As proto representações do sofrimento psíquico

Introdução

Este trabalho almeja investigar as proto-representações do sofrimento psíquico na família, pautando-se em conceitos psicanalíticos e em hipóteses de trabalho da autora como o desejo, os traumas e o sistema representacional. Ele faz uma interlocução com o texto Herança transgeracional: a circularidade e a concentração do trauma (Almeida, 2008). Quanto aos conceitos psicanalíticos, há alguns correlatos às proto- representações, bem como outros que se ligam a elas de forma indireta: inconsciente originário, material originário, registro arcaico e simbolização primária, entre outros. Para estudá-las, algumas proto- representações do sofrimento psíquico encontradas em situações do cotidiano e da clínica psicanalítica são descritas. No cotidiano, surgem: ‘eu trouxe você para esse mundo e posso tirar você dele’ e ‘só tive você para redução de impostos, mas você só me traz gastos e prejuízos’, dentre outras. Na clínica, aparecem: ‘Filhos trocados por m... ainda saem caro’, ‘Eu dei meu sangue, meu suor e meu sacrifício pra você estudar e só recebo patada e resposta besta’ e ‘Eu te passei o pior’. Elas são investigadas com base na clínica extensa (Herrmann, 2005) e na pesquisa com o método psicanalítico (Figueiredo e Minerbo, 2006).

O material empírico deriva dos casos clínicos do artigo mencionado e da seleção aleatória das proto-representações no cotidiano feita pela autora, seguida de sua análise, visando produzir novas ideias sobre elas. Várias seções desse estudo - interligadas entre si - permitem obter uma melhor compreensão desse tema.

Ideias iniciais

Em se pensando a constituição do psiquismo, em seus aspectos mais arcaicos, deve-se atentar a algumas questões. Nos primórdios da psicanálise, encontram-se as noções implícitas de inconsciente originário, continente originário e vida proto-psíquica. Outros autores desenvolveram conceitos em ressonância com as proto-representações.

Freud (1915) estabelece que todo material reprimido tem de permanecer inconsciente, mas o material reprimido não cobre todo o inconsciente. O inconsciente [originário] tem um âmbito maior considerando-se seus impulsos inatos, de modo que o conteúdo reprimido é uma parte do inconsciente. A seguir, Freud (1919) atesta que os homens neuróticos declaram haver algo estranho no órgão genital feminino. Esse lugar unheimlich/estranho é a entrada para o antigo heim [lar] de todos os seres humanos, no princípio. Sendo assim, o útero materno - continente originário - fundaria a representação imaginária da matriz psíquica que envolve, protege e sustenta o bebê. E, mais, Freud (1926) pontua que há maior continuidade entre a vida intra uterina e a primeira infância do que nos faz crer a notável ruptura do ato do nascimento. Desse modo, a referida continuidade entre a vida fetal e a vida após o nascimento dá margem à hipótese de uma vida proto-psíquica no pensamento freudiano. Ele teria traçado os fundamentos de uma teoria do registro arcaico na vida psíquica.

Brun (2014) afirma que a teoria psicanalítica sempre se interessou pelos processos psíquicos iniciais e pelos vestígios de experiências primitivas no funcionamento psíquico. Em vista disso, o trabalho com as formas primárias de simbolização foi desenvolvido na contemporaneidade. Muitos psicanalistas pensaram as primeiras experiências sensório-afetivo-motoras na relação com o objeto mediante o sistema protomental de Bion, o objeto aglutinado de Bleger, o pictograma de Aulagnier, o significante formal de Anzieu e as proto-representações de Pinol-Douriez. A maioria desses psicanalistas teve experiência clínica com a psicose e sua abordagem terapêutica demandou novos conceitos.

Nessa clave, Carvalho (2011) descreve que a vivência emocional e afetiva desempenha papel relevante na passagem do mundo protomental das sensações para o mundo das representações mentais. A experiência interna e externa, bem como sua representação mental têm início nas proto-representações, base de acesso à vida da fantasia, ao sonho e ao imaginário. A génese dos representantes psíquicos, referidos como significantes arcaicos, é designada como elementos beta de Bion (1991), pictogramas de Aulagnier (1981), significantes formais de Anzieu (1987), significantes enigmáticos de Laplanche (1987), significantes de demarcação de Rosolato (1985), representações semióticas de Kristeva (1985) e proto-representações de Pinol Douriez (1984).

Tendo em vista as afirmações das autoras, faz-se necessário apresentar as concepções dos referidos psicanalistas.

Para Bion (1991), o sistema protomental é um sistema em que o físico e o mental são indiferenciados ou indistintos. Nessa matriz emocional se originam fenômenos, que parecem ser sensações difusas, vagamente relacionadas entre si. Essas sensações, ainda sem forma, podem assumir uma forma psicológica - sentimentos, emoção - ou física. Nesse sistema, as características biológicas, mentais e sociais são interdependentes e indiferenciáveis. Em sua teoria do pensar, quando o ódio resultante da frustração não excede a capacidade do ego do lactante de suportá-lo, ocorre a sadia formação do pensamento mediante a função alfa, que integra as impressões sensoriais e suas respectivas emoções. A função alfa converte a experiência emocional em elementos alfa, base dos pensamentos oníricos. Para aprender com a experiência emocional, a função alfa precisa operar sobre a consciência acerca dela. No entanto, se o ódio for excessivo, os elementos beta/protopensamentos - experiências sensoriais primitivas e caóticas - não permitem a formação de pensamento e são acumulados no aparelho mental, necessitando ser evacuados. Indisponíveis para serem pensados, eles são atuados e evacuados por meio da identificação projetiva. Eles proliferam de forma caótica, não permitindo diferenciar consciente e inconsciente e fantasia e realidade. Esses elementos não podem ser reprimidos, suprimidos, aprendidos ou tornar-se inconscientes. Eles impedem a distância da impressão sensorial e dificultam o contato com a realidade, bloqueando rever suas distorções. O ódio ou inveja à função alfa impedem o contato consciente consigo e com o outro, como objeto vivo. As impressões sensoriais tomadas como coisas-em-si - não como representações - povoa o mundo representacional com objetos bizarros inanimados.

Bleger (1985) propõe que na psique, o objeto aglutinado engloba as porções do ego, que permanecem imaturas e as relações primitivas do ego com objetos, que permanecem indiferenciadas, nas quais não há discriminação entre interno e externo. Esse objeto aglutinado é percebido pelo ego como assustador e confuso, ameaçando-o de dissolução. Através da projeção do objeto aglutinado no outro é possível se distanciar dele e imobilizá-lo/controlá-lo, discriminar suas facetas e reintrojetá-lo no ego. Essa parte indiscriminada e indiferenciada pertence ao eu do sujeito e à realidade externa. É um conglomerado com experiências frustrantes e gratificantes, desde o início da vida do bebê.

O pictograma de Aulagnier (1992) tem como protótipo o encontro originário seio/boca: o seio inserido na boca faz parte do corpo do bebê e no registro originário a boca-seio constitui uma entidade única. Designa uma forma originária de representação: primeiro registro das percepções sem acesso à consciência. A partir dos efeitos do encontro com o corpo e as produções da psique materna, o psiquismo do bebê forja a primeira representação de si mesmo. Neste momento inaugural, as qualidades deste espaço são o prazer e o desprazer do afeto. A primeira intrincação representativa sujeito-objeto é o primeiro alvo a ser atingido por Eros e mirado por Tanatos. O pictograma se refere a um nível de representação não verbal inconsciente do encontro corporal do bebê com o cuidador - zonas erógenas e seus objetos parciais.

O significante formal de Anzieu (1987) constitui uma impressão corporal, uma sensação de movimento e de transformação, sentida pelo sujeito como exterior a ele e que não distingue sujeito e espaço externo. Os significantes formais remetem às proto-representações das configurações do corpo e dos objetos no espaço - e seus movimentos. Esses processos têm ancoragem na sensório-motricidade, apoiam-se no corpo da sensorialidade e colocam em cena o movimento. Ele descreve, sobretudo, os significantes formais que acompanham os movimentos patológicos, mas pontua os significantes formais positivos. São processos relativos as primeiras formas de apropriação subjetiva, que representam a transformação necessária para torná-la possível.

Laplanche (1992) assevera que certas mensagens enigmáticas do adulto geram uma tentativa de simbolização na criança, incapaz de compreendê-las, gerando restos inconscientes nela. O signo da percepção/primeira inscrição no aparelho psíquico é assimilado ao significante enigmático, que se deposita antes de qualquer tradução. A simbolização decorre do endereçamento enigmático do outro, que procura penetrar na consciência. ‘O inconsciente é outra coisa em mim, o resíduo recalcado de outra pessoa’. Este significante enigmático comporta elementos de ligação e de desligamento, mediante elementos de amor e cuidado e de instabilidade e agressão, respectivamente. A introjeção, anterior à identificação, implanta os significantes enigmáticos do outro.

Rosolato (1969) entende que a relação com o desconhecido afirma a importância da relação com a mãe, dimensão do originário nas vivências corporais, registrada nos significantes não linguísticos. Esses significantes de demarcação instituem a primeira matriz de representação na esfera olfativa, tátil, gustativa, motriz, intero e proprioceptiva. Esses significantes fixam-se e identificam afetos, pulsões e expressões corporais singulares. Na análise, a clarificação do inconsciente é possível pela transposição do significante de demarcação em significantes da fala.

Kristeva (1985) explica que o aspecto semiótico remete ao self individual real, formado a partir do desejo e dos impulsos, podendo ser sentido ou lido tão somente através do corpo. O aspecto simbólico é o sistema da linguagem, no qual a criança entra junto com a transição do estágio do espelho de Lacan. Ao reconhecer seu self como um ser separado em sua imagem no espelho, ela adota a linguagem como um meio de identificar o self e o mundo ao seu redor. Nesse ponto, a linguagem separa o eu de seu significado semiótico e desenvolve a identidade através do significado simbólico. Em outras palavras, os polos semiótico e simbólico da linguagem tratam dos aspectos afetivos e denotativos da linguagem. Através do aspecto semiótico da linguagem, o desejo e os impulsos são expressos, enquanto os aspectos linguísticos são revelados mediante seu aspecto simbólico. A linguagem analítica trabalha com signos que abrangem as representações de palavras - próximas ao significante linguístico - as representações de coisas - próximas ao significado linguístico - e as representações de afeto - traços lábeis sujeitos ao deslocamento e condensação: representações semióticas.

Pinol-Douriez (1984) nomeia como proto-representações, as primeiras representações no desenvolvimento psíquico do bebê, que designam o trabalho psíquico de inscrição e de transformação das primeiras experiências sensório-afetivas. Essas proto-representações se constroem durante as primeiras experiências entre o bebê e seu objeto. São constituídas por traços sensoriais, afetivos e motores, compondo um material sensorial e emocional primitivo, no qual a emoção não se diferencia da percepção sensorial e o sujeito não se diferencia do objeto. Assim, o bebê constrói suas proto- representações e é construído por elas.

Outras contribuições acerca das proto-representações

Dentre outros conceitos que dialogam com as proto-representações, encontram-se aqueles que tecem uma espécie de background teórico quanto a elas.

Golse (2008) defende que o material originário pode ser concebido como: base para processos psíquicos posteriores; elemento reativado em etapas mais tardias da vida e trabalho psíquico retomado em níveis ulteriores, ao longo da vida. Esse material originário, de função pré ou proto-representativa, envolve a noção de devir. Para Golse (2021), os primórdios do aparelho psíquico repousam na criação dos conteúdos do pensamento - sensações, afetos, fantasias - na mobilização desses conteúdos e na formação de vínculos. A simbolização inicial reside numa ancoragem corporal e relacional. O nascimento da vida psíquica deve ser pensado desde o período intrauterino, no qual as proto-representações mentais estão ligadas ao corpo e suas sensações.

Roussillon (2015) defende que a escuta psicanalítica dos sofrimentos narcísicos exige a compreensão da primeiríssima infância e das formas primárias de simbolização, baseada na vida pulsional e nas reações do objeto significativo a movimentos pulsionais. Em termos clássicos, a simbolização e a atividade representativa são referidas ao objeto ausente. A psicanálise francesa baseia o trabalho de representação no encontro com o objeto ausente/separado. Ademais, nos primeiros encontros da vida relacional, a simbolização repousa sobre a representação-coisa do objeto maleável, devido ao encontro com uma mãe adaptável e transformável, que se ajusta às necessidades do recém-nascido. Quando a mãe se mostra rígida e submete o bebê a seus imperativos, a simbolização primária e a integração psíquica são dificultadas. Quando o trabalho de tornar maleável esse ambiente fracassa, o sujeito se retira para um bunker interno. Esse fracasso gera decepção narcísica primária, faltando conectar a simbolização primária, a criatividade e a criação. A simbolização primária propicia passar da experiência - traço sensório-motor do encontro com o objeto indiferenciado - para a linguagem, integrada à subjetividade.

Sigal (2001) pensa os elementos arcaicos que correspondem às primeiras inscrições da representação-coisa, na teoria freudiana. A simbolização pressupõe fundamentalmente a ligação entre duas representações e entre a representação e o afeto. A simbolização pressupõe, igualmente, substituição e elaboração. Quando a simbolização falha, os elementos não transformados reaparecem em seu estado arcaico e primitivo. Na patologia do arcaico, o desamparo do eu frente a invasão pulsional da representação-coisa, sem a mediação da representação-palavra, causa a falência do aparelho psíquico. Em virtude da dificuldade de fazer deslocamentos da representação-coisa para a representação-palavra, os elementos arcaicos desligados não podem ser metabolizados, não encontram escoamento na palavra, não engrenam na cadeia significante e ficam excluídos, formando o inconsciente originário. Se a ligação com a palavra ocorre, é possível o deslocamento da pulsão pelo movimento associativo. Por falhas da elaboração materna, transmitida transgeracionalmente, algo indizível retorna no elemento arcaico.

Rouchy (1982) destaca que os processos arcaicos nos grupos incluem as representações do grupo como metáforas antropomórficas do corpo - os membros do corpo como os membros do grupo, a pele como envelope psíquico - o simbolismo oral - nutrição, ingestão, sucção, devoração - e as imagos arcaicas - matriz, nicho, útero, mãe boa, madrasta má, entre outras. As posições arcaicas indicam o aspecto primitivo e não patológico de estados, que fazem parte da experiência diária das pessoas. O centro do ser envolve a ideia de inteireza, formada por uma dupla na relação de fusão entre dois corpos. Rouchy (2014) explica que na relação primária mãe-bebê, a cultura molda gestos, atitudes corporais, distância do outro e expressão das emoções - vivências somato-psíquicas. A elaboração vai das sensações - sem forma - às emoções e sentimentos - com forma psicológica - às ideias e pensamentos - mais elaborados quanto ao estado de indistinção.

Expostas essas contribuições, faz-se mister dialogar com as propostas da autora.

As proto representações quanto ao desejo, aos traumas e ao sistema representacional

As próximas considerações resgatam o artigo Herança transgeracional: a circularidade e a concentração do trauma, no qual encontram-se algumas ideias sobre as proto- representações sob o ângulo da transmissão da vida psíquica na família. Várias modificações foram feitas no artigo original no sentido de se adequar a essa indagação.

A clínica transgeracional descortina duas formas de transmissão do trauma e da configuração da família atingida por ele. A transmissão pode incidir sobre os vários membros da família de modo circular ou pode convergir para um membro. No trauma circular, a família tende a criar vínculos pautados na primazia do amor sobre o ódio e reparte ‘porções’ do trauma entre seus membros. Por sua vez, o trauma do absoluto tende a aparecer na família em que predomina o ódio sobre o amor, sendo que um membro recebe conteúdos traumáticos dos ramos paterno e materno. O trauma do absoluto é caracterizado por representações como: ser abandonado, desamparado, rejeitado, devedor, para sempre e sem lugar no mundo, marcadas pela saturação de ódio e horror. Estas representações e afetos do sistema representacional bloqueiam a realização do desejo do adulto. Sua função de representar as diversas vivências psíquicas é prejudicada sob o impacto desses traumas.

No trauma do absoluto e no trauma circular, um circuito de ideias e afetos primevos são transmitidos ao longo das gerações. De modo geral, partes invariantes das feridas narcísicas da família são delegadas a todos os membros e partes variadas são exportadas para diferentes membros. Esse repasse diferenciado de fragmentos do trauma para certo membro se deve ao seu sexo; à sua ordem de nascimento que retoma a ordem de nascimento dos irmãos dos pais, com os quais eles sofreram; à coincidência da ordem de nascimento desses irmãos-rivais para ambos os pais; à semelhança de conflitos dos pais com relação aos mesmos focos traumáticos - perdas, abandonos, fracassos, traições - levando-os a depositá-los num determinado filho; ao uso de um filho por um genitor no conflito com o outro; à aliança do filho com um genitor em confronto com o outro; à aparência física do filho; à sua semelhança física com o cônjuge-rival; aos talentos do filho em comparação com os talentos valorizados na família; entre outros.

Nesses traumas, as identificações projetivas cruzadas entre os membros da família formam uma rede, que propicia a expulsão do trauma ancestral e sua invasão na psique de seus próximos. A expulsão nomeia sua projeção violenta em um familiar e a invasão qualifica a introjeção violenta desse objeto ancestral destrutivo. Parcelas do eu do sujeito estão misturadas, identificadas, projetadas e fragmentadas nos outros eus. Portanto, a invasão e a expulsão estabelecem o aprisionamento dos eus e mantêm o pathos atávico da família. A esse respeito, Zimerman (2000) aponta as identificações múltiplas e cruzadas, nas quais cada membro do grupo reflete e é refletido pelos demais na família.

No trauma do absoluto e no trauma circular, a transmissão do sofrimento depende da formação de um pensamento circular, fechado e que gera uma espécie de curto-circuito na capacidade de pensar. O pensamento circular se assenta em representações, proto-representações, paradoxos e afetos primitivos - ódio, horror, terror, desespero - contidos nas construções verbais dos pais. A maior parte dos significados das proto-representações é obscura para o receptor, gerando enorme dificuldade de ele discriminar seus conteúdos e seus níveis de informação. Estes remetem ao fato de ela ser consciente ou inconsciente, ser relativa ao plano físico ou ao psicológico, ter conotação objetiva ou subjetiva e assim por diante. O pensamento circular tende a passar de uma construção verbal com proto-representações indistintas para outra construção verbal com novas proto-representações indistintas, sem o sujeito poder discriminá-las e reconhecer patterns familiares repetitivos há gerações. E os paradoxos designam a associação entre representações contraditórias, que criam profunda contradição interna - ser inteligente x ser débil mental, ser amada x odiada. Assim, seus raciocínios paradoxais afirmam e negam certo desejo e o impedem de fazer uma crítica consciente a eles. Logo, seu pensamento se torna circular e retro-alimentado, sem encontrar alternativas que lhe permitam escapar da dor psíquica. A confusão mental provocada por esses elementos é bastante desorganizadora do eu. Com isso, o sujeito não desenvolve uma identidade diferenciada dos demais e, tampouco, a singularidade e autonomia de seu desejo, visto que o sistema ficou paralisado em torno de feridas traumáticas da família.

Em ambos os traumas, os afetos que acompanham as representações estão indiferenciados, sendo nomeados de modo obscuro, defensivo e confundidos entre si. Quando uma pessoa diz que está chateada, magoada ou aflita com certo familiar, não fica claro se essas palavras designam sua tristeza, sua raiva ou sua ansiedade para com ele. Contudo, mesmo quando os afetos são nomeados com clareza - vergonha, raiva, tristeza - eles podem esconder outros afetos - ódio, horror e pavor - mantidos inconscientes. A vergonha, a raiva e a tristeza podem ser usadas como disfarce contra o ódio, o horror e o pavor - mais disruptivos do trabalho representativo do sistema do que aquelas. Além disso, um mecanismo de defesa mais elaborado - racionalização - pode encobrir outros mais primitivos - cisão, fragmentação, identificação projetiva maciça - para manter elementos do trauma sob estase/paralisia. Assim, eles comprometem a capacidade representativa do sistema, prisioneiro do pensamento em curto-circuito. Neste caso, a operação do pensamento de rever seus conteúdos, de pensar as feridas narcísicas e de elaborar o sofrimento fica comprometida. Nesses traumas, o pensamento circular de um membro demarca uma circularidade individual, que reproduz a circularidade atávica entre seus membros vivos e mortos. Assim, a identificação dos filhos com seus pais e avós comporta uma causalidade circular potencializada ao infinito, que perpetua o sofrimento psíquico da família no tempo eterno, no tempo infinito/sem fim.

Nessa perspectiva, a proto-representação nomeia uma construção verbal inconsciente composta por representações bastante depreciativas do sujeito e acompanhadas por afetos disruptivos - ódio, horror, terror, desespero - que o impede de elucidá-la e escapar do sofrimento psíquico que ela impinge a seu eu. Portanto, ela faz parte da transmissão da vida psíquica na família em sua vertente patológica. Ela conforma elementos arcaicos que não podem ser ligados uns aos outros, de maneira a fazer sentido.

A clínica do trauma do absoluto e do trauma circular

Exemplificando o trauma do absoluto, a filha mais velha de um casal foi a depositária-mor dos traumas dos pais. A identificação de sua mãe com sua mãe/avó da paciente - com ódio, horror e vergonha da filha mais velha - levou-a a projetar esse trauma na filha, submetida a forte repressão do amor e da sexualidade. A identificação de seu pai com seu pai/avô da paciente - que reprimiu seu desejo de ir para o mundo - e seu ódio ao irmão mais velho foram projetados na filha. A esposa ia buscá-lo nos bailes e o humilhava e envergonhava em público em nome da filha. Ele humilhava e envergonhava a filha em público. Quando ela era agressiva com ele, ele dizia: ‘filhos trocados por m..., ainda saem caro’. Seu ódio a ela na infância foi contraposto por uma frase paradoxal na adolescência: ‘nenhum homem vai te amar mais que eu, eles só vão ter desejo por você’. Dessa saturação traumática resulta uma adulta infantilizada, que se retira do mundo dos vivos. Sua única ligação com o mundo é a literatura, saída desértica de seu eu quase morto. Ademais, ela se sentia abandonada, desamparada e rejeitada pelo pai, num sofrimento que iria durar para sempre e sem lugar no mundo. A elas se juntavam representações conscientes acompanhadas de ódio, atribuídas por ele a ela: burra, débil mental e doente mental - mandato paterno de infelicidade quanto a ela.

Retratando o trauma circular, a família da segunda paciente, na infância, mudava de cidade em cidade e perdia seus poucos bens. Eles foram despejados várias vezes e ela ficava ‘sem nada’. Então, sua família foi agregada a do bisavô. Numa casa de três quartos, moravam seu bisavô, seu avô e sua avó maternos, seus pais, seus três filhos e três irmãos da mãe. Certa paz e tranquilidade da casa eram quebradas por seu pai e pelo tio - que bebiam. Quando seu pai foi trabalhar fora, o sofrimento de sua mãe foi intenso e ambas adoeceram. Quando ele desistiu do trabalho e voltou para casa, elas ficaram ‘curadas’. Ela se sente desamparada, pois ‘não teve mãe’. Sua mãe foi fraca, insegura e medrosa ao criar os filhos. Sua mãe cobre as faltas da nora como mãe e a paciente cobre as faltas da cunhada com as filhas. Seu marido é seu eixo de sustentação identitária e financeira. Seu medo de perdê-lo traz-lhe aflição e desespero, pois ele está muito acima do peso e pode ter um ataque cardíaco. Ela tem pavor de que ele exploda de tanto comer, mas cobra com raiva a falta de cuidados dele com ela. Para ela, o casal deve fazer tudo junto. Ela quer ter um filho para ser feliz e ter valor na família. Ela saiu de uma profissão em que ganhava bem e optou por outra, na qual lida com muito sofrimento e ganha mal. Num trabalho voluntário, ela cobre as faltas das mães com os filhos. Crê que a pessoa que ganha dinheiro é mercantilista, severa e general. Ela tem muito medo de enlouquecer, que remete ao medo de perder sua identidade e sua razão. Ela sente muita raiva da tristeza, da apatia e da morte em vida da mãe. Ela sente vergonha, culpa, raiva e tristeza por ser mulher - como sua avó materna e sua mãe. Sua mãe diz que lhe passou o pior. Ora, ela se sente bebê; ora, velha e se esquece de cuidar de si. Seus irmãos seriam mais inteligentes que ela: desvaloriza-se para ser amada por eles. Quando fala para eles estudarem, ouve ‘você tá se achando’ e ‘sou muito melhor que muito enfermeirinho’ por aí - mesma fala do pai sobre seu marido-enfermeiro. Quando ele compra um produto caro, eles dizem: ‘tá podendo, hein’. Quando ele compra coisas para si, a mãe dela diz que isso é maldade. Os pais dela precisam da ajuda dele para comer, o único que os ajuda financeiramente e empresta dinheiro para os cunhados. Com relação a dinheiro, um tio materno se distanciou da família e enriqueceu, sendo metido, arrogante e orgulhoso - segundo a mãe da paciente.

Frases parentais dirigidas aos filhos no cotidiano

No cotidiano, inúmeras frases parentais constituem vetores de propagação do sofrimento psíquico na família. Nelas, as proto-representações têm papel fundamental.

‘Minha mãe dizia: eu trouxe você para esse mundo e posso tirar você dele; eu sabia que devia ter me matado quando descobri que seu aborto fracassou; eu costumava orar a Deus para não matar você ou abusar de você e agora eu gostaria de ter matado você’. Movida por forte onipotência, essa mãe recorre a uma ameaça cruel afirmando seu poder de vida e de morte sobre a filha. Soma-se a isso a confissão de seu desejo de matá-la e de se matar frente a sua sobrevivência.

‘Minha mãe falava: só tive você pra redução de impostos, mas você só me traz gastos e prejuízos. Meu pai confirmava: é horrível como você se tornou um desperdício mesmo depois de todo o nosso trabalho duro’. Além da primeira parte da frase posicionar o filho como mero objeto utilitário para diminuir a perda de dinheiro, a segunda parte confirma a circunscrição de sua vida sob o enfoque materialista-monetário, restritivo e negativo. Esse filho é concebido como objeto sem valor em si e sem significados afetivos construtivos. Essa redução do eu do filho ao seu aspecto objetivo, enquanto investimento para gerar lucro ao reverso se une à equação simbólica filho = dinheiro.

A frase ‘isso vai me machucar, mais do que vai machucar você’, em geral, é dita pelo adulto num lugar de poder, que inflige determinada dor à criança ou ao parceiro. Porém, ao atribuí-la a si, desconsidera a dor do filho ou parceiro, destituindo-os do contato sensorial com sua dor física e do contato emocional com sua dor psíquica. E, inclusive, trata-se de uma falácia, visto que o adulto não tem condições de mensurar a dor do outro. Este outro, numa posição de menor poder econômico, físico, emocional ou intelectual do que o adulto, tende a acreditar nele e se calar.

‘Nenhum dos meus pais reconhecia a minha existência e, então, eu comia loucamente, aí meu pai grunhia como um porco, eu engolia o choro e ele dizia: engole esse choro, animal! Você é balofo e repulsivo. Quando eu respondia, ele dizia: para de grunhir, senão eu te arrebento a fuça. Quando eu vomitava, eu tinha que comer a comida gosmenta e o vômito. Meu ódio a ele é tão colossal que quase me engole, mas eu tenho que engolir o ódio, porque ainda não posso sair de casa’.

‘Na frente da visita, minha mãe gritou comigo: por sua culpa, minha vida está toda bagunçada, você foi um erro, você é toda errada, você é imprestável. Essa cena ocorreu por causa do jeito que eu organizei os pratos no armário, depois de lavá-los sozinha. Minha mãe continuou sentada o tempo todo e disse para a visita: fique com ela, eu não me importo, ela é insuportável como o inútil pai dela, quanto mais longe, melhor’.

‘Meu pai gritava comigo: você é burro, você vai puxar carroça, você nunca vai ser nada na vida. Quando me esquecia de fazer algo simples, ele gritava que vou ser péssimo na vida e que não vou dar em nada. Bom para nada! Você vai terminar debaixo de uma ponte como um sem-teto’. Sob o impacto do intenso ódio paterno devido à sua decepção com o filho, ele lhe roga uma praga cruel. A intensa fúria do pai surge frente à revolta do filho, a quem falta espaço para expressar seu eu e seu desejo. O desejo do filho se expressar é interpretado como insubordinação, desobediência e maldade pelo pai.

‘Aos 10 anos, era minha primeira festa com minha família adotiva. Eu estava brincando com meus primos, mas fui até a cozinha beber água. Meu pai dizia para meu tio que minha meia-irmã era perfeita - inteligente, estudiosa, atlética, obediente, elegante - e que eu era o oposto - burro, teimoso, preguiçoso, um desperdício de talento. Comecei a chorar e corri para meus primos. Meu pai me perseguiu, me agarrou, me deu um tapa e disse: o que você esperava que eu fizesse, mentisse? Ele continuou me batendo até eu parar de chorar. Nenhum adulto interveio. Todos jantaram e eu fiquei sozinho’.

‘Depois que eu consegui uma bolsa para estudar design gráfico em outra cidade, meu pai ficou bravo porque ele gastaria mais dinheiro. Ele me disse: você não vai fazer nada que valha a pena na vida, vai começar limpando casas e depois vai acabar limpando sarjetas. Minha mãe falou: então, vai se matar, estarei aqui esperando a ligação, então vai logo. Eu tentei [me matar], mas não consegui. Eu fui estudar e ele não pagou um centavo’.

‘Minha avó disse que eu era retardada porque queria usar vestidos, que meu cabelo era horrível, que eu era gorda. Minha tia disse que eu era feia e desengonçada. Minha mãe me disse que sou como meu falecido pai - louco e estúpido. Elas disseram que seria constrangedor se eu chorasse no velório de meu pai, quando eu tinha seis anos. Meu avô disse que eu tinha uma grande f... com minhas colegas de dança’.

‘Nasci com defeitos congênitos, que exigiram várias cirurgias e muitas consultas médicas. Minha presença sempre incomodou meus pais. Eles fizeram o possível para me manter longe deles. Meu pai me disse que a vida de todos teria sido melhor se eu nunca tivesse nascido e que eu não passava de um fardo. Minha mãe falou que gostaria que eu tivesse morrido quando ela me deu à luz, porque eu tinha estragado a vida dela’.

Essas frases impactantes tendem a ser repetidas várias vezes pelas figuras primárias, formando um modelo mental no filho, que entrelaça pensamentos, emoções, comportamentos destrutivos de si e do outro com péssimos resultados para todos.

Discussão

Faz-se necessário, nesse momento, pensar o material empírico em duas frentes, seja no âmbito clínico seja no âmbito cotidiano.

No trauma do absoluto, as proto-representações da paciente advêm da frase paterna: ‘filhos trocados por m... ainda saem caro’. Em seu sistema representacional, a relação entre filhos e fezes e a noção de que ela merece ser trocada por m... atingem o estrato consciente do sistema, permanecendo inconsciente que ela vale menos que m... No âmbito financeiro, caro remete ao grande valor do dinheiro e ao grande valor negativo dela para seu pai e à sua preferência pelo dinheiro do que por ela/filha. Na esfera afetiva, caro remete ao ódio paterno a ela - afeto por demais primitivo para que ela pudesse desvendá-lo. A equação simbólica filhos=fezes=dinheiro retrata a fixação desse pai na fase anal, tendo seus impulsos anal-sádicos exacerbados. Projetadas pelo pai na paciente, suas representações são: ser pior que m..., ser um nada, ser sem valor, ser odiada, ter ódio a si, ao pai e ao dinheiro. Naquela frase, o possível ódio desse pai a seu pai/avô da paciente, sua redução à condição de m... como filho por seu pai, sua projeção na filha/paciente e sua generalização para todos os filhos são vislumbrados. Essa violência simbólica é deflagrada quando a filha diverge do pai, ao buscar expressar seu eu e assumir seu desejo. Outras proto-representações estão presentes na seguinte frase paterna: ‘Eu dei meu sangue, meu suor e meu sacrifício pra você estudar e só recebo patada e resposta besta’. Nela, seu caráter dramático, seu trabalho árduo e seu sofrimento psíquico e corporal estão implícitos. Ela expressa, ainda, sua doação supostamente grandiosa para a filha, que não a merece. De modo inconsciente, ele a representa como burra, ingrata e poupada do trabalho duro. Dentre os afetos ocultos, há o suposto amor paterno, que suscita culpa na filha, que deve reprimir seu ódio a ele e deve sofrer por ser ingrata (Almeida, 2008).

Nessas frases paternas, há uma espécie de soma das proto-representações de cada uma delas. Seus focos traumáticos são: grande valor atribuído pelo pai a si mesmo; sua suposta grandeza misturada ao seu sofrimento, sua imensa insatisfação como pai e o ínfimo valor projetado por ele na filha. Em sua infância, sua compreensão era impossível para ela, dado seu precário desenvolvimento emocional e intelectual, bem como o poder afetivo do pai para ela. Na análise, o tempo e o dinheiro despendidos, por ela, para elaborar seu sofrimento e desvendar a relação de seu pai com seu avô são consideráveis. Porquanto, passar do domínio das proto-representações e seus afetos para o das representações e seus afetos revolve muito sofrimento na arena psíquica (Almeida, 2008).

No trauma do absoluto, os fatores que impediam a mudança psíquica da paciente eram: o sobreinvestimento das representações por ódio e horror - ser desamparada, ser abandonada, ser rejeitada, sem lugar no mundo, para sempre; sua contraidentificação com seus pais - ser boazinha x ser cruel como eles e ser abandonada e ser desamparada por pais trabalhadores x ser trabalhadora como eles. Ela precisou, igualmente, analisar a confusão mental ligada às proto-representações, rever a indiscriminação entre as representações - ser grande equivalia a ser sádica e ser insensível como o pai - e elucidar seus paradoxos mentais - ser inteligente na escola x ser burra e ser débil mental; ser normal x ser doente mental; ser odiada x ser amada pelo pai poderoso, cruel, insensível e sádico. Sendo assim, fez-se necessário trabalhar esses elementos para ela integrar novas representações de si. Para integrar ser grande, ela precisou diferenciá-la de ser cruel, ser sádica e ser insensível como o pai. Além disso, coube-lhe depurar ser competente - quanto a ganhar dinheiro - de ser controlada, ser submissa e ser humilhada pelo pai na relação com dinheiro. Com isso, ela integrou ser trabalhadora, ser determinada e ser dedicada. Contudo, ela ainda reprime a representação mais proibida de seu desejo: ser amada por um grande homem e ser capaz de amá-lo para ser bem sucedida (Almeida, 2008).

No trauma circular, a circulação de conteúdos se entrelaça à distribuição dos elementos do trauma e aos conflitos entre os psiquismos na família da segunda paciente. Uma proto - representação surge na frase materna dirigida a ela: ‘eu te passei o pior’ - aparentemente ligada às doenças físicas repassadas a ela. Sob sua influência, a dificuldade de a paciente discriminar seus conteúdos e seus níveis de informação era considerável. Seu trabalho de discriminação mental requeria distinguir se ‘o pior’ remetia à herança biológica, à psicológica ou a ambas. A análise destacou que, em termos de herança biológica, as doenças maternas herdadas por ela não são graves e não alteram sua vida de modo efetivo. Desse modo, o pior remontaria à herança psíquica de extração materna. Além disso, a frase materna parece embutir um lamento, em que se confundem sua tristeza, sua culpa, sua agonia e seu desgosto, bem como sua submissão ao caráter implacável dessa herança e da impotência de ambas frente a ela. No nível das representações, essa frase designa à filha o lócus de: ser a herdeira exclusiva da pior parte do legado materno, ser sua sucessora direta e ser prisioneira das feridas patológicas de sua mãe. A raiva, a vergonha, a culpa e a tristeza quanto a sua mãe e a ser mulher são os afetos ligados a elas. Por sua vez, a frase da paciente ‘eu não tive mãe’ se liga às representações de si: ser abandonada, ser desamparada e ser órfã. Apesar da dor psíquica contida nelas, esse nível do discurso familiar é mais facilmente decifrado por ela do que o das proto-representações contidas no discurso materno. Além disso, seu conteúdo dramático, sua carga traumática e sua fixação no sistema dessa paciente são mais brandos do que na primeira paciente (Almeida, 2008).

Sob o trauma circular, a antiguidade e a modernidade das representações no discurso da família aparecem nas representações de pais e filhos sobre dinheiro, poder e relação eu-outro. Pois, ser superior e ser inferior ao outro estão presentes na equação simbólica da mãe da paciente, ao se referir ao tio rico: ser rico= ser metido = ser orgulhoso. ‘Tá podendo, hein?’ - frase moderna emitida pelos irmãos da paciente quanto a seu marido - alude às representações de eles serem inferiores ao cunhado superior, bem como a eles serem desfavorecidos com dinheiro quanto ao cunhado favorecido. ‘Tá se achando...’ - frase moderna proferida pelos irmãos quanto a ela - remete à suposta arrogância dela, ao se considerar superior a eles no plano intelectual. Essa frase de seus irmãos distorce a frase da paciente, que os exorta a estudarem como ela e o marido. Essa frase, inclusive, retoma a frase do pai e dos irmãos sobre seu marido: ‘sou melhor que muito enfermeirinho por aí’. Assim, seu pai nega o sofrimento de ser dependente do dinheiro do genro até mesmo para comer. Nessa frase paterna se inscreve ser superior ou ser inferior ao outro, que reaparece na frase dos filhos. Por conseguinte, os conflitos entre os psiquismos na família articulados ao discurso familiar ficam evidentes nas relações entre ela, seus pais e irmãos. Nesse contexto, Kaës (1991) aponta as redes de representações que circulam no aparelho psíquico grupal e as flutuações das quantidades de excitação ligadas a elas.

Dada a carga desses elementos do discurso familiar, o sistema representacional da segunda paciente está envolto em conflitos. No que se refere às suas representações, ela se conceitua de modos paradoxais. Quanto à parceria mãe-filha e ao amparo-desamparo, ela se representa como: ser órfã e ser desamparada por sua mãe, contrapostas a ela ser a amparadora dos desamparados/sobrinhas e pacientes e, ainda, a ela ser a guardiã dos frágeis/sobrinhas e pacientes. Na dimensão da autonomia de seu desejo, ser autônoma confunde-se com ser má e ser odiada pela mãe, enquanto ser amada pelos irmãos se confunde com ser inferior a eles. No que tange à idade cronológica versus idade psíquica, ela se representa como: ser bebê, ser criança, ser velha. A despeito de ela ser adulta, ser mulher aparece apenas em função de seu desejo de manter o marido. No aspecto financeiro, ter dinheiro confunde-se com ser metida, ser orgulhosa e ser arrogante, retomando a equação simbólica da mãe: ser rico= ser metido = ser orgulhoso (Almeida, 2008).

Nesse trauma circular, a mudança psíquica da paciente demandava desvelar as proto-representações e diferenciar as representações, que mesclavam seu eu ao de seus pais e irmãos. Assim, ser uma boa filha e cuidar-se bem precisavam ser diferenciadas de se fundir com a dor de seus pais, ao cuidar deles em primeiro lugar. Ser boa e ser amorosa com os familiares significava cobrir suas faltas psicológicas e financeiras, restando a todos os integrantes da família serem pobres no plano psicológico e financeiro. Logo, ela precisava perder representações de si, que haviam constituído seu eu por longo tempo. Seus afetos - raiva, desgosto, culpa e tristeza - eram mais fáceis de elaborar do que aqueles da primeira paciente - ódio, horror e pavor. Sob esse background, o bloqueio contra a satisfação de seu desejo parece moderado (Almeida, 2008).

Considerando-se as mudanças psíquicas das pacientes, cabe cotejá-las com critérios sobre a ‘cura’ analítica e a mudança psíquica (Zimerman, 1999). São eles: melhor qualidade das relações objetais; menor uso de mecanismos primitivos de defesa; renuncia às ilusões narcísicas; integração de partes reprimidas do eu; capacidade de lidar com frustrações, perdas e luto; consideração pelo outro; abrandamento do superego; uso de capacidades de áreas autônomas do ego: pensamento, linguagem, comunicação, criatividade e ação; senso de identidade; autenticidade e autonomia; independência das expectativas do outro e vivência de relações afetivas inteiras, livres e diferenciadas de si.

Tendo por horizonte essas ideias, a despeito de a primeira paciente ter herdado o trauma do absoluto bastante disruptivo para o sistema, o maior tempo de análise permitiu atenuar sua destrutividade. Em contrapartida, apesar de a segunda paciente ter herdado o trauma circular - menos destrutivo do sistema e de seu eu do que o primeiro - seu reduzido tempo de análise permitiu abrandá-lo um pouco.

Em se examinando os traumas que atingem o desejo, retoma-se a concepção da autora de que o ódio gera forte fixação das representações no sistema e se pontua sua interlocução com conceitos de dois psicanalistas. No tocante a isso, Freud (1915) aponta que o ódio é mais antigo que o amor na relação de objeto, ao pensar a relação entre o eu e o mundo. Quanto ao trauma infantil, Ferenczi (2011) diz que o ódio consiste no meio de fixação mais forte que o amor e a ternura. Portanto, Freud descreve a gênese do ódio nas relações de objeto, enquanto Ferenczi aponta a fixação do ódio na psique. Apesar deles não focarem o desejo, suas representações e seus afetos, seus conceitos dialogam com as ideias da autora sobre o investimento de ódio no desejo e as dificuldades da mudança psíquica, dada a fixação das representações no sistema sob o impacto do ódio.

Na primeira situação do cotidiano, as representações da filha ser bem sucedida em termos de ser sobrevivente e estar viva mesclam-se com ser fracassada, ao passo que a representação de ser morta se mistura com ser bem sucedida. Complicando o sofrimento psíquico dessa relação familiar, para o sujeito ser bem sucedido, o objeto deve ser fracassado e vice-versa, bloqueando a possibilidade de ambas serem bem sucedidas. O ódio parental depositado no filho assume valores elevados. Na segunda relação, o filho é concebido para ser um objeto utilitário, ser sem valor, tornar-se objeto de lucro, mas de modo reverso ser objeto de prejuízo e de preocupação. O terceiro evento institui o filho no lócus de ser enganado, ser insensível a sua dor física e psíquica. O quarto relato fatora a incomensurável dor de ser inexistente, ser sub humano, ser porco, ser animal, ser balofo, ser repulsivo, ser odiado, ser odiador, ser submetido, ser dependente. Na quinta circunstância, a filha é posicionada pela mãe para ser objeto, ser um erro absoluto, ser errada, ser sem valor, ser culpada em face de seu critério de certo absoluto. Na sexta ocasião, as representações de ser burro, ser odiado, ser péssimo na vida, ser ruim em tudo, ser fracassado, ser um sem-teto e ser um nada para sempre marcam seu eu. Na sétima, ser burro, ser teimoso, ser preguiçoso, ser um desperdício de talento, ser desamparado, e ser excluído são impingidos ao filho adotivo. Na oitava, ser insignificante, ser insuportável, ser bastarda e ser inútil são atribuídas à filha. No nono intercâmbio, à filha resta ser retardada, ser horrível, ser feia, ser gorda, ser desengonçada, ser louca e ser estúpida. Na décima, ao filho cabe ser um estorvo, ser um fardo, ser um incômodo, ser repulsivo e ser excluído da família.

Em se pensando as situações clínicas e cotidianas, o denominador comum a elas remonta à condição do sujeito ser submetido a uma situação inescapável, que provoca afetos disruptivos - ódio, horror, terror, desespero. Juntam-se a isso, as representações de forte desvalorização do filho misturadas ao ódio do pai - frente ao ódio do filho por ele - que atingem tamanha intensidade e configuram uma proto-representação.

Posto o amplo espectro dos conflitos de matriz transgeracional, outras tantas frases denunciam-nos. Assim, ‘você nunca faz nada direito’ ou ‘você sempre faz tudo errado’ envergonham e incapacitam a criança, impedindo que ela desenvolva suas habilidades e tome decisões adequadas. Pois, os advérbios de tempo nunca e sempre são imperativos quanto a gerar sofrimento a longo prazo. E, ainda, o estupro das filhas pelo pai se faz acompanhar por: ‘se outros vão comer, eu mereço ser o primeiro, eu fiz elas, eu tenho todo o direito’. Nesse caso, a falta de delimitação entre as posições de pai e de homem produz grave caos familiar. Na ocasião em que uma mãe se pergunta por que teve filhos, é possível que ela não expresse seu real sentimento. Porém, a criança pode entender que ela pode ser abandonada e passar a ter comportamentos disfuncionais.

Com isso, a dor psíquica da família forma um emaranhado mental, que os fixa inexoravelmente ao sofrimento arcaico. Diante disso, a análise precisa realizar novas ligações entre representações e afetos, para criar linguagem em situações traumáticas nas quais faltou a palavra. Além disso, a análise faz a substituição simbólica de representações reprimidas em prol de representações coerentes com o desejo do sujeito - ser amado, valorizado, reconhecido, inteligente, competente, merecedor de coisas boas na vida.

Considerações Finais

Nesta indagação sobre as proto-representações, a formação da psique no tempo hiper recuado da ontogênese envolve vivências psíquicas pouco integradas com representações de coisa calcadas em sensações difusas e fluxos de sensações entre a mãe e o bebê, cujos aspectos quantitativos/intensidade estão em alta.

Na presente ótica, as proto-representações referenciam um nível de representatividade/simbolização primitiva rudimentar, que bloqueia a capacidade representativa do sistema e a capacidade de pensar do sujeito. Somadas aos paradoxos mentais e às representações densamente investidas por afetos primitivos, elas produzem incomensurável dor psíquica, que tão somente uma análise refinada consegue elaborar.

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 12/01/2024
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