Cidadania como sentimento
“Quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade, e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera desprezo do outro, e o desprezo, a agressividade, e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado” (Leonardo Boff).
É curiosa a grande fascinação que muitas pessoas têm pela palavra cidadania. A imagem desta palavra sempre foi produtora de livros, artigos, intelectuais, defensores dos direitos humanos, lideranças de movimentos sociais, Ongs, professores, políticos e autoridades. Apesar de ser um conceito polissêmico, ou seja, uma categoria que carrega diversos significados, é possível - como é importante em toda definição - encontrar um campo comum de consenso.
Cidadania diz respeito aos direitos de todo ser humano. Não obstante a obviedade das palavras, cumpre mencionar os direitos à vida, à propriedade, à liberdade e à igualdade perante a lei. Tais direitos fazem parte do que o sociólogo inglês Thomas Humphrey Marshall (1893-1981) chamou de direitos civis. Contudo, a cidadania é composta pelo direito de decisão sobre os destinos da sociedade. Neste caminho são cruciais os “direitos políticos” de votar e ser votado, de participação em partidos, associações e sindicatos, além da liberdade de expressão e de manifestação de ideias. Cidadania também é composta pelos “direitos sociais”, como o direito à educação, ao salário justo e digno, ao trabalho sem exploração, à saúde individual e coletiva e, por ressonância, a uma velhice sossegada e em paz.
Por consenso, a cidadania plena comporta os direitos civis, políticos e sociais. Tais direitos são oriundos de um longo processo histórico de movimentos sociais, lutas e conquistas nas sociedades ocidentais, ao ponto de, hodiernamente, estar em pauta a defesa do direito ao meio ambiente preservado e à qualidade de vida. É no mínimo perigoso quando governos andam de um lado ao outro e não decidem seguir à risca tais empreendimentos. São nestes casos que a cidadania deve ser entendida como um sentimento. Da mesma forma que sinto ser “um ser humano”, sinto “ser um cidadão”. Não é por força do acaso que alguns intelectuais, em pesquisas sobre a história de nosso Brasil, chamaram parte da população de cidadãos de primeira classe ou de segunda classe. Ainda temos aqueles que forjaram outros conceitos como o de “estadania”, tentando com muita propriedade, revelar a tendência que o brasileiro tem de esperar tudo do Estado, empregar parentes e amigos em órgãos públicos, misturar coisas da esfera pública com as do campo privado e não apostar na força da liberdade, da ação individual ou da sociedade civil organizada.
De todo modo, cidadania é um sentimento que - na verdade - não é por direito garantido. Teimo em dizer que o indivíduo nesse duro mundo da vida não é cidadão, ele “torna-se um cidadão” e, para isso, notadamente no caso do Brasil, ele vai enfrentar uma grande onda de custos: vai ser o chato que corre atrás das mínimas garantias de vida, que exige o retorno do troco, que chama a polícia, pede a nota fiscal, briga no posto de saúde e nos hospitais, exige aulas, professores capacitados, políticos honestos, autoridades competentes e muito mais. No Brasil, voltados para a cultura do “deixa pra lá”, somos levianos e apontamos o dedo em riste para o sujeito que deseja ser igual aos outros, ou que simplesmente pretende ser tratado como cidadão de primeira classe.
A questão é complexa. Somos um país de contrastes. Carregamos um passado escravocrata, machista, hierarquizado, patriarcal e patrimonial. Passado forjado sob os alicerces da desigualdade social, da violência desmedida, do mando descontrolado do Estado, no qual “poucos dominam as riquezas e muitos distribuem a pobreza”. O pior da história é que modificamos muito pouco essa realidade. Continuamos a perseguir e prender negros, pobres e jovens. Existe uma crise aberta em todos os setores da educação e a ação política tornou-se banal e pauta de programas humorísticos. Fazemos piada de nossa desgraça e para se ter uma ideia da seriedade da conjuntura política até hoje não levamos a efeito - dentre tantas necessárias - a reforma agrária, a reforma trabalhista, processos de responsabilização de autoridades e políticos e estamos longe de levar a sério as reformas política e social. Uma calamidade pública repousa sobre indivíduos inertes e apáticos.
Pensar a cidadania como sentimento é uma saída. Ela se torna mais pragmática e sai do campo puramente metafísico para cair na boca do sujeito que tem por arma a linguagem. Dito de outra forma: a capacidade inegociável de reclamar. Reclamar até para ter voz. Este sentimento talvez seja mais do que necessário. Ele é obrigatório quando se sabe que exigir direitos e respeito é a única maneira de ser humano. Respeito se exige, ele deve ser imposto por todas as forças do indivíduo. Ele é o mecanismo central do que chamei de sentimento de cidadania, a qual pode-se entender também uma postura de caráter, uma atitude de vida, uma condição objetiva e subjetiva como do ser social que pertence a uma identidade coletiva, a uma comunidade, a uma sociedade. Respeitar o corpo social é respeitar e tolerar o direito alheio e, por conseqüência, por fim ao mandatório daqueles que desejam que o direito seja respeitado. Infelizmente, este campo é de disputa de discursos o que não significa que os mais fracos não possam dele fazer parte ou disputar uma parte do bolo, nem que seja para perder ou para simplesmente “ser ouvido”. Não existe outra forma.
A cidadania como sentimento aponta também para os deveres, campo no qual não teríamos tanta dificuldade se os direitos já mencionados fossem garantidos. A questão é dialética. O dever carrega a antítese do direito, um não vive, mas garante a emergência e a maturação do outro. Cidadania como sentimento é isso: luto e grito pelos direitos; exijo e ofereço respeito ao direito do outro. É um jogo social de contrapartidas, pois é bom exigir o que se ofereceu e nada mais criminoso do que retirar ou obter do outro aquilo que ele não teve sequer a oportunidade de ter.