COTAS; SOMOS TODOS IGUAIS

Você chegou um dia trazido na marra.

Estava bem, lá no teu canto, mas te amarraram e te trouxeram contra tua vontade.

E nem digo como você foi trazido, nem digo...

Em meio aos ratos do porão do navio, em meio às fezes e à urina de mais tantos outros iguais a você. Imagino o cheiro daquelas embarcações em que tu vieste!

A viagem demorava meses, muitos dos seus companheiros não resistiam e ficavam no meio do mar mesmo, jogados para servir de alimentos às feras marinhas.

Eu sei, você não queria, é verdade, de jeito nenhum queria, mas te trouxeram à força. Você nunca pediu para ninguém para vir para cá, mas te trouxeram, contra tua vontade, te trouxeram.

Aqui, um estranho numa terra estranha, você, sobrevivente da barbárie, chegou nessa imensa mata. Parecida com sua casa, mas não era sua casa, era sim um lugar estranho, bem estranho.

E finalmente chegamos, vamos fazer uma festa?

Não! Responderam-te prontamente.

Colocaram uma enxada na tua mão e, quando largavas a enxada, pegava na foice e assim, de enxada e foice nas mãos, foi passando suas horas na lavoura de cana-de-açúcar.

Naquelas plantações imensas que você cultivava para alimentar os lucros astronômicos daqueles que te trouxeram na marra.

Muitos dos seus companheiros não agüentaram esse estado de coisas.

Morreram de tristeza, chamavam-na de banzo, assassinados ao tentar fugir, pereceram por açoites extremamente violentos, por doenças novas...

Você via seus parentes e companheiros caírem ao seu lado, um a um, e você, forte, sempre a resistir.

Você até fugiu para o mato e guerreou contra seu inimigo, o que contraria sua fama de manso.

Eu sei e você sabe que alguns pensam que você foi manso ou tolo. Mas, na verdade, você resistiu, e muito. Houve companheiros teus que até se mataram em busca de liberdade.

Liberdade. Haverá coisa mais importante do que a liberdade?

Eu sei, todos sabemos, um dia, depois de séculos, você foi oficialmente libertado. Não por bondade do libertador, que isso fique bem claro, mas porque você já não servia mais.

Então, te disseram um belo dia: Estás livre agora. Vire-se!

Trouxeram outros para trabalhar em teu lugar numa política deliberada de tentar de todas as formas mantê-lo distante, o mais afastado possível.

Para eles tu não eras gente. Ficaste nos morros, nas malocas, nos cortiços e nada foi feito para ajudá-lo em sua nova fase.

Agora era você por você mesmo, sozinho no mundo com a vida para ganhar, mas com as portas todas fechadas. Ninguém o queria por perto.

Fizeram contigo o mesmo que alguém faria com um filho que ao completar a maioridade o pai lhe dissesse: Tome aqui suas coisas, filho, você agora pode me esquecer, daqui para frente você vai ter que se virar sem mim. Vá com Deus!

E foi assim que aconteceu.

Um século se passou. Você sempre, sempre, sempre na marginalidade. Sempre, quando leio as piores estatísticas nos jornais e os piores índices, lá está você.

Figurando como ator principal quando o assunto é pobreza, marginalização e tudo o que for ruim.

Mas, você é forte, bem forte. Não desiste de lutar, nunca desiste.

Vai à luta e consegue, após muito brigar, umas vaguinhas mirradas na universidade, umas poucas vaguinhas.

Finalmente depois de séculos você, pela primeira vez, vai à universidade.

Que vitória especial, que vitória!

Mas, alguns de seus compatriotas se sentem injustiçados. Na verdade ameaçados, pois você agora come uma parte do bolo que sempre foi abocanhada por eles e somente por eles.

Então aqueles que sempre te oprimiram, olham para você na universidade e te dizem:

- Ei, o que você está fazendo aqui?

- Você não pode entrar aqui desta forma! Isso é uma injustiça conosco!

- Afinal de contas somos todos iguais, não somos?

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 23/06/2010
Código do texto: T2335871
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