Herança da escravidão: realidade social do povo negro na atualidade brasileira
 
“Ser livre é andar por campos, prados
cantar, retratar, ler, crer,
ser livre é valorizar meu direito
e respeitar meu dever,
viver de verdade.
Isso que é liberdade!”
(Alaíde Santos)
 
A partir do olhar de quem vive a negritude além do pigmento da pele, mas por uma questão ideológica, torna-se viável o entendimento de que a escravidão, infelizmente, ainda vigora entre nós. É possível ouvir os gemidos ensurdecedores dos negros e negras que agora não estão na senzala, mas “emergiram” (aspas minhas) para os guetos, favelas e pontes das grandes cidades; deixaram as embarcações infectas e assumiram os transportes públicos sucateados e superlotados.
 
Nada mudou, só estamos em um tempo diferente, mas as personagens e as condições são as mesmas: opressor / branco e negro / oprimido. Herança, e de um tempo distante, mais presente no fardo que pesa sobre as costas do negro no Brasil.

Donde se pode inferir que a abolição da escravatura não garante igualdade para os negros livres que não foram preparados para o desempenho de atividades fora do processo produtivo escravista, o que os mergulha nas novas relações de produção em condição de maior exploração (ASSOCIAÇÃO ECUMÊNICA DE TEÓLOGOS DO TERCEIRO MUNDO, 1986, p.166).
 
A população negra já não arrasta as correntes presas aos pés, porém a ausência desse tipo de domínio não integrou o negro na sociedade da época e nem nos dias contemporâneos. Apesar dos negros terem concretizado conquistas significativas no âmbito dos seus direitos de cidadãos, eles continuam sofrendo os mecanismos sutis, no entanto eficazes do racismo e da discriminação. 
 
Mesmo com a abolição, os negros hoje continuam a ter bons motivos para lutar pela igualdade das raças perante a lei e combater o preconceito e a discriminação para superar as desigualdades sociais herdadas do regime escravista. Apesar de todos os avanços verificados, a população negra brasileira ainda tem um longo caminho a percorrer em direção à verdadeira igualdade (DIMENSTEIN E GIANSANTI, 2003, p.108).
 
Já não é novidade, dizer que a sociedade brasileira é uma cocha de retalhos de cores variadas. Então, imaginemos que esses retalhos representem as raças e suas misturas; agora entenda que este termo não está sendo utilizado nessa pesquisa com significado biológico, mas sim social. Observemos a Tabela 01 que nos apresenta a composição da população por cor / raça e sexo no Brasil em 2003:

 
TABELA 01 (%)
  Brancos Pretos e Pardos Indígenas, Amarelos e Ignorados
Homem 53.3 50.9 0.6
Mulher 46.2 48.5 0.6
 
Fonte: UNIFEM; IPEA. Retrato das Desigualdades. CD-ROM. Programa Igualdade de Gênero e Raça. Brasília: UNIFEM, 2005.
 
No decorrer deste, fomos descobrindo que embora o negro seja maioria, como podemos perceber na exposta Tabela 01, ele sempre ocupou esferas inferiores na composição social, bem como os índios, diferentemente dos brancos que estiveram ostentando o privilegiado topo da conjuntura social. Vejamos o que nos diz Kabengele Munanga, professor de antropologia da USP, numa palestra fornecida no 3º seminário Nacional Relações Raciais e Educação em 5 de novembro de 2005:
 
O conceito de raça, tal como empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. A raça, sempre apresentada como categoria biológica, isto é, natural, é de fato uma categoria etno-semântica. De outro modo, o campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Os conceitos de negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, na Inglaterra, etc. Por isso que o conteúdo dessas palavras é etno-semântico, político-ideológico e não biológico (COSTA, OSÓRIO E SILVA, 2006, p.27).
 
A fala de Kabengele Munanga ilumina com maestria a imagem que temos do negro na sociedade brasileira. Quando, por exemplo, o negro consegue, com muito sacrifício, especializar-se numa área do conhecimento, é rejeitado, na maioria das vezes, pelas empresas na seleção pessoal. Na Tabela 02 verificaremos os indicadores de trabalho, emprego e renda por cor / raça e sexo no Brasil no ano de 2003, comprovando tal análise:


TABELA 02 (%)
INDICADORES COR / RAÇA HOMENS MULHERES
Distribuição da população ocupada de 16 anos ou mais por cor / raça, segundo sexo e posição na ocupação em 2003. Funcionários públicos BRANCOS 5.6 10.0
NEGROS 4.5 7.8
Com carteira BRANCOS 37.1 30.9
NEGROS 29.4 19.9
Sem carteira BRANCOS 18.4 13.3
NEGROS 27.8 14.0
Conta própria BRANCOS 26.0 15.7
NEGROS 27.5 17.2
Empregador BRANCOS 7.7 3.6
NEGROS 2.9 1.2
Empregado doméstico BRANCOS 0.7 13.2
NEGROS 1.0 22.2
Outros BRANCOS 4.5 13.3
NEGROS 6.8 17.6
Média da renda domiciliar per capita segundo sexo e cor / raça do chefe do domicílio em 2003 BRANCOS 500.1 470.3
NEGROS 216.8 219.0
Fonte: (COSTA, OSÓRIO E SILVA, 2006, p.33).
 
Além das informações oferecidas pela Tabela 02, vamos analisar mais diretamente as consequências da discriminação pelo mercado de trabalho. Com a ausência de bons empregos para os/as negros/as, é óbvio que eles/as nunca saíram da miséria, e as oportunidades de galgar melhores condições de vida são minadas. Essa maioria silenciosa sobrevive alimentada de um esforço máximo, para fugir dos circuitos da perversa opressão.
 
O desemprego, traz consigo o crescimento da informalidade e da precariedade no mercado de trabalho e apesar de as estatísticas apregoarem, ano a ano, a criação de oportunidades de trabalho, este não chegam a satisfazer o número cada vez maior de pessoas que necessitam de trabalho [...] a população negra sobrevive no subemprego e no desemprego, em atividades de baixa remuneração [...] e, cotidianamente, é empurrada à prostituição e ao crime (SANTOS, CARDOSO E FERREIRA, 2003, p. 17).
 
Nós, os negros, vivemos numa sociedade cheia de artifícios inventados para criar o bem-estar de uma ínfima parte da população, que como podemos verificar nas tabelas não são os negros. O conhecimento destas armadilhas é o primeiro passo para reverter esse emaranhado de preconceitos. Há quem acredite que num país como o Brasil, o racismo seja consequência da má-fé de algumas pessoas e que mudar a cabeça destas seria o bastante para acabar com a discriminação. Mas, na realidade o racismo é muito mais agudo do que pensamos, ele é um vírus que contaminou toda a sociedade, desde as pessoas até as estruturas. (Cartilha dos grupos de base dos agentes de pastoral negros, 1987, p. 25).
 
Não é por acaso que o negro ocupa o lugar que tem. Sabe-se que no Brasil ser branco é mais valorizado do que ser negro ou não-branco. E no sistema hierarquizado somos os mais pobres. Vejamos os dados da Tabela 03 que revelam a proporção de pobres segundo cor / raça no Brasil em 2003.

 
TABELA 03 (%)
Proporção de pobres segundo cor / raça em 2003 BRANCOS 20.5
NEGROS 44.1
 
Fonte: (COSTA, OSÓRIO E SILVA, 2006, p.33).
 
Estes dados justificam o fato da maioria da população negra viver nos bairros periféricos das cidades, nos povoados, vilas, encostas e favelas, portanto regiões distantes do centro que representa o poder e o desenvolvimento. Justifica ainda, a não participação na distribuição das riquezas, do acesso à cultura e à comunicação, bem como a impossibilidade de conquistar sua casa própria, sendo obrigados a morarem de aluguel e com baixa qualidade de vida. 
 
Já o problema habitacional recai, principalmente, sobre a população negra, uma vez que esta é, em sua maioria, a população pobre moradora de periferias e favelas e que, por conseguinte, merece atenção especial por parte do poder público. (COSTA, OSÓRIO E SILVA, 2006, p.35).
 
Para os negros faltam tudo: saneamento básico, acesso à saúde (ver Tabela 04), energia elétrica, transporte seguro e de qualidade, portanto, faltam-nos os equipamentos urbanos essenciais que nos remetem a maioria dos excluídos da cidadania (SANTOS, CARDOSO E FERREIRA, 2003).
 
No estudo da Tabela 04 dos indicadores de saúde, fica explícito que os negros são os que mais utilizam os serviços públicos do Sistema Único de Saúde – SUS. Com relação à proporção de pessoas com planos de saúde, os brancos são os que mais usufruem desse serviço. Talvez esses dados confirmem a cor negra pintada nas filas desumanas dos hospitais públicos brasileiros (COSTA, OSÓRIO E SILVA, 2006, p.37).

 
TABELA 04 (%)
INDICADORES COR / RAÇA HOMENS MULHERES
Proporção de atendimentos cobertos pelo SUS por sexo, segundo cor / raça em 2003 BRANCOS 55.1 53.6
NEGROS 76.1 76.0
Cobertura de planos de saúde por sexo, segundo cor / raça em 2003 BRANCOS 31.7 35.6
NEGROS 13.9 15.6
Proporção de pessoas que consultaram dentista, segundo cor / raça em 2003 JÁ FORAM AO DENTISTA BRANCOS 86.8 89.1
NEGROS 77.9 81.7
NÃO FORAM AO DENTISTA BRANCOS 13.2 10.9
NEGROS 22.1 18.3
 
Fonte: UNIFEM; IPEA. Retrato das Desigualdades. CD-ROM. Programa Igualdade de Gênero e Raça. Brasília: UNIFEM, 2005.
 
  
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Texto pertencente ao trabalho monográfico.
TEMA DA MONOGRAFIA: IDENTIDADE E ASCENDÊNCIA NEGRA NO SEMIÁRIDO BAIANO: Resgatando a memória coletiva e histórica da comunidade do Riacho das Pedrinhas (Itiúba-BA)




Imagem - Fonte: Google
 
Toni DeSouza
Enviado por Toni DeSouza em 07/06/2010
Reeditado em 17/12/2014
Código do texto: T2306259
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