Meu ouvido, definitivamente, não é penico nem está aqui pra ser alugado, faz favor!
É manhã de sábado.
E aquela certa rua comercial na Baixa Asa Norte, cujo comércio prima pela informática e que normalmente amanhece relativamente tranquila, é invadida súbita e insistentemente por um barulho que não pede licença, invade. Usurpa o seu direito de ficar sossegado em sua quitinete ou escritório ou loja ou mesmo em algum bloco da quadra residencial.
Uma certa moradora e trabalhadora do local resolveu fazer uma pesquisa entre os habitantes e trabalhadores da área e obteve os seguintes depoimentos, entre outros que, basicamente, dizem as mesmas coisas.
Na sala 206 do bloco A da *** norte, transformada em quitinete há muitos anos, tendo abrigado em diversas épocas escritórios, moradia de estudantes, de jovens casais, de prostitutas, de separados de ambos os sexos, de bêbados rejeitados-porém-sustentados pela família, os atuais moradores levam um susto tremendo, todos os três -- neném, mãe e pai -- com o barulho absurdamente excessivo e impositivo que de uma hora pra outra explodira em pleno ar, à toda sua volta, fazendo com o que o bebezinho, que tinha acabado de dormir depois de uma manhã difícil com cólicas e mal estar, preocupando e atarefando os pais, acordasse muito assustado e, depois de um breve período de pânico e respiração suspensa, abrira um berreiro maior que o de mais cedo -- o que comprova que som muito alto e invasivo causa mais sofrimento que uma cólica.
A senhora que habita a quitinete de número 212 do bloco B da mesma referida rua comercial da Baixa Asa Norte, declara a sua profunda irritação e revolta pelo abuso muito mal educado do comerciante pouco polido que se julga no direito de invadir o espaço/ambiente auditivo alheio, numa manhã em que se encontrava muito atarefada com trabalhos que exigem concentração e sossego. Ela falou com algumas das "autoridades" locais, como porteiros e síndico, mas ao que parecia não surtira muito efeito... Será que a polícia resolveria?
O advogado que ocupa a sala 110 do bloco B desta mesma rua está vivendo um dia particularmente importante, pois deve redigir alguns textos de máxima relevância no processo em que está trabalhando, e tem prazo muito curto pra cumprir sua tarefa. Mas não a pôde concluir porque foi interrompido arbitrariamente por algum celerado descerebrado e deseducado, um troglodita social que não tem a menor noção de cosmopolitanismo. Perguntou-se-lhe se, como advogado e diretamente interessado, não aceitaria defender a comunidade numa causa contra os barulhentos contumazes...
Já a psicóloga da sala 117 do bloco A da dita rua, que tentava atender um paciente, teve a sua manhã de trabalho terrivelmente prejudicada pela falta de observação às regras básicas de pacífica convivência com vizinhos e visitantes em geral, cometida por algum comerciante cujo umbigo é surdo, com toda certeza. Ou então só ouve o que quer, como quer, quando quer, onde quer, do jeito que quiser, sem nem se importar com o que querem ou não querem seus vizinhos e demais co-habitantes temporários.
A zeladora do mesmo bloco citado anteriormente amanheceu com uma quase enxaqueca. Já chegou ao trabalho com aquele temerário indício de forte dor de cabeça. Tomou um café com leite e um comprimido e estava começando a cumprir suas tarefas, quando aquele míssil sonoro perfurou-lhe os tímpanos e o cérebro, amplificando na mesma medida a sua até então apenas prenunciada dor de cabeça. Foi obrigada a interromper o seu serviço por várias vezes, pois teve acentuada queda de pressão, por causa da dor, teve náuseas incontroláveis, além de tontura e fraqueza generalizada. E ficou muito triste e amargurada porque um droga de um comerciante achava que tinha o direito de vender os trecos dele, chamando freguês com essa barulheira infernal, mais direito do que ela de poder trabalhar e poder se recuperar numa boa, ainda que estivesse num dia bem ruim... E dá-lhe dor!
A mocinha que trabalha como caixa da loja 47 do bloco B não conseguiu se concentrar nos números e valores. Então teve que fazer e refazer cálculos e operações, porque não pode e não deve errar, senão, além de ter que ressarcir o lesado -- ainda que não-intencionalmente lesado --, teria que pagar uma multa que, pra ela, era pesada. Foi uma manhã infernal e ela acabou mesmo errando algumas vezes, tendo prejuízo de dinheiro, de paciência e de saúde. Tudo porque um infeliz resolveu que quer fazer muito, muito, muito barulho.
O massagista e fisioteurapeta que trabalha na sala 212 do bloco A precisa adequar o seu ritmo corporal à precisa operação que deve fazer ao aplicar uma seção de terapia de recuperação de lesão neuro-muscular. Deve respirar quase no mesmo ritmo e intensidade que o cliente. Mas não consegue, porque uma "música" toda pontuada por umas pancadas num ritmo absurdamente duro e rápido, como ritmo e barulho de grandes máquinas pesadas e nervosas, não permite que ele possa trabalhar fisicamente como tem que ser. O ritmo e a intensidade dos ruídos vindos de fora invadem a sua caixa torácica e perturbam o seu próprio ritmo, interferindo na sua respiração, pulsação e pressão sanguínea. É terrivelmente frustrante você não poder executar o seu trabalho a contento porque uma pessoa, uma única pessoa resolveu que pode e que deve impor todo este excessivo, abusivo, invasivo e egoísta volume de decibéis que não é, de modo algum, bem vindo por ele e duvida-se que o seja pra maioria ali em volta.
A cozinheira da creperia que fica na esquina declarou que já possui um ritmo alucinado de trabalho, tendo que atender e administrar o preparo de todos os pedidos dos muitos fregueses chegando pra um café da manhã tardio ou um almoço adiantado, de modo que não precisa de algum modelo externo e imposto, pelo contrário. Acabou se desconcentrando nos temperos e nos tempos de cozimento e, com isso, desagradou clientes, gerente, garçons e a Deus. Menos ao FDP que começou e continuou com essa barulheira do capeta, porque ele nem sabe que ela existe.
A prostituta da quitinete 215 do bloco A, que pra todos os efeitos é estudante universitária, mas todo mundo sabe como ela se sustenta, declarou que teve que usar de muita criatividade e improviso pra conseguir adequar o ritmo do intercurso ao ritmo imposto, feito estaca que não varia, pelo som absurdamente alto que algum mais degenerado que ela resolveu espalhar pelos quatro cantos. Claro, o cliente ficou meio prejudicado e não gostou muito da seção, quis discutir os seus dela honorários, imagina, e depois dele não apareceu mais nenhum. Você vê o prejuízo que uma pessoa que está trabalhando honestamente tem, porque alguém quer fazer muito barulho e f***-se. (*** é aquele "piiiii" da censura televisiva), ou melhor, não se f***.
O professor de violão e piano, que mora e trabalha no bloco C, teve a sua manhã de trabalho totalmente prejudicada. Um dos seus alunos, que já não era lá muito bom em matéria de concentração, se dispersou de vez e a aula não lhe rendeu nadinha. E ainda periga dele desistir das aulas de uma vez, pensando que o defeito é só nele, sem ter real consciência de que o barulho infernal vindo de fora o deixou neste estado. Os outros alunos ficaram quase tão dispersivos quanto aquele, o que significou que aquela aula foi praticamente nula. Por que ele, o professor, que paga os mesmos impostos que o comerciante barulhento paga (se é que paga), não pode ter o direito de trabalhar honesta e propriamente, enquanto o dito comerciante faz o que lhe der na telha pra chamar a atenção dos passantes possíveis clientes, com um recurso por sinal duvidoso, porque apostava que muita gente, como o referido professor ele próprio, se afastaria depressa de uma loja que fosse tão, mas tão barulhenta.
Outra moradora apresenta logo, sem muitos preâmbulos, a cópia da lei já sancionada e publicada que determina que ninguém pode produzir, de forma alguma, ruídos acima de determinada quantidade de decibéis, variando ligeira e mutuamente de uma pra outra em áreas, finalidades e horários, de modo a preservar o sossego coletivo e sob as formas da lei.
Esta lei dispõe, inclusive, que se o comerciante quiser ou tiver que produzir um volume de som acima daquele disposto pela lei, será obrigado a fazê-lo dentro de um recinto devidamente tratado acusticamente, ou seja, com isolamento sonoro.
Dispõe ainda que, de qualquer modo, ele deve ter a aprovação da maioria simples dos moradores e trabalhadores da região, antes de iniciar a sua atividade no ramo barulhento.
Mas, como costuma acontecer neste país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, as leis existem pra não ser aplicadas e muito menos fiscalizadas, a não ser que interesse a alguém muito "importante". E o sujeito continua perturbando o sossego geral a despeito do que a lei determina.
Um país de todos quem, cara pálida?
Esta foi apenas uma pequena amostra do que foi recolhido entre as pessoas na/da rua.
Fecho este relatório com as palavras: não é questão de quem está certo ou errado, a questão é quem está sendo justo ou injusto. Afinal, em que circunstâncias um indivíduo pode e deve ter o direito de passar por cima do direito da coletividade?