A VIOLÊNCIA NA TERRA DURA (texto de Ronald Cabral Simas)
Seguindo o rumo que a vida me impõe divago por aí em busca do meu destino, até que os ventos me levaram à Terra Dura por conta de um barco que resolvi restaurar.
Há poucos dias estávamos lá trabalhando quando por volta das onze da noite quatro disparos desferidos à porta levaram ao chão o corpo de Ró, alvejado mortalmente pela certeira pontaria de Alex Franco.
Imediatamente aquelas ruelas insalubres transformaram-se num canteiro de operações da força pública. Camburões, rabecões e policiais fortemente armados garantiam a integridade do corpo inerte que ali jazia, já que não conseguem prevenir a segurança de nós que ainda vivemos.
Bem, a vida continuou e no último sábado, 01 de maio, seguíamos trabalhando quando houve a necessidade de comprar massa plástica. Como nessas atividades informais os pontos que movimentam a economia ficam coalhados de curiosos, de crianças a pinguços, que por ali alimentam a esperança de uns trocados, recorri aos serviços desses curiosos. Da oficina partiu o efetivo formado por Alexandro Alcino e Júnior de Mané Vicente, este um garoto de dez anos, a quem foi confiada a missão de comprar as duas latas de massa no Santa Maria Material de Construção.
Pouco tempo depois os missionários estavam de volta apresentando os dois produtos adquiridos, sem nota fiscal (crime de sonegação fiscal), mas com um orçamento que exibia o valor unitário de cada lata - R$ 7.20 - totalizando R$ 14,40 (quatorze reais e quarenta centavos).
Munidos de uma moeda de dez centavos apresentaram-na como sendo o troco dos quinze reais menos os quatorze reais e quarenta centavos da compra do material.
Contestei a lisura da operação e fui informado de que, apesar da relutância deles, Dona Edna, proprietária do Santa Maria M. C., se negara a reconhecer o erro na conta e os mandara de volta com os apenas dez centavos. Convencidos da minha razão, Júnior de Mané Vicente voltou ao depósito para reclamar o restante do troco. O menino de lá regressou desmoralizado, após ser violentamente rechaçado das dependências do estabelecimento.
Inconformado assumi o comando da operação e fui lá pessoalmente, acompanhado dos integrantes da equipe que realizara o negócio. Lá chegando me dirigi a o moço que estava sentado na escrivaninha principal e expus os motivos da minha visita.
Enquanto revia os cálculos com seu João (depois fiquei sabendo o nome do ilustre proprietário e marido de D. Edna), a senhora saltou do caixa, desceu do salto e tentou provar por todas as fórmulas que 15 reais menos 15 reais e quarenta centavos é igual a 10 centavos.
Finalmente afastada do propósito de demolir os alicerces da Matemática, muito antes de acrescentar ao troco as suas modestas desculpas, D. Edna com os punhos cerrados sobre os quadris destilou na minha direção; “eu sei fazer conta... eu sei fazer conta...”
Que gente prepotente, mal educada!
Diante da falsa afirmativa, fui obrigado a dizer que, se era daquela forma, ela não sabia fazer contas.
Seu João perdeu o controle e acorreu em socorro da sua mulher abarcando as duas latas de massa e arremessando-as violentamente sobre o balcão enquanto esbravejava e partia violentamente na minha direção como se fora me arrancar o pescoço: “ela se enganou... ela se enganou... ele se enganou...” Entre tudo foram necessárias cinco tentativas para D. Edna concluir que o troco exato seria 60 centavos, e também que não deveria maltratar a população por querer esclarecer as contas.
Esse tipo de gente - o novo rico - consegue juntar dois mirreis e passa a achar que é dono de tudo e de todos. Imagine se conseguissem andar por sobre as águas...
A população carente desses bolsões vive amealhando restos para “interar” a dose de cachaça e o cigarro comprado a retalho com os quais alimentam os seus sonhos. A comida vem do lixão da Terra Dura.
Num paraíso onde se mata, se morre, e se manda matar por um saco de cimento, o risco iminente da desgraça está presente em cada vírgula.
Diante do quadro de ódio - protagonizado pelos proprietários do Santa Maria M.C. - que ali se instalara me restaram poucas opções: a imediata seria me agarrar com aquele sujeito que certamente estaria malcheiroso após a sua jornada de trabalho, e sair de lá diretamente para o Complexo Penitenciário Advogado Antônio Jacinto Filho ou para os fornos de um crematório em Salvador, já que a minha escolha para enfrentar a eternidade é em forma de cinzas.
A outra alternativa me pareceu inteligente e de pouco risco. Dei meia volta sobre os calcanhares e bati em retirada. De perto me seguiu um carroceiro, enquanto eu digitava o número 190 no meu celular esperando o desfecho da questão.
Após de lá saírem, Alexando e Júnior exibiram as moedas como sinal do nosso triunfo.
Caso houvera sido diferente eu teria finalizado a ligação, convocando a polícia para me proteger contra roubo, tentativa de agressão e outras coisas que a lei sempre prevê para aumentar o discurso da justiça e promover o convívio pacífico entre cidadãos.
Aí teriam sido outros 50...
Ronald Cabral Simas
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Texto publicado no Jornal do Dia - Aracaju/SE - Edição de terça-feira, 04 de maio de 2010, página 09.
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Ronald é um querido amigo, ex-colega do Colégio Atheneu Sergipense.