O sofrimento psíquico irrepresentável à luz da psicanálise

Introdução

Em diálogo com As proto-representações do sofrimento psíquico, este trabalho focaliza o sofrimento psíquico irrepresentável, lastreando-se em conceitos psicanalíticos e em hipóteses de trabalho da autora como o desejo, o trauma do absoluto e o sistema representacional (Almeida, 2003). Por sofrimento psíquico irrepresentável, entende-se aquele cuja intensidade bloqueia a capacidade psíquica de representá-lo por meio de palavras. As sensações de impotência, de vulnerabilidade e de imperiosa submissão ao agressor para sobreviver juntam-se à magnitude de afetos desorganizadores - ódio, horror, pavor, desespero - no sistema representacional. Ao se pensar o impacto psíquico dos traumas transgeracionais na família, da violência sexual, dos sequestros por grupos terroristas, da tortura e da ameaça de morte impostas pelas ditaduras e do terror nas instituições prisionais, desponta a dimensão do sofrimento irrepresentável no sistema. Quanto aos conceitos psicanalíticos, há autores cujos conceitos abriram caminho para se chegar ao irrepresentável, bem como outros que o relacionam a conceitos próximos a ele.

De início, impõe-se refletir sobre a distância entre qualquer vivência mental e a possibilidade da representação de expressá-la a contento. As palavras não conseguem captar a essência das vivências mentais; quando muito, conseguem se aproximar dela. Esse limite da representação aumenta no caso de situações traumáticas, que mobilizam muito sofrimento psíquico. Nesse contexto, a interface entre conteúdos irrepresentáveis e transmissão transgeracional, o irrepresentável diante do horror e a psicocriminologia fazem parte desse rol. Inclusive no campo da arte, o horror inimaginável e irrepresentável se faz presente (Castrillo, 2020). Todavia, vivências psíquicas em torno do sublime também produzem o irrepresentável. A delicadeza de alma de uma relação amorosa verdadeira e profunda, a nobreza de uma doação anônima de grande quantia de dinheiro e a grandeza do jogador do time vencedor, que se solidariza com o jogador do time perdedor desvelam a vivência do sublime, para a qual, igualmente, podem faltar palavras.

Na psicanálise atual, o irrepresentável desdobra-se nas ideias de impensável, inominável, inefável, incognoscível, indizível e intraduzível (Winocur, 1999). Frente a isso, aparecem a representação, a simbolização, a mentalização, a metaforização e a semiotização como conceitos correlatos para se elaborar o irrepresentável.

Quanto à organização do artigo, os conceitos de um pensador podem ser inseridos em mais de uma seção. Assim, optou-se por colocá-los na mais pertinente delas.

O irrepresentável como noção subjacente à obra de psicanalistas

De acordo com Michels (2010), Freud investigou algumas figuras do irrepresentável: umbigo do sonho, repressão primária, cena primitiva, complexo de castração, dentre outras. Posto isso, faz-se necessário retomá-los em suas fontes originais.

Freud (1900) assevera que existe um umbigo insondável no sonho, seu ponto de contato com o desconhecido. Nesse ponto há um emaranhado de pensamentos oníricos, que não se deixa desenredar pela interpretação. Os pensamentos oníricos ramificam-se em todas as direções na intrincada rede do pensamento, da qual brota o desejo do sonho.

O complexo de castração aparece em Freud (1908), quando ele observa que as crianças teorizam que homens e mulheres possuem pênis e que a diferença sexual envolve pessoas com pênis e pessoas castradas. Em 1923, o complexo de castração é inserido na teoria sobre a sexualidade e relacionado com o estágio fálico e com o complexo de Édipo. A castração tem grande impacto sobre o narcisismo, visto que o falo seria essencial na imagem do eu e sua perda constitui uma ferida narcísica.

Freud (1915a) escreve que na repressão há a retirada da catexia pré-consciente, a retenção da catexia inconsciente ou a substituição da catexia pré-consciente por uma inconsciente. Uma anti-catexia/contra-investimento constitui a força de atração do material reprimido. A repressão afeta as ideias na fronteira entre os sistemas inconsciente e pré-consciente-consciente, empurrando para o inconsciente as ideias recusadas. A repressão primária garante a permanência da repressão e do material reprimido no inconsciente. Ao negar entrada no consciente ao representante da pulsão, fixa-se a ideia que não recebeu qualquer catexia/investimento do pré-consciente, mantendo-a no inconsciente como polo de atração para futuras repressões, ligadas à primeira ideia reprimida por elos associativos. Freud (1915b) destaca a irrepresentabilidade da morte no inconsciente, sendo impossível imaginar a própria morte. O inconsciente não crê na própria morte e se comporta como se fosse imortal.

No que se refere à cena primitiva, Freud (1918) pensa a concepção do sujeito por seus pais enquanto baliza de sua origem, evidenciando sua natureza irrepresentável. Com relação a isso, D’Incao (2012) aponta que do ato que fecunda a origem da vida - entre dois - não faz parte o ser que se engendra deste enlace. Esta cena dos pais, da qual o filho está excluído será vivida no sentimento de estar ou não incluído, ser ou não importante para o outro. Central ao seu narcisismo, o sujeito não foi convidado ao banquete de sua criação. O paradoxo nos dá origem e nos exclui como protagonistas, fazendo da cena primordial um tema prenhe de incógnitas para o sujeito. Na cena primária, protótipo de uma angústia arcaica, marca-se o enigma do que nunca se sabe o suficiente.

Zukerfeld (2011) examina os modelos não freudianos de funcionamento psíquico, que guardam relação com o irrepresentável. Sua lista alude aos conceitos acerca do que funciona numa ordem diferente da representação da palavra. Ele designa Bion com os elementos beta e a tela beta como aglomeração não integrada, Winnicott com o medo do colapso como rastro de signos que não pode ser simbolizado. Kaës quanto ao arcaico e à negatividade radical, Green no que se refere ao pré-psíquico, trabalho do negativo e cisão, Rosolato quanto ao desconhecido cognoscível e incognoscível, Lacan com o real como fora da linguagem e inadmissível a simbolização e Missenard com o não representável. Igualmente, esses conteúdos teóricos são aprofundados nessa sequência.

Em Bion (1963), os pensamentos são vistos como objetos mentais: concepções, pensamentos oníricos, pensamentos, elementos alfa e beta. As impressões sensoriais e emoções brutas formam os elementos beta, que não se conectam entre si. Nos estados emocionais sem diferenciação entre consciente e inconsciente, a tela de elementos beta forma uma aglomeração não integrada, visando produzir reações emocionais no outro.

Winnicott (1994) postula que o trauma implica um colapso na confiança no ambiente, no estágio de dependência quase absoluta. O medo do colapso remete ao efeito do trauma precoce e devastador com as angústias de aniquilação e as defesas na falha do ego de representar fatos inomináveis. O colapso descreve o impensável estado mental subjacente às defesas em relação às agonias primitivas, afigurando-se como medo da incontinência de ações perigosas ou inconvenientes, sensação de calamidade iminente, atos irracionais-ilógicos e medo da morte psíquica. Surgem as ansiedades psicóticas de desintegração, irrealidade, falta de coesão psicossomática, despersonalização e queda eterna. Resulta no fracasso na formação da personalidade e organização do ego.

De acordo com Kaës (2001), a transmissão psíquica pode apoiar-se no que falha e falta e, numa negatividade radical, na ausência de inscrição e de representação e no material psíquico sob estase, sem estar inscrito. Há a falha da metabolização psíquica do que liga o sujeito ao conjunto e o essencial da transmissão escapa à atividade de representação. Kaës (2017) informa que o enquadre recolhe e estabiliza os conteúdos psíquicos que emanam da parte psicótica da personalidade, possibilitando o processamento de suas partes diferenciadas. O enquadre funciona como depositário dos elementos arcaicos da psique - parte psicótica da personalidade. Esse material arcaico e originário rudimentar no psiquismo se diferencia da psicose.

Green (1998) propõe o trabalho do negativo realizado entre os extremos da repressão e da forclusão, em qualquer operação psíquica de transformação e nos processos de pensamento. Assim, o trabalho do negativo apresenta um aspecto estruturante e um aspecto patológico, quando o não-dito e o cindido atacam a coerência mental. Os aspectos normais estão vinculados ao eu-não-eu do começo da vida, aos objetos transicionais, ao holding e a algumas defesas. Os patológicos se relacionam à desmentida, forclusão e negação, que desinvestem o objeto na psicose. A transmissão transgeracional envolve aspectos negativados, não representados na mente dos pais e transmitidos para a mente do filho em estado bruto. Ocorre a abolição dos limites psíquicos e do espaço subjetivo central para o trabalho do negativo e para as constituições subjetivas saudáveis, cujos efeitos são observados nos quadros clínicos que envolvem diversas figuras do negativo.

Lacan (1975) concebe o real como fora da linguagem e inacessível à simbolização. A barreira que detém o sujeito diante do campo inominável do desejo radical, campo da destruição absoluta, é a estética identificada com a experiência do belo.

Rosolato (1991) expandiu a noção de relações de objeto para abranger o mistério do desconhecido. As atividades exploratórias e criativas - incursões em um mundo desconhecido - demandam enfrentar o medo do desconhecido. Esse medo é deflagrado quando se dá os primeiros passos em território novo/desconhecido. A relação com o desconhecido conceitua uma área além da ansiedade de castração, com ansiedades de separação, de vazio e de morte. A relação do desconhecido não se associa ao desejo e nem à pulsão, afirmando a importância da relação com a mãe, a dimensão do originário nas vivências corporais, registradas nos significantes não linguísticos, analógicos ou demarcatórios. Os significantes de demarcação instituem a primeira matriz de representação na esfera olfativa, tátil, gustativa, motriz, intero e proprioceptiva. A relação com o desconhecido cognoscível consiste no movimento em direção ao desconhecido do mundo. O desconhecido incognoscível implica o não conhecido ou não reconhecido no inconsciente. Esse não sabido do inconsciente que não pode ser abolido, relança o desejo.

Missenard (1991) indica que o desejo inconsciente remete ao reprimido -constituído por representações verbais antes conscientes - e ao que nunca foi representado, permanecendo não representável através de palavras. O reprimido e o não representável situam-se no cerne do funcionamento psíquico primitivo e constituem a substância comum da relação mãe - criança. Na transmissão transgeracional, o negativo do pai é transmitido ao filho e determina sua patologia. Ao transmitir algo não significado, provoca uma fissura na significação - transmissão do negativo para a próxima geração.

O irrepresentável, o irrepresentado, o representável, o indizível e o impensável

Expõe-se, de início, as contribuições de um autor, que oferece explicações fundamentais para entender a questão do irrepresentável. Os demais autores enfocam o conceito de irrepresentável em sua especificidade e o interligam a outros próximos a ele.

Fuks (2010) esclarece que o trauma se caracteriza pelo excedente de angústia, devida a eventos que ameaçam a vida. A angústia catastrófica avassala o eu e impõe um estado de estupor, paralisia e desamparo no sofrimento irrepresentável, impensável e indizível. Não transformadas em representações, as impressões traumáticas passam pela compulsão de repetição. As falhas na relação com a realidade e na produção de sentido se ligam ao não fluir do tempo, ao não saber quem se é e se se está vivo ou morto.

Duparc (2001) pensa que as representações comportam diferentes níveis de maturidade, de modo que o irrepresentável relativo comporta graus. O irrepresentável remete à falta de representação, ao irrepresentável relativo sob certo aspecto e ao conteúdo refratário à representação. O irrepresentado remonta ao material ainda não representado, com potencialidade representacional. O núcleo irrepresentável origina a compulsão à repetição de um auto-erotismo faltante. No contato face a face, a representação visual do rosto pode auxiliar a representação dos afetos irrepresentáveis. Existem núcleos traumáticos irrepresentáveis não tratados pela fala, sem função de representação. O irrepresentável é elaborado a partir de representações mais estáveis de nível superior: prazer/dor, presença/ausência, apoio ou queda no vazio, fala e silêncio - retomadas no nível das imagens e das representações verbais.

Botella e Botella (2002) concebem a representação como elemento representativo em uma cadeia de representações. A sucessão de representações faz com que um elemento seja considerado representação. A perda do objeto perceptivo de satisfação cria a necessidade de representação e na ausência do objeto se investe na sua representação. O irrepresentável ocorre na ausência do olhar do objeto, um estado desorganizador de não-representação. O trauma deriva da impossibilidade do sujeito se representar quando não investido pelo objeto. O traumático é irrepresentável, pulsão de morte e desligamento. O conteúdo traumático repetido como traço demanda ser metabolizado, como representação psíquica. A não-representação funda o aparelho psíquico, sendo que o trabalho com o trauma mobiliza a formação do representável.

Em Berenstein (1997), a representação está associada à origem da psique, sendo derivada de experiências infantis precoces, que correspondem à situação de excitação. Os termos representável e irrepresentável são dois tipos de fatos mentais - registros que constituem a subjetividade. O representável corresponde ao registro em um momento originário infantil, ao qual remetem as significações posteriores. O irrepresentável não remete à representação inconsciente e não tem inscrição, sendo indizível. O irrepresentável é efeito de efração e aparece como falta de representação, impensável, sem poder ser representado. O irrepresentado não remete ao inscrito como vivência de satisfação ou resulta de sua destruição. Dentre os irrepresentáveis, há a alteridade/exclusão do radicalmente alheio do outro e a eliminação radical do não semelhante social, religioso ou étnico. Outro irrepresentável provém do corpo não coberto pela representação da pulsão, território do mais além do princípio do prazer. Outro irrepresentável provém do mais além do princípio da realidade, trauma social no mundo social e cultural. O irrepresentável se liga à imposição do outro singular e do conjunto de outros do mundo social. Atua como presença estranha no registro psíquico do alheio. O vínculo é produtor de subjetividade a partir do alheio do outro, irrepresentável pelo eu. Logo, o irrepresentável surge no vínculo do eu com o outro, cabendo representar o vínculo que se inscreve no eu. O trabalho com o irrepresentável consiste em realizar sua inscrição inconsciente, passando a ser representação e deixando de ser irrepresentável.

Marucco (2013) aborda a coexistência de diferentes zonas psíquicas, que se expressam através de diversas formas de repetição. Nessas zonas psíquicas, encontram-se o representável, o não representável e o irrepresentável. O representável descreve o campo da representação, cujas repetições representativas se vinculam ao complexo de Édipo - através da compulsão à repetição erótica. O campo do não representado faz alusão à zona narcisista vinculada à relação com o outro e com o ideal. Diante do trauma de desamor, a criança cria um ideal ao qual consagra amor e essa construção idealizada é irrepresentável. O instante traumático se instala como realidade e eterniza o momento do desdém para manter a ilusão idealizada. Dadas as vivências não significadas, pela não ligação com o processo secundário, surgem repetições não representáveis e irrepresentáveis. O irrepresentável surge na zona psíquica constituída antes da linguagem, nos momentos originários da psique nos quais a pulsão visa a descarga no ato ou no corpo. O irrepresentável implica que impressões do mundo e do outro não são inscritas. A análise abre para a criação de novas representações implicadas na dimensão do desejo.

O irrepresentável em diferentes contextos e na patologia

O irrepresentável pode se descortinar no ambiente prisional, nas psicoses e nas situações emergenciais, dentre outras.

Balier (2005) discute a possibilidade de mentalização em pacientes presos em sua violência pessoal e na violência institucional das prisões. Acontecimentos traumáticos vividos desde muito cedo geraram a ameaça de aniquilação, quando um excedente da excitação invadiu o ego. Nessas identidades fragmentadas, impulsos agressivos intensos emergem assim que surge a frustração. No nível primário de organização do eu vigora o vazio da inexistência da criança aos olhos dos pais, a ausência de investimento narcísico e afetos irrepresentáveis. Manifestação de violência extrema, o recurso ao ato surge como necessidade imperiosa de aniquilar o objeto de forma onipotente, reduzindo-o à condição de coisa. O ato de poder prova sua existência, mas ele o esquece até que novo confronto com sua inexistência conduza a outro ato - sobre um objeto substitutivo dos pais. A cisão do ego põe de lado a parte mais frágil e mais violenta, para não ser exposto ao sofrimento intolerável do vazio. A clínica do vazio - de sentido, de representações e de emoção - desafia a capacidade de pensar os comportamentos violentos e traduzí-los em palavras. Logo, a psicocriminologia se conjuga à humanidade do inumano. Com relação a isso, Vidit (2006) assevera que a violência e a destrutividade não são uma categoria nosográfica circunscrita, mas são constituintes do fato humano.

Di Rocco (2009) entende que, na psicose, o sujeito guarda o traço irrepresentável de uma experiência traumática - não subjetivado, não apropriado, não representado. A psicose bloqueia vários registros representativos e modos de significação pela cisão e pela fragmentação. Ela impulsiona a escuta sensorial e de mensagens potenciais, que escapam à representação verbal. Lauru (2008) acrescenta que a psicose na adolescência é a complexificação da história familiar ligada a um segredo. Quando o adolescente tenta desvendar o segredo de sua origem, episódios psicóticos podem impedi-lo de simbolizar sua história. O indizível das origens bloqueia o acesso à verdade e ao conhecimento do sujeito. Ele se depara com o muro simbólico da representação impossível de sua origem.

Klein (2008) questiona a reconstrução da vida da criança no caso de traumas irrepresentáveis. A arteterapia é fonte de criação, pois ela pode transferir seus terrores para objetos animados e inanimados. Ela simboliza a circularidade pós-traumática, apesar da dificuldade de representar o objeto. Trabalhar suas produções imaginárias, sem revelar seus sentidos inconscientes, configura a viagem de superação do horror das provações insuportáveis. Ela passa da condição de objeto de abuso a de sujeito de sua vida.

Skrivan (2015) aponta que o trauma envolve arrombamento, invasão, dissociação do eu e negação de elementos que tinham valor e significado. Seu aspecto bruto resvala para o sentimento de desconexão do outro, na vivência do irrepresentável. Na origem da solidão existencial intensa, está a incapacidade das representações de dar sentido ao evento e a dificuldade de comunicar completamente a vivência. A atuação do psicólogo emergencial visa o reforço do ego para conter a invasão traumática no encontro humano entre terapeuta e paciente. Deve restaurar funções de contenção e partilhar o indizível numa colegialidade simples. A psicologia de emergência depara-se com questões suscitadas pelo trauma. A proximidade da morte deflagra o sentido do ser e a finitude.

O irrepresentável na literatura

Silva (2003) observa a repetição de tragédias familiares, no campo da literatura. Nelas, os sujeitos são imobilizados pela transmissão de fenômenos traumáticos irrepresentáveis, passiveis de atravessar várias gerações da família.

No tocante a isso, a genealogia de Édipo vai de Tântalo a Ismênia. Tântalo, testou a capacidade dos deuses de saberem tudo, assassinando seu filho Pélope e servindo-o como jantar para eles. Tântalo sofre eternamente no Inferno, sendo tentado a satisfazer sua fome e sede com água e frutos, que parecem estar a seu alcance, mas que se retraem quando ele tenta pegá-los. Pélope é ressuscitado pelos deuses. O rei Enomaus desejava guardar sua linda filha para si. Qualquer pretendente tinha que competir com ele numa corrida de carruagens; se o pretendente ganhasse, podia casar-se com ela; se perdesse, ele era morto. Pélope substituiu as barras de cobre da carruagem do rei por outras de cera, ganhou a corrida e o rei morreu. Pélope tinha dois irmãos, Atreus e Tiestes. Tiestes roubou o carneiro de Atreus, com pelos de ouro. Atreus assassinou os dois filhos de Tiestes e serviu-os como alimento para Tieste. Pélope tinha um filho, Crisipo. O jovem Laio encontrou abrigo na corte de Pélope, mas seduziu Crisipo. Como castigo, o oráculo de Delfos disse a Laio, que ele seria morto por seu filho. Para impedi-lo, Laio mandou perfurar os calcanhares de Édipo, atar seus pés e abandoná-lo no deserto. O pastor fingiu tê-lo abandonado e outro pastor levou Édipo a um casal de reis, que o criou como filho. O oráculo de Delfos disse a Édipo que ele assassinaria o pai e desposaria a mãe. Pensando que os reis fossem seus pais, Édipo não voltou para casa. Numa encruzilhada, ele matou Laio. Chegou a Tebas, resolveu o enigma da Esfinge e libertou a cidade. Como recompensa, casou-se com a rainha - sua mãe viúva, Jocasta. Quando a verdade foi descoberta, Jocasta suicidou-se e Édipo perfurou os olhos. Numa guerra, os filhos de Édipo mataram um ao outro. Antígona enterrou-os contra as ordens do Rei Creonte e foi morta. A única sobrevivente da família de Édipo é Ismênia, irmã de Antígona. A tragédia de Ricardo III se passa no final da Guerra das Rosas (1455–1485), disputa pelo trono da Inglaterra entre a Casa Real de York e a Casa Real de Lancaster. Ricardo, Duque de Gloucester, elimina seus adversários, trama complôs e trai familiares. Ele mata o sogro e o marido da mulher, que seduz e se casa se com ela para chegar ao trono. (Silva, 2003).

O irrepresentável na violência sexual

Bessoles e Lago (2010) inscrevem o trauma sexual na ordem do irrepresentável. Sua clínica implica a interpretação de seus danos e de suas formas de manifestação: somatizações, déficits de aprendizagem, comportamento agressivo, manifestações difusas no campo sensorial e cinestésico. O trauma sexual é um trauma dos afetos e das impressões sensoriais mais rudimentares. Seu conteúdo guarda as aglutinações sensoriais e sensitivas do evento. Seu espectro de representabilidade compreende a faixa representável e a faixa irrepresentável impensável. Situa-se na interface entre o sensível e o senso. Sua saturação conduz a hemorragias de afetos inassimiláveis pela psique. Abrandar essa torrente sensorial implica passar do sensível ao senso/avaliação.

Para Maia (2005), o estupro como arma de guerra é uma violência tão invasiva que impossibilita à mulher a escolha quanto ao seu próprio corpo, sendo usada como instrumento em uma batalha, com propósito de exterminação e destruição. Assim, o maior problema frente à tentativa de narrar o horror diz respeito à sua irrepresentabilidade: a experiência do horror é incomensurável e nenhuma palavra pode fazer jus a ela.

O irrepresentável no trauma coletivo

Passando-se da violência sexual para o trauma coletivo, constata-se a extensão e a intensidade do sofrimento humano quando um regime de terror é imposto a um grande número de pessoas.

Fuks (2010) pontua que muitos trabalhos sobre a representação da catástrofe, especialmente a partir da literatura de testemunho sobre os campos de concentração, iniciam-se com a afirmação de que não é possível narrar o terror, que é inenarrável. Quanto a isso, os traumas históricos afetam a autoconservação e a autopreservação. Frequentemente a autoconservação tem como preço, o sacrifício da autopreservação identitária, resultando na identificação com o agressor. Essa lógica complexa do trauma se magnifica nas catástrofes sociais históricas - na estratégia das estruturas totalitárias e das ditaduras latinoamericanas. Os traumas naturais e as enfermidades tendem a solidarizar o conjunto social. Os regimes totalitários o fragmentam para controlá-lo e massificá-lo através do terror. Na subjetividade do filho, fatos que afetam as figuras parentais tornam-se inelaboráveis, pela dificuldade de esclarecê-los e de comunicá-los.

Seligmann-Silva (2008) afirma que a literatura de testemunho, por sua relação com o trauma e o irrepresentável, descortina outra face da literatura, que trata de eventos fora da representação, da simbolização e do sentido. Testemunhar implica um imperativo político e ético de dar voz aos sobreviventes, quanto a relatarem o trauma para se libertar dele. Porém, para descrever a catástrofe, é preciso renunciar a quaisquer floreios estéticos. Sebald (2011) afirma que a produção de efeitos estéticos e pseudoestéticos, com base nas ruínas de um mundo arrasado, rouba da literatura sua legitimidade.

Sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi (1990) disse que nossa língua não possui palavras para expressar a ofensa que significa a aniquilação de um homem. Ao mesmo tempo, é imperioso fazê-lo. ‘Fomos capazes, nós sobreviventes, de compreender e de fazer compreender nossa experiência?’ (p .17). Eis o paradoxo sobre o qual se ergue todo testemunho: o testemunho do sobrevivente repousa sobre a impossibilidade de narrar aquilo que é essencial e o reconhecimento dessa impossibilidade (Agambem, 2009).

Atchabahian (2022) descreve a transmissão transgeracional de resíduos traumáticos irrepresentáveis, decorrentes da ditadura militar brasileira de 1964 a 1985. A não inscrição do trauma histórico no discurso social, o desmentido dos crimes e sua falta de reparação pelo estado brasileiro bloquearam sua elaboração psíquica, tornando-o irrepresentável. Sua metabolização consiste na produção da representação que possa bordejar o caráter irrepresentável do trauma, numa nova forma de laço.

Fiorini (2008) analisa os efeitos psíquicos da violência de estado na Argentina entre 1976 e 1982, focando o desaparecimento de pessoas - resultante do extermínio para gerar o terror massivo. O vazio irrepresentável no psiquismo impossibilita o luto. Quando a inscrição psíquica é impedida, gera o irrepresentável ou dificilmente representável nos traumas massivos. O trauma social massivo corta os laços sociais, cabendo reativá-los - reconhecimento do outro, responsabilidade, solidariedade. A imaginação criadora introduz uma dimensão de esperança, de projeto vital e de investimento no futuro. Para promover mudanças, há uma zona de jogo, de criatividade de poiesis, de produção do novo. O trabalho psíquico para aceder às representações do impossível demanda investir em mundos simbólicos alternativos. As representações no encontro com o não representável criam novas significações. Há a transição do trauma para as representações, do vazio psíquico às historicizações e construções, das construções às desconstruções, das identificações massivas às desidentificações, do presente atemporal ao futuro e da submissão à imaginação criadora - para recuperar o trauma dos desaparecimentos.

Antonello (2016) lembra que o outro supre a condição de desamparo da bebê e faz a mediação entre suas necessidades pulsionais e o mundo externo. A ausência do cuidador implica o retorno do bebê ao desamparo, culminando num processo traumático. No jogo, a criança encena vivências de desamparo e controla elementos irrepresentáveis. No âmbito do testemunho, a literalidade é a forma pela qual se aproxima do inimaginável. A literatura de testemunho se apoia sobre um paradoxo: a necessidade de escrever o que é impossível de ser escrito e de narrar o impossível de narrar. O paradoxo é um sinal da dissociação traumática: o sujeito procura aproximar seu relato da vivência, mas tem a sensação de tangenciá-la. A radicalidade do trauma deixou o sobrevivente, desamparado, vulnerável e sem conseguir expressá-lo em palavras. A literatura de testemunho cria um lugar para o irrepresentável, sem inscrevê-lo em representações.

A esse respeito, Viñar (2011) advoga que, em seu modo de operar, a tortura vai muito além da crueldade e do mau trato físico e moral. É desenhada para destruir a constelação identificatória da singularidade. A demolição subjetiva demanda destruir toda resistência que seja indício de um pensamento próprio e destruir a intimidade e a identidade.

O trauma advindo da tortura praticada pelo estado envolve o horror do que o homem faz ao homem e os campos de extermínio nazistas são paradigmas do horror. Os efeitos do terror político remontam ao frágil começo da vida e suas vivências de desamparo e de aniquilação. A tortura, os desaparecimentos, as guerras e os genocídios não geram experiência nem aprendizagem, mas vazio representacional. Diante da desmesura do horror da violência de estado e de seus efeitos nefastos no psiquismo e no corpo social, faz-se imprescindível sua reparação psíquica. O sobrevivente desses traumas precisa se tornar o narrador de sua experiência e ter uma testemunha que o reconheça.

Puget (2006) denomina impensável a incapacidade de digerir, de assimilar, de introjetar a alteridade e a catástrofe simbólico-material. Nos estados de violência das ditaduras ou regimes totalitários, se põem em marcha processos de aniquilação que afetam a integridade do sujeito e da sociedade. Deste modo, surgem espaços vazios de significação, que utilizam o medo e o horror como ferramentas de controle e submetimento social. Surge um terror impensável, indizível e inapreensível no cotidiano. O impensável é da ordem do vazio, do desejo, do oco, da ferida, oriundo de percepções que despertam emoções intoleráveis ligadas ao sinistro, ao vazio, à perda de limites e à repetição, numa zona de horror e de catástrofe não imaginável. Seu lugar é o da loucura e da morte, que podem levar aos fenômenos mentais aniquiladores. O impensado reúne vivências sem significação porque o contexto se tornou incompreensível e incoerente.

No dizer de Kaës (2006), a catástrofe psíquica ocorre quando as modalidades usuais para lidar com a negatividade da experiência traumática são insuficientes, pois não podem ser utilizadas devido a relação entre a realidade traumática interna e o ambiente. Na catástrofe psíquica, impera a dependência narcísica e a violência sobre as relações recíprocas dos sujeitos e do grupo. Nesta conjunção, uma coprodução traumática afeta o espaço psíquico compartilhado: o sujeito do trauma é traumatizador, para quem compartilha com ele um envoltório narcísico comum, transsubjetivo e inerente a cada psique. O trauma vivido por um adquire o valor de memória traumática insuportável e de ferida narcísica incurável para o outro. A catástrofe psíquica deve seu efeito desorganizador à impossibilidade de preservar no próprio inconsciente ou no do outro, o peso e a representação do trauma, devido à destruição dos continentes internos e externos. O primeiro ato de violência social catastrófica é estabelecer o terror ao desmantelar o pensamento. A abolição da ordem simbólica confere ao objeto desaparecido o status enlouquecedor de representação fantasmática. A angústia suscitada pelo terror não pode ser reprimida, projetada, nem ligada a representações de coisas e palavras, nem encontrar representações e objetos no simbolismo linguístico e social. O ataque à identidade da espécie e da sociedade é um ataque à ordem simbólica. Diante de rupturas catastróficas, o grupo constitui, fator de envolvimento, defesa e apoio narcísico partilhado. Os totalitarismos reduzem o sujeito à condição de elemento isolado, anônimo, objeto submetido a um conjunto dominador onipotente. Todavia, o sujeito da realidade psíquica, herdeiro de identificações e de indicadores identitários, se opõe à violência do estado.

Nos campos de concentração nazistas, Bettelheim descreve o extremo desamparo, a ruptura da continuidade narcísica e das relações objetais e a ameaça à atividade psíquica de ligação. Sua decisão de observar seu comportamento e dos companheiros se deveu à necessidade de sobreviver. Estimulados pelo interesse de Bettelheim por si e por eles, confortados no seu amor próprio, os prisioneiros falavam de si e sentiam o prazer desse apoio. Seu estado inicial de desamparo incluía a perda brutal dos direitos civis, prisão ilegal, choque pelos primeiros atos de tortura. Diante de traumas extremos, as diferenças no comportamento dependiam da classe socioeconómica e da confiança numa ideologia, numa cultura, num ideal forte e coerente. A forma eficaz de romper a opressão nazista foi formar grupos de resistência com pessoas independentes, maduras e autoconfiantes, em que cada membro reforçava sua resistência confiando nos outros. Sem o grupo teria sido extremamente difícil não ser submetido à desintegração da personalidade. O trauma causado pela ditadura abarca o desaparecimento de pessoas e a imposição do silêncio, da culpa e da negação, abalando os vínculos, o pensamento e a identidade. As famílias deviam declarar a pessoa desaparecida morta, esquecer o passado e considerar a dissidência política como desajuste social e causa de confinamento por transtornos mentais ou comportamento antissocial. Essas condições de sobrevivência geraram a cisão entre si e a realidade. Porém, certas figuras da morte - assassinato e desaparecimento de pessoas implicam a espécie, os vínculos genealógicos, os conjuntos transsubjetivos - fundamentos narcisistas da continuidade da vida. Nessas catástrofes sociais, o trauma destrói a confiança e transforma suas vítimas em estrangeiras de uma história, da qual não podem se apropriar. O luto se desdobra numa inscrição coletiva, social, cultural ou religiosa, sendo sustentado por atos rituais e enunciados sobre a origem, a morte e a sucessão de gerações. Nesse sentido, não existe um luto estritamente privado, embora ele seja uma criação que atinge a intimidade e a singularidade do sujeito. O luto é possível se for apoiado por uma inscrição política - não apenas social dos desaparecidos. Consiste na elaboração coletiva e individual no après-coup do trauma sem nome, da perda impensável, do luto impossível da sociedade. A rememoração compartilhada é necessária para a criação da história, sendo essencial a confiança entre as pessoas (Kaës, 2006).

Caruth (1996) expõe que o resultado do trauma é o enigma da sobrevivência, que porta as insígnias do irrepresentável - da pulsão mortífera. A análise propicia a inscrição psíquica das impressões traumáticas, transformando o insuportável em inconciliável e o terror irrepresentável em conflito entre representações inconciliáveis. A transferência atualiza o insuportável e transforma o terror em força de criação. Elaboram-se formas de se aproximar do horror, costeando o irrepresentável da violência.

O irrepresentável na transmissão transgeracional

Os conceitos de transmissão psíquica e de trauma transgeracional ajudam a entender o irrepresentável e os aspectos traumáticos reprimidos ou cindidos na psique. Para examinar essa problemática, inicia-se com dois autores, que abriram caminho nas pesquisas sobre o trauma ancestral na família.

Abraham e Torok (1995) mostram como a dissociação e a recusa originada na vergonha conduz à formação da cripta. A cripta psíquica denomina o enterro intrapsíquico de uma vivência vergonhosa e indizível, traduzindo num fantasma de incorporação, resultante de um segredo inconfessável. Ela incorpora as marcas dos acontecimentos recusados e os pensamentos e afetos, que não puderam ser formulados ou abreagidos. O espaço críptico funciona como lacuna psíquica no discurso, como não lugar, sobredeterminando sintomas, fenômenos alucinatórios ou episódios delirantes. São os rastros ou restos de conteúdos irrepresentáveis e encriptados.

Na vertente transgeracional, o irrepresentável adquire uma conceituação singular, na qual a violência do trauma se alicerça no legado familiar.

Eiguer (1997) acentua que os conteúdos irrepresentáveis derivam do desinvestimento materno - não absoluto. Uma corrente subterrânea investida fortemente aguarda a intermediação que faça surgir uma representação-coisa, a ser expressa. Escreve Eiguer (1998) que a teoria da relação de objeto da transmissão psíquica entre as gerações aborda a representação e o irrepresentável. A representação de objeto transgeracional liga-se à falta de representação, ao vazio, ao oco. Na clínica, o irrepresentável relativo é concebido na falta de uma representação, que um dia será conhecida, por meio da análise.

O irrepresentável na transmissão transgeracional do trauma do absoluto

O trauma do absoluto é caracterizado por representações como: ser abandonado, desamparado, rejeitado, devedor, para sempre e sem lugar no mundo, marcadas pela saturação de ódio e horror. Estas representações e afetos estão ligados a estados mentais de grande sofrimento psíquico e bloqueiam a realização do desejo do adulto. As representações favoráveis à realização do desejo são: ser amado, ser valorizado, ser inteligente, ser competente, ser valorizado, entre outras. Esse trauma aparece na família em que o ódio prevalece sobre o amor, sendo que um membro recebe conteúdos traumáticos de seus ramos paterno e materno (Almeida, 2003).

O sistema representacional é um aparato psíquico que representa impulsos, relações de objeto e estados mentais do sujeito. Em seus estratos inconscientes são produzidas as representações. Elas guardam relação com os conteúdos psíquicos absorvidos pela criança junto aos pais, que propagam conteúdos da linhagem antepassada. O sítio psíquico responsável pela representabilidade é seu estrato inconsciente, no qual os afetos investem as representações. A força do ódio e do horror/afetos disruptivos nesse estrato gera a falência de sua eficácia representativa. Esses gaps representativos fazem com que representações do trauma do absoluto se fixem no sistema - ser abandonado, ser desamparado e assim por diante. Sua função de representar as vivências psíquicas é prejudicada sob o impacto do trauma do absoluto (Almeida, 2003).

No cotidiano do sujeito, várias representações podem passar pela corrente da consciência. Contudo, a análise revela bloqueios nesse fluxo devido ao sobre-investimento de ódio e horror nas representações do absoluto, sendo bastante difícil elaborá-las. Nessa medida, o irrepresentável nos domínios psíquicos inclui os investimentos de ódio na ligação entre as representações. A falha na representação se interliga tanto à vivência em que se conjugam ódio-horror quanto à vivência do sublime. Esse curto-circuito no fluxo das representações favoráveis ao desejo tem como contraponto a representação do absoluto. Esta remete ao ódio parental ao filho e o ódio do filho aos pais, demarcando a irrepresentabilidade desse trauma. Porquanto, certas formas de relação imprimem lacunas no sistema representacional, visto que as vivências são inadequadamente representadas. As lacunas representacionais no estrato inconsciente do sistema têm como reverso o sobre-investimento de ódio nas representações do absoluto no estrato consciente. Nessa alteração econômica, há o sobreinvestimento de horror e ódio nas representações de si e dos pais - ser o filho abandonado de pais abandonadores-o sobreinvestimento de amor no objeto idealizado - ser magnífico, ser perfeito, ser um deus - e o subinvestimento de amor nas representações de seu valor e dos objetos primários - ser o filho inteligente de pais inteligentes (Almeida, 2003).

Essas falhas nas representações do trauma do absoluto dialogam com elementos do pensamento de alguns autores.

Nicolaidis (1989) aponta o fracasso da representação em atenuar uma lembrança traumática ou esta lembrança se torna traumática por ser irrepresentável. Uma paciente era inanalisável na medida em que sua depressão e seu ódio não podiam ser ligados às representações. Dessa forma, o deserto significante depende da qualidade e da intensidade dos fantasmas parentais histórico-mitológicos e do grau de edipianização da mãe. Sua adequação na formação do filho demarca a intensidade e duração do deserto significante. Conforme Safra (1999), pessoas formadas no horror são constituídas numa queda sem fim, no indizível. Paradoxalmente, enxergam o mundo a partir de uma profunda exclusão.

Green (1996) postula que o irrepresentável nomeia o que não pode ser inscrito como representante psíquico da pulsão e não pode ingressar na cadeia de representações inconscientes. Ele origina um excedente de energia, que se descarrega no corpo, no ato e no polo perceptivo. Green (1998) teoriza que o não representável é resultado do excedente de afeto provocado pela impossibilidade de representação pelo eu, causando sua implosão sob a forma de percepção odiada, que irrompe no irrepresentável. A clínica psicanalítica remete às falhas da atividade representativa nas estruturas neuróticas, à paralisia da capacidade de análise e à influência do irrepresentável nas formas extremas de angústia: o medo da aniquilação em Klein, o terror sem nome em Bion.

Botella e Botella (2002) dizem que o trauma configura uma não-representação, uma não ligação aos outros conteúdos mentais, um excesso de excitação e um vazio na trama das representações. Uma zona de sofrimento psíquico ultrapassa as possibilidades de representação e a violência dos afetos desorganiza o psiquismo. Essa desorganização provém da ausência de sentido, da violência, do excesso de excitação, do desamparo do self e da impossibilidade do ego representá-lo. A ameaça de aniquilação do self está além do desejo e da fantasia. Levy (2003) afirma que as situações traumáticas são o terreno das efrações, ausências das representações e perdas no aparelho de pensar que impedem as representações. Em algumas situações traumáticas, há vivências que, pela sua violência, sua invasão e seu desamparo, tornam-se intraduzíveis e produzem perturbações. Distúrbios nas representações revelam-se na repetição compulsiva de atos e imagens.

Discussão

A presente discussão demanda resgatar os vários elementos do irrepresentável, articulando-os de maneira crítica e abrangente. Numa primeira etapa, trabalha-se com autores encontrados nas secções anteriores à seção sobre o trauma do absoluto. Na segunda etapa, trabalha-se a interrelação entre os conceitos dos autores e as propostas da autora sobre esse trauma. Num entrelaçamento de concepções, Fuks (2010) vincula os traumas aos eventos que ameaçam a vida, sendo que uma angústia catastrófica avassala o eu e impõe o estado de estupor, paralisia e desamparo no sofrimento psíquico irrepresentável. Igualmente, Skrivan (2015) descreve a proximidade da morte na vivência do irrepresentável. Caruth (1996) expõe que o resultado do trauma é o enigma da sobrevivência, que porta o irrepresentável da pulsão mortífera.

Proporcionando uma entreconversa, Duparc (2001) interliga o núcleo irrepresentável ao auto-erotismo faltante. Eiguer (1997) acentua que os conteúdos irrepresentáveis derivam do desinvestimento materno. Botella e Botella (2002) pensam o irrepresentável na ausência do olhar do objeto, sendo que o trauma deriva da impossibilidade do sujeito se representar quando não investido pelo objeto. Também, Balier (2005) aborda o irrepresentável em eventos traumáticos precoces de aniquilação e de ameaça do vazio da inexistência da criança aos olhos dos pais.

Em Berenstein (1997), o irrepresentável é efeito de efração, da exclusão do radicalmente alheio do outro e provém do corpo não coberto pela representação da pulsão, do trauma social e da imposição do outro/outros. Segundo Marucco (2013), o irrepresentável surge nos momentos originários do psiquismo nos quais a pulsão tende à descarga no ato ou no corpo. Fiorini (2008) destaca o vazio irrepresentável no psiquismo, gerando o irrepresentável ou dificilmente representável nos traumas massivos. Conforme Lauru (2008), a psicose na adolescência se depara com o muro simbólico da representação impossível da origem familiar.

A seguir, a produção teórica dos vários autores dá ensejo a algumas articulações teóricas com o trauma do absoluto. Nesse âmbito, vale diferenciar o horror e o terror citado pelos teóricos. No trauma do absoluto, o horror designa a amálgama confusional entre ódio desmedido, pavor incomensurável e repulsa indescritível ao amor e ao objeto. O terror equivale ao pavor, enquanto enorme medo no contexto político mortífero. A repulsa é considerada uma das emoções inatas do ser humano em psicologia, de modo que o horror significa sua intensificação nas bordas do irrepresentável.

Em se falando do horror, Klein (2008) cita a demanda de superar o horror das provações insuportáveis. Maia (2005) trata do estupro, ligando-o ao horror e sua irrepresentabilidade. Viñar (2011) indica que o trauma advindo da tortura envolve o horror do que o homem fez ao homem nos campos de extermínio nazistas, paradigmas do horror. Puget (2006) adverte que a violência dos regimes totalitários envolve a aniquilação e o uso do medo e do horror como ferramentas de controle e submetimento social. O sinistro, o vazio, a perda de limites e a repetição ocorrem numa zona de horror e de catástrofe não imaginável. Caruth (1996) entrelaça o horror e o irrepresentável da violência.

O deserto significante de Nicolaidis (1989) remete à ausência de representação e os fantasmas histórico-mitológicos corresponderiam aos conteúdos transgeracionais, que comprometem a capacidade representativa de elaborar o trauma. Com base em Green (1998), interliga-se o irrepresentável ao ódio. No pensamento de Safra (1999), o irrepresentável se associa ao indizível e ao horror. Vários autores dialogam com a ideia da autora de que situações traumáticas se associam ao irrepresentável, ao ódio e ao horror.

Botella e Botella (2002) e Puget (2006) falam da zona psíquica irrepresentável ligada ao trauma e Levy (2003) associa o trauma às ausências nas representações. Eles apontam que o irrepresentável se liga à violência dos afetos, à catástrofe, à falta de ligação com outros conteúdos e que se situa fora da cadeia associativa. Safra (1999) e Puget (1991) ligam o horror ao indizível e ao impensável nas vivências traumáticas.

O aparelho de pensar as representações de Levy (2003) e a atividade representativa de Green (1998) são aparentados com o sistema das representações. Botella e Botella (2002) descrevem o excesso de excitação como alteração econômica do trauma, que pode ser ligada ao sobreinvestimento das representações no absoluto. Ao apontarem que a violência dos afetos no trauma desorganiza o psiquismo, tem consonância com Kaës (2001) que relaciona a necessidade de transmitir experiências traumáticas com a violência da herança psíquica. À medida que discutem a violência do trauma, eles se referem à pulsão de morte ou ao ódio - afeto do trauma do absoluto.

Não obstante os conceitos desses autores terem consonância com algumas ideias sobre o absoluto, tão somente Kaës (2001) enfoca o sofrimento transgeracional. Nos pensadores citados nas seções anteriores à seção sobre o trauma do absoluto, a intersecção teórica entre trauma, violência, horror e irrepresentabilidade fica evidente. Nas entrelinhas do pensamento dos autores encontrados na seção sobre o absoluto, o irrepresentável se associa ao trauma, ao ódio e ao horror. Exacerbadas na transmissão do trauma do absoluto, a catástrofe psíquica e a violência deflagram o ódio e horror, que desorganiza o sistema representacional.

Ademais, a representação do absoluto revela a tentativa do sistema de representar vivências que tangenciam o irrepresentável. Este se vincula a uma zona psíquica de ódio, horror e pavor às figuras parentais. Ele deriva da sobrecarga do ódio e horror nas representações do absoluto e de sua fixação no sistema. A representação do absoluto densamente investida como que ‘suga’ as representações coerentes com o desejo da rede associativa. O irrepresentável remete ao desejo do sujeito - visto como impossível de ser realizado por ele - de ser amado, ser valorizado, ser acolhido, ser autônomo, entre outras. Essas representações coerentes com o desejo - essenciais para sua atualização na vida adulta - estão fora da cadeia associativa. Por força da repetição de traumas no vínculo pais-filho na família, algumas áreas do sistema foram reduzidas a zonas irrepresentáveis. O horror designa a confusão mental diante do ódio, do pavor e da repulsa ao amor, que formam o irrepresentável. O ódio no estrato inconsciente do sistema abala sua capacidade representativa e gera as zonas mentais irrepresentáveis. Em contrapartida, a mudança psíquica do trauma do absoluto depende das operações mentais com as representações, da redistribuição do amor e do ódio nelas, da mudança do ódio para o amor e da reversão qualitativa do horror para o sublime nas ligações afetivas. A análise precisa favorecer o investimento de amor em novas representações do valor do sujeito e dos objetos primários. Trabalhando-se as representações desarmônicas com o desejo no absoluto, as zonas irrepresentáveis do sistema vão sendo representadas e surgem novas cadeias associativas. Gradativamente, as configurações mais verdadeiras do desejo se consolidam, incluindo novos sentidos do eu e novas relações com o mundo e a realidade. A reinvenção identitária do sujeito torna-o autor de sua vida, de forma que ele assume e realiza seu desejo no mundo das relações. Em suma, emerge um fluxo ‘natural’ e potente do desejo para a ação, na realidade compartilhada com seus pares.

Considerações finais

A investigação do conceito de irrepresentável demandou entrar em contato com a clínica psicanalítica, o horror dos crimes contra a humanidade e da morte nos campos de concentração, o trauma transgeracional e o trauma transgeracional do absoluto. De modo geral, o irrepresentável nomeia o material psíquico que não consegue se ligar à cadeia das representações. O irrepresentável, ainda que desvinculado dessa cadeia associativa e dos processos secundários, mantem sua eficácia produzindo efeitos deletérios sobre a propriedade representativa do sistema. Nessas condições, a cisão separa o material irrepresentável do material psíquico originário e reprimido. Por isso, o ego não consegue entrar em contato com os elementos irrepresentáveis e elaborá-los.

O trauma do absoluto indispõe o desejo do sujeito contra sua satisfação, devido à concentração do ódio e do horror em suas representações e ao material irrepresentável de cunho familiar, que o caracteriza. Para acender às representações harmônicas com o desejo, é preciso permitir a mudança de suas representações, trabalhar essa concentração afetiva e dar acesso ao desejo mais recôndito e verdadeiro do sujeito.

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 06/02/2024
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