados formados neste curso.
Não vou discutir a eficácia da medida, tampouco porque ela em si, provavelmente, não vai mudar nada. Neste sentido, minha análise é somente para tatear esse campo repleto de interesses difusos e que, por vezes, é melhor olhar de longe, pois tal como se diz na polícia, “a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco”, “muxiba não deve se meter a ser bola de futebol” e “rio com piranha, jacaré nada de costa”.
Em tempos de “jabulani”, vale tecer pelo menos alguns comentários. Em primeiro, não é possível que depois de tantos avanços na política de segurança pública apareça uma proposta tão sem lugar como esta. A polícia por definição é a força legítima do Estado que atua na discricionariedade. Talvez seja esta uma das mais interessantes artes da polícia. Atuar no “improviso”, na “moral”, no “espírito do momento”, na liberdade de agenda, na “hora” e no “depois”. Trata-se de um poder não mensurável, de um saber técnico que tem por sustentáculo a experiência e a legitimidade estatal. Aprende-se a ser polícia na prática e não na teoria. Logo, é um retrocesso achar que os policiais formados em direito, mesmo os oficiais, vão utilizar o Código Penal, a Constituição, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ou mesmo o Estatuto do Idoso para resolver algum problema. Até porque, já e de conhecimento público que dificilmente vamos ver um coronel dentro de uma viatura em momentos de ação.
Em segundo, a PEC 59/2010 (em pauta para votação em primeiro turno na Assembleia Legislativa) peca em outro sentido. Nada contra o curso de direito, até porque há anos frequento as salas de aula de graduação e pós-graduação e tenho a ciência de como os estudantes são formados, mas seria bom a instituição e as autoridades, por exemplo, sugerirem o curso superior em pedagogia, em psicologia ou mesmo em antropologia. Mais de uma vez já disse que a maioria das ações que a polícia faz é de cunho social, um trabalho terapêutico que tenta cuidar de um consciente e inconsciente coletivo, por ver vezes, em anomia. Certa feita, um policial experiente afirmou que “a polícia trabalha como um curativo, haja vista que o Estado não sabe lidar com a vacina”. Estou longe de erro em salientar que já temos uma organização com muitas dificuldades em atuar como tal e, formados ou não em curso de direito, ainda vamos lidar com curativos esperando a vacina do Estado o qual não se preocupa com a causa das doenças e sim com os sintomas e consequências. Acrescenta-se neste tópico a questão do controle dos sintomas, pois se eles ainda não mataram o corpo social é porque ele se mantém vivo independentemente dos remédios oferecidos pelo campo jurídico. Os indivíduos optam pela ordem e não pela constante sensação de perigo, desconfiança e custo. Logo, apostar em um curso que, por definição, se apega ao campo normativo, ainda mais em tempos de “técnica jurídica” em detrimento da jurisprudência, é perigoso. Teríamos, no limite, oficiais em busca de delitos que, guardadas às devidas proporções, não são produtores de desordem, tampouco contrários à justiça que, no Brasil, é privilégio dos estamentos mais abastados e atrelados ao Estado.
Em terceiro, é preciso apontar para a necessidade de quem irá vigiar os futuros “doutores” fardados. A Polícia Civil, de uma forma ou de outra, ainda serve como um poder regulador da Polícia Militar. Até hoje sabemos que elas não falam a mesma língua e não é problema caminhar institucionalmente na diferença. Falar diferentes línguas é saudável para relações de tolerância, respeito e diversidade. No meio jurídico é conhecido os conchavos, os corporativismos e o tecido relacional (para lembrar Roberto DaMatta e Roberto Kant de Lima) que atuam em defesa de recursos, privilégios e distinções. A cultura brasileira, em micro-relações nas subculturas organizacionais se reveste de novo perfil e o resultado pode ser dramático e complicado. Por outro lado, seria interessante delegados e oficiais discutindo os imperativos da lei em um mundo sedento por justiça e paz.
Em quarto, é forçoso argumentar que não é preciso ser bacharel em direito para ser polícia, principalmente uma polícia ostensiva que tem por função a manutenção da ordem e da paz. O poder de justiça está no judiciário e a Polícia Militar, como força armada do executivo não tem porque misturar atribuições. Na verdade, isso nem é preciso, pois a Polícia Militar está mais aparelhada que a Polícia Civil. Ela tem um maior contingente, faz dobradinha com os bombeiros e está avançada no uso de tecnologias e mobilização social. O que falta à Polícia Militar é justamente um curso superior de pedagogia ou de serviço social. Imaginem policiais pedagogos, responsáveis por levar “segurança social” e não somente a famosa segurança objetiva e subjetiva à sociedade. Imaginem policiais críticos e capazes de educar as crianças, os adolescentes e jovens. Pensemos policiais treinados em lidar com adultos recalcitrantes e mulheres apavoradas pelo marido violento e espancador. Certamente teríamos policiais educadores, generosos, com compaixão, sede de justiça, capacitados em defender os oprimidos e capazes de defender o cidadão não somente das forças hostis dos que estão longe da lei, mas da ação penal e dura do Estado de Direito, forjado na hierarquia, colonização, machismo e autoritarismo. Em democracias a função da polícia, inclusive da “polícia comunitária”, é pedagógica e não jurídica ou militar. Os estados que levaram este projeto a contento (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Piauí e Distrito Federal), não aparecem como exemplo. Se existe o interesse em agregar valor à profissão seria adequado à polícia mineira exigir cursos superiores capazes de lidar com a negociação, com a proximidade, com a educação, crítica e “segurança social” dos cidadãos. Obviamente, tais atributos não de uso exclusivo do curso de direito (o qual, historicamente, carrega certas distinções neste país) e estão presentes na psicologia, geografia, história, sociologia, pedagogia, economia, comunicação...
Finalmente, é impossível deixar de mencionar a perigosa armadura jurídica que pode estar crescendo na instituição. À deriva e longe de debates com a sociedade ela me parece refém ou cúmplice de um estado penal. Refiro-me à busca incansável do Estado pelos já conhecidos suspeitos, os quais andam de lá para cá no mundo das drogas ou nas zonas quentes de criminalidade. O movimento institucional me lembra a ideologia “Lei & Ordem” que criou fama na política criminal dos Estados Unidos da América. Sob a roupagem da igualdade e da liberdade a política em apreço tratou de limpar a cidade com a justificativa ideológica da punição da mendicância, da prostituição e da juventude transviada. Neste caminho, estamos a um passo para marcar - novamente - a ferro e fogo a população pobre, negra e sem direitos que vegeta historicamente nesse país. Apostar na política da lei e na judicialização da polícia que tampouco deveria ser militar é alimentar uma ideologia que, por lógica, é punitiva e segregadora. Mais que isso, é justificar no imperativo da lei o que já se percebe no dia a dia e talvez criminalizar, punir e prender aqueles que, por ingenuidade, desconhecimento, azar, ignorância e diferença estiveram sempre distantes dos órgãos da justiça.