REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO
Nunca deixou-me as recordações da adolescência o episódio de quando, a convite de um amiga dada a atitudes filantrópicas já nos seus poucos quinze ou dezesseis anos, a acompanhei até um abrigo de crianças na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Anos depois, por conta desta experiência, guardava com acerto em meu íntimo a importância do acolhimento adotivo, de cada um daqueles pequeninos, por quem para isso se visse devidamente preparado - sobretudo do ponto de vista humano, afetivo, espiritual.
Lembro-me de que era uma chusma barulhenta e alegre de crianças de várias idades que esvoaçavam por ali em alvoroço, nos perímetros da instituição onde volta e meia pessoas bem intencionadas como aquela minha amiga iam em apadrinhamento ou visita periódica, nem que apenas para auxiliar e brincar com eles. Surpresa da novidade daquilo, no entanto, o que mais me marcou foi a necessidade compulsiva de abraçar. Porque mal adentrávamos o lugar, e todos os que se achavam nas cercanias disparavam em nossa direção, e literalmente nos agarravam, fosse enlaçando-nos as pernas, a cintura, ou aonde seus tamanhinhos permitissem, como se quisessem se apoderar mais do que os demais da presença benvinda! E gastávamos a tarde toda brincando e cuidando deles!
Impossível definir com acerto o grau absurdo de alegria dos pequeninos com aquele tão pouco que, como meras adolescentes, tínhamos a oferecer. Descrever o que foi para a minha formação íntima adentrar o berçário lotado, onde uns poucos bebês dormiam. A maioria, todavia - dentre os maiores entre um e dois anos, a atenção fixa no movimento de quem ia e vinha, em dando com os visitantes dispostos a oferecer-lhes algo mais de atenção e afeto - entrava em ruidoso alarido, esticando para nós, unânimes, os bracinhos! Queriam porque queriam o colo em privilégio aos demais. Recordo com clareza a intensa comoção que aquilo desencadeou no meu espírito, metido em perplexidade diante da estranha realidade que a experiência me descortinava. Comovida, passeando entre os bercinhos de bebês sorridentes, súplices, detinha-me brincando um pouco com um, abraçando outros. A funcionária local disse-me da possibilidade de levar algum a passeio no lado de fora, na área do terraço; era necessário, via-se! Questão de saúde, psicológica e física. Mas, ao que tudo indicava se carecia, ali, de contingente humano suficiente para suprir a contento aquela necessidade, simultaneamente, para todos os bebês.
Na hora em que enfim me decidi por um, pegando-o no colo, a choradeira decepcionada! O flagrante grau de carência dos pequenos ali reunidos! Um choque, quase demasiado para a minha ainda limitada capacidade emocional para me haver a contento com o dilema inusitado. A funcionária instruía: - "Vai logo com ele, melhor!" Ao que, meio atarantada, saí do berçário, doída de um remorso íntimo que não podia definir adequadamente naquele momento. Hoje, me pergunto se o melhor de fato seria carregar uma das crianças, causando nas demais toda aquela frustração, já que se tratava apenas de uma visita recreativa!
Difícil definir a visão, ainda gravada na retina espiritual, da menininha autista que, em vendo que não obtinha de mim a exclusividade que queria por força durante a minha visita - já que o assédio das demais sobre os visitantes era insofreável, irresistível! - se pôs a bater seguidamente a cabeça num dos muros do pátio, requerendo emergencialmente que, aflitas, acorrêssemos em busca do devido auxílio de funcionários da instituição que mal se viam preparados para lidar com o impasse delicado. Ao que me lembro, não deram maior atenção. Instruiram-me a que me afastasse com os demais porque o surto acalmaria, era não dar atenção, e pronto!...
Estas recordações comoventes sobrevieram, inevitáveis, durante os últimos dias em que notícias surpreendentes relacionadas à tentativa de adoção equivocada de uma pequena tomaram conta da mídia, provocando reações as mais disparatadas. A maioria de revolta e estarrecimento. Mas o que sobrepaira, ou deveria sobrepairar como ensinamento maior destes acontecimentos, é a reflexão sempre oportuna sobre o que deve nortear uma tentativa de adoção - longe, mas longe mesmo, do se privilegiar, em detrimento do preparo afetivo e emocional dos candidatos, a sua situação financeira, pois resta óbvio que dos requisitos imprescindíveis talvez seja, este, justo o de relevância secundária!
Comentei esta semana, por conta do caso em baila, primeiro da vontade doida de adotar o anjinho para compensá-la devidamente, e pelo resto da sua vida, do martírio vivido em tão tenra idade. Depois, após maior reflexão, que talvez nem mesmo assim, movida pela melhor das intenções, fosse eu devidamente aquinhoada de recursos íntimos para me desincumbir a contento da delicada e importante missão. Por uma razão insuspeitada: conseguiria exercer a função materna satisfatoriamente, sem incorrer em excessos de complacência durante os episódios futuros que pontilham toda jornada comum à infância e à adolescência? Poderia lidar com os desafios presentes em todas as cenas menores de divergência e de arengas próprias do cotidiano educativo, instruindo, quando necessário, com a devida autoridade e energia, em se tratando de criança assim tão cruealmente flagelada na fase mais incipiente de sua vida?!
Concluí, de mim para mim, que talvez não. Porque, conhecendo-me, teria que me haver comigo mesma para conter excessos de complacência, indulgência e emotividade! Toda vez que olhasse o rostinho, as eventuais lágrimas de percurso da criança chegada ao mundo em situação de tão extremada carência e sofrimento, talvez que não fosse competente para, aliando amor à autoridade, orientá-la com o equilíbrio devido. Não saberia talvez dosar amor e beijos com os "nãos" mais enérgicos, que mais tarde revertem em "sims", benéficos ao adulto bem formado...
E tão só estas reflexões reforçam-me a convicção de que adoção é assunto sério - porque exige dos candidatos a esta atitude sublime muito mais de auto reformulação de conceitos do que de dotes materiais. Requer, acima de todas as preliminares, a consciência clara, límpida, de que adotar é abnegação, doação irrestrita, com prioridade absoluta de objetivos visando o suprimento da necessidade de orientação e de amor, própria tanto de filhos naturais, quanto mais dos não consanguíneos!
Adotar não é, tampouco, o alegar-se como razão maior a impossibilidade de casais para se conceber filhos naturais - não! E embora para tais casais isto se revista de intenção dentre as mais nobres, não é o que deve prevalecer como pretexto para o acolhimento e orientação dos serezinhos em situação dolorosa de carência total, que infestam os nossos abrigos e instituições de caridade!
A adoção há de recompensar indizivelmente aos que se oferecem de coração aberto à doação espontânea de amor: casais com impedimentos biológicos de concepção, ou os que já os conceberam mas são prontos a estender sua capacidade amorosa a muitos mais, ou solteiros de qualquer idade, agraciados pela capacidade rediviva do amor confraterno para com o próximo!...
Adotar será sempre, e sobretudo, o suprir-se o vazio gélido da carência até ao transbordamento, com um amor que leve os meninos a sentir que, acima de filhos adotivos, são, antes, filhos do coração!
Nunca deixou-me as recordações da adolescência o episódio de quando, a convite de um amiga dada a atitudes filantrópicas já nos seus poucos quinze ou dezesseis anos, a acompanhei até um abrigo de crianças na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Anos depois, por conta desta experiência, guardava com acerto em meu íntimo a importância do acolhimento adotivo, de cada um daqueles pequeninos, por quem para isso se visse devidamente preparado - sobretudo do ponto de vista humano, afetivo, espiritual.
Lembro-me de que era uma chusma barulhenta e alegre de crianças de várias idades que esvoaçavam por ali em alvoroço, nos perímetros da instituição onde volta e meia pessoas bem intencionadas como aquela minha amiga iam em apadrinhamento ou visita periódica, nem que apenas para auxiliar e brincar com eles. Surpresa da novidade daquilo, no entanto, o que mais me marcou foi a necessidade compulsiva de abraçar. Porque mal adentrávamos o lugar, e todos os que se achavam nas cercanias disparavam em nossa direção, e literalmente nos agarravam, fosse enlaçando-nos as pernas, a cintura, ou aonde seus tamanhinhos permitissem, como se quisessem se apoderar mais do que os demais da presença benvinda! E gastávamos a tarde toda brincando e cuidando deles!
Impossível definir com acerto o grau absurdo de alegria dos pequeninos com aquele tão pouco que, como meras adolescentes, tínhamos a oferecer. Descrever o que foi para a minha formação íntima adentrar o berçário lotado, onde uns poucos bebês dormiam. A maioria, todavia - dentre os maiores entre um e dois anos, a atenção fixa no movimento de quem ia e vinha, em dando com os visitantes dispostos a oferecer-lhes algo mais de atenção e afeto - entrava em ruidoso alarido, esticando para nós, unânimes, os bracinhos! Queriam porque queriam o colo em privilégio aos demais. Recordo com clareza a intensa comoção que aquilo desencadeou no meu espírito, metido em perplexidade diante da estranha realidade que a experiência me descortinava. Comovida, passeando entre os bercinhos de bebês sorridentes, súplices, detinha-me brincando um pouco com um, abraçando outros. A funcionária local disse-me da possibilidade de levar algum a passeio no lado de fora, na área do terraço; era necessário, via-se! Questão de saúde, psicológica e física. Mas, ao que tudo indicava se carecia, ali, de contingente humano suficiente para suprir a contento aquela necessidade, simultaneamente, para todos os bebês.
Na hora em que enfim me decidi por um, pegando-o no colo, a choradeira decepcionada! O flagrante grau de carência dos pequenos ali reunidos! Um choque, quase demasiado para a minha ainda limitada capacidade emocional para me haver a contento com o dilema inusitado. A funcionária instruía: - "Vai logo com ele, melhor!" Ao que, meio atarantada, saí do berçário, doída de um remorso íntimo que não podia definir adequadamente naquele momento. Hoje, me pergunto se o melhor de fato seria carregar uma das crianças, causando nas demais toda aquela frustração, já que se tratava apenas de uma visita recreativa!
Difícil definir a visão, ainda gravada na retina espiritual, da menininha autista que, em vendo que não obtinha de mim a exclusividade que queria por força durante a minha visita - já que o assédio das demais sobre os visitantes era insofreável, irresistível! - se pôs a bater seguidamente a cabeça num dos muros do pátio, requerendo emergencialmente que, aflitas, acorrêssemos em busca do devido auxílio de funcionários da instituição que mal se viam preparados para lidar com o impasse delicado. Ao que me lembro, não deram maior atenção. Instruiram-me a que me afastasse com os demais porque o surto acalmaria, era não dar atenção, e pronto!...
Estas recordações comoventes sobrevieram, inevitáveis, durante os últimos dias em que notícias surpreendentes relacionadas à tentativa de adoção equivocada de uma pequena tomaram conta da mídia, provocando reações as mais disparatadas. A maioria de revolta e estarrecimento. Mas o que sobrepaira, ou deveria sobrepairar como ensinamento maior destes acontecimentos, é a reflexão sempre oportuna sobre o que deve nortear uma tentativa de adoção - longe, mas longe mesmo, do se privilegiar, em detrimento do preparo afetivo e emocional dos candidatos, a sua situação financeira, pois resta óbvio que dos requisitos imprescindíveis talvez seja, este, justo o de relevância secundária!
Comentei esta semana, por conta do caso em baila, primeiro da vontade doida de adotar o anjinho para compensá-la devidamente, e pelo resto da sua vida, do martírio vivido em tão tenra idade. Depois, após maior reflexão, que talvez nem mesmo assim, movida pela melhor das intenções, fosse eu devidamente aquinhoada de recursos íntimos para me desincumbir a contento da delicada e importante missão. Por uma razão insuspeitada: conseguiria exercer a função materna satisfatoriamente, sem incorrer em excessos de complacência durante os episódios futuros que pontilham toda jornada comum à infância e à adolescência? Poderia lidar com os desafios presentes em todas as cenas menores de divergência e de arengas próprias do cotidiano educativo, instruindo, quando necessário, com a devida autoridade e energia, em se tratando de criança assim tão cruealmente flagelada na fase mais incipiente de sua vida?!
Concluí, de mim para mim, que talvez não. Porque, conhecendo-me, teria que me haver comigo mesma para conter excessos de complacência, indulgência e emotividade! Toda vez que olhasse o rostinho, as eventuais lágrimas de percurso da criança chegada ao mundo em situação de tão extremada carência e sofrimento, talvez que não fosse competente para, aliando amor à autoridade, orientá-la com o equilíbrio devido. Não saberia talvez dosar amor e beijos com os "nãos" mais enérgicos, que mais tarde revertem em "sims", benéficos ao adulto bem formado...
E tão só estas reflexões reforçam-me a convicção de que adoção é assunto sério - porque exige dos candidatos a esta atitude sublime muito mais de auto reformulação de conceitos do que de dotes materiais. Requer, acima de todas as preliminares, a consciência clara, límpida, de que adotar é abnegação, doação irrestrita, com prioridade absoluta de objetivos visando o suprimento da necessidade de orientação e de amor, própria tanto de filhos naturais, quanto mais dos não consanguíneos!
Adotar não é, tampouco, o alegar-se como razão maior a impossibilidade de casais para se conceber filhos naturais - não! E embora para tais casais isto se revista de intenção dentre as mais nobres, não é o que deve prevalecer como pretexto para o acolhimento e orientação dos serezinhos em situação dolorosa de carência total, que infestam os nossos abrigos e instituições de caridade!
A adoção há de recompensar indizivelmente aos que se oferecem de coração aberto à doação espontânea de amor: casais com impedimentos biológicos de concepção, ou os que já os conceberam mas são prontos a estender sua capacidade amorosa a muitos mais, ou solteiros de qualquer idade, agraciados pela capacidade rediviva do amor confraterno para com o próximo!...
Adotar será sempre, e sobretudo, o suprir-se o vazio gélido da carência até ao transbordamento, com um amor que leve os meninos a sentir que, acima de filhos adotivos, são, antes, filhos do coração!