Atrás da cura...? Procura o Boto...
Mezinhas antigas e modernas: A invenção da Triaga Brasílica pelos jesuítas do
Colégio da Bahia no período colonial.
Bruno Martins Boto Leite*
Nullum olim medicamentum extitit nobilius, efficacius, gratiusque Theriaca.
No prefácio de Johan Winter von Andernach, in: GALENO, Cláudio, De theriaca
ad Pisonem liber, Paris, Apud Simonem Colinaeum, 1531.
Por esta receita me dizem haverá nesta Cidade quem dê tres ou quatro mil cruzados:
e he certo que o fundo principal da dita botica era este remedio pelo grande gasto
que tinha, por ser prompto o seu effeito.
Relação de um desembargador do sequestro da Baía a um ministro da corte, 30 de
Julho de 1760, Arquivo Histórico Colonial, Inventário impresso, Baía, 5018.
Introdução
No início do século XVIII, o conhecimento farmacêutico dos padres da
Companhia de Jesus achava-se bastante avançado. Desde a chegada dos primeiros
padres da ordem no Brasil em 1549, a necessidade de remédios para a cura e
preservação da saúde de colonos, escravos e índios era inconteste. E foram, em larga
medida, os jesuítas aqueles que supriram grandemente essa função durante todo o
período dito colonial.
Para isso, os jesuítas haviam construído, ao lado de seus colégios, boticas onde
eram guardados e preparados medicamentos cujos ingredientes, durante o início da
atuação jesuítica no Brasil, provinham da Europa. Pouco a pouco os padres foram se
inteirando da fauna, da flora e dos minerais do país, seja por observação direta ou por
intermédio dos nativos, de modo a constituir um cabedal intelectual que os permitisse
de propor medicamentos que levassem menos ingredientes oriundos de ultramar.
Esse longo processo intelectual, contudo, não dependeu só e unicamente do
conhecimento das virtudes e qualidades das substâncias tiradas na natureza brasileira.
Ao contrário do que muitos historiadores acreditam, o conhecimento dos índios não
era utilizado sem apropriações. A cultura desses padres, como a dos médicos
formados nas universidades européias, vinha de uma importante tradição histórica que
fazia das obras dos antigos um elemento incontornável de toda a cultura dos
intelectuais europeus.
Desde a idade média, o conhecimento europeu, ou se quisermos ocidental, era
em larga medida pautado na leitura das obras antigas. A filosofia patrística dependia
das filosofias platônica e estóica, a filosofia escolástica sobrevivia sobre os alicerces
da tradição aristotélica, a medicina, desde a escola de Salerno até as universidades,
não existiria sem o legado de Hipócrates de Cós e Cláudio Galeno. Contudo, essas
antigas tradições eram constantemente reduzidas à leitura contemporânea, eram
apropriadas de forma a encaixá-las nas questões e problemas que aqueles homens
estavam vivendo em seu tempo e geografia. A filosofia dos antigos não era
compreendida segundo uma lógica interna aquele saber nem relativamente aos
problemas que aqueles homens de outrora viveram.
Com o advento do humanismo, o que surge no contexto cultural europeu não
fora, absolutamente, uma enorme quantidade de obras da antiguidade clássica, como
* Mestre em história social pela UFRJ e doutorando em história pelo Instituto Universitário Europeu
(EUI) de Florença.
2
professara por muito tempo diversos historiadores que trataram do assunto, mas uma
nova forma de ler as obras dos autores antigos.
Os humanistas empenhavam-se, pela aquisição de grande erudição, em ler as
obras dos antigos iuxta propria principia [segundo seus próprios princípios].
Buscava-se compreender a cultura antiga da forma como os antigos, eles mesmos, a
compreendiam, sem tentar reduzi-la à nenhuma leitura do presente. Por isso, entre os
humanistas, a filologia apresentava-se como um conhecimento incontornável, por que
era através dela, pela compreensão precisa dos conceitos, que se chegava a
compreensão exata (ou pelo menos mais exata) da tradição antiga. Essa empresa
humanista não se tratava só e unicamente de uma alteração metodológica, o
humanismo apresentava-se como uma nova filosofia, uma filosofia da linguagem.
Esta nova forma de filosofar permitia àqueles homens de isolar as antigas culturas em
seus contextos propiciando uma leitura específica e pluralista do passado e
constituindo uma distância entre o que havia sido e o que era de modo a torná-los
mais autônomos em suas escolhas filosóficas1.
Este não servilismo, ou se quisermos usar termo mais apropriado, essa libertas
philosophandi proposta dentro do pensamento humanista permitiu à intelectualidade
emergente deste movimento ler as obras dos antigos e, à partir desta leitura, criar uma
nova filosofia e cultura que fosse mais condizente com os problemas e as
necessidades vividas por aqueles homens. Essa criação, portanto, advinha de uma
específica relação de imitação (Imitatio) das obras dos antigos que permitia aos
modernos de produzirem cultura nova na dependência não dependente daquela que
havia já sido feita.
Uma bela imagem desta nova forma de se apropriar da cultura dos antigos
pode ser tomada de uma imagem que o primeiro dos humanistas, Francesco Petrarca,
havia proposto nos seus Familiares: a relação de imitação entre o novo e o antigo é
como a semelhança de um filho ao pai – tudo é diverso, se se observa analiticamente
os atos, os membros, a figura. Contudo, ainda se pode perceber certos ares, certas
tonalidades ou algo que mostra a semelhança de um ao outro. Como disse Garin, “o
modelo age, não enquanto produz uma cópia, mas enquanto suscita uma nova obra:
uma ação, não uma passiva reação” (GARIN, 1976: 102).
Dito isso, com o advento do movimento humanista a relação que os homens
da época moderna tinham com a tradição antiga se transformara não mais em uma
relação de dependência, mas numa relação de apropriação autônoma. Os grandes
filósofos, poetas e medicos de outrora eram usados para criar grandes filósofos poetas
e médicos de agora. Toda uma nova filosofia surgira entre os humanistas
transformando a tradição num ponto de partida e não mais num porto de chegada.
Contudo, a novidade do movimento humanista não havia acabado com as
“antigas” formas de tratar o passado. A escolástica mantinha-se viva até fins do
século XVIII. E, isto posto, o advento do humanismo não calava, como nenhuma
outra filosofia o fez, a diversidade de procedimentos filosóficos co-existentes.
1 É importante notar que a filosofia humanista estabeleu uma outra relação com a cultura legada pelos
antigos. Os humanistas davam enorme importância não somente à leitura dos clássicos greco-latinos
mas também, e sobretudo, à leitura destes textos em sua língua original na medida em que esta leitura
os permitia observar como os próprios autores significavam o conteúdo de suas exposições. Essa
filosofia historicista os permitia ler os antigos iuxta propria principia, o que estabelecia uma distância
clara entre antigos e modernos, donde a famosa polêmica entre estas duas facções se colocava como a
mola mestra de um processo de renovação cultural. Os humanistas eram antes historiadores da filosofia
do que filósofos. O que resultava numa compreensão da cultura do passado traduzida no interior de seu
próprio contexto e dos problemas deste oriundos e na proposição de novas formas de filosofar mais
adatas às questões de seu tempo. Cf. (GARIN, 2004) e (GARIN, 1976).
3
Se de modo geral a filosofia respirava novos ares, a farmacologia, em
particular, vivia, ela também, uma importante renovatio de suas formas de proceder.
A filologia dos humanistas havia mostrado uma enorme série de imprecisões legadas
pela leitura árabe dos textos de Hipócrates, Galeno, Dioscórides e Plínio o velho. Isso
sem contar as imprecisões conceituais relativas aos conteúdos das fórmulas dos
remédios antigos, que é o que aqui nos interessa. A leitura solta dos árabes e seus
seguidores impedia que se estabelecesse exatamente a receita que era usada pelos
antigos.
Este era um tempo de erudição. Não erudição vazia, ornamental, mas uma
erudição que servia a estabelecer um rigor no estudo e interpretação do passado.
Assim, ao longo do século XVI, os vocábulos empregados para assinalar os
ingredientes das receitas usadas nas boticas européias desde a Idade Média
começaram a ser analisados rigorosamente por estes intelectuais. Em decorrência
disto, o conteúdo das receitas das boticas da Europa foram reavaliados e, muitas
vezes, mudava-se totalmente os ingredientes simples dos remédios compostos.
Esta influência humanista foi tão pujante que toda a cultura das boticas sentia
o impacto desta crítica textual. Contudo, isso não parara por ai. Uma vez estabelecida
precisamente as fórmulas dos antigos, e compreendido o mecanismo pelo qual se
estabeleciam estes compostos, os médicos humanistas observaram que muitos dos
ingredientes das fórmulas eram de difícil obtenção. Assim, servindo-se de, como
dissemos, uma imitatio que se desdobrava numa renovatio ou invenção, muitos
médicos e boticários começaram a propor novas composições medicamentosas.
Os jesuítas situavam-se na encruzilhada destas formas culturais. Formados na
tradição escolástica, sua cultura achava-se embuída de certas formas interpretativas
advindas da tradição humanista.2 Daí que o modo com que eles estudaram a medicina
não poderia não passar por estas novas formas analíticas. Além do que, não sendo
especialistas neste conhecimento, os jesuítas tiveram de, muitas vezes, se espaldar na
cultura médica contemporânea que, esta, por sua vez, com certeza, estava
enormemente imbuída na tradição dos humanistas.
Assim, o ponto que nos interessa neste trabalho, é o de saber se e como a
criação da nova Triaga Brasílica do Colégio da Bahia dependia da antiga fórmula da
teriaca de Andrômaco, o que nos permitirá observar, neste caso, por um lado, a
relação dos jesuítas com a cultura dos humanistas e, por outro, o modo como estes se
apropriaram daquele saber. Poderemos também observar como eles dialogaram com a
cultura médica de seu tempo. Além disso, esse estudo nos permite pôr abaixo certas
idéias clássicamente infundadas da historiografia vigente, como aquela de relacionar a
invenção da Triaga Brasílica especialmente à um certo empirismo puro da parte ou
jesuítas ou aquela de associar a medicina destes padres ao curandeirismo3 dos
indígenas brasílicos.
2 Muitos autores jesuítas contemporâneos afirmam estarem os antigos jesuítas embuídos da tradição
humanista, como o fizeram François Dainville e Serafim Leite. No tocante ao conhecimento médico
dos jesuítas, afirma Serafim Leite que Evitaram, contudo, o escolho do curandeirismo, pela cultura
humanista que possuíam, a mais alta do seu tempo. (LEITE, 2004: 397) Contudo, não se sabe ao certo
o grau da apropriação da filosofia do humanismo pela tradição jesuítica. Isto porque a maioria dos
historiadores considera o humanismo uma simples relação erudita com a cultura do passado, o que não
é exatamente isso como nos mostra Garin (GARIN, 2004) pela proposição de uma leitura do
humanismo como filosofia baseada nos studia humanitatis.
3 O uso da palavra curandeirismo neste texto não é de forma alguma pejorativo. Acreditamos que
Medicina seja algo específicamente referente à cultura ocidental, nascido na antiga grécia nas escolas
de Cos, com Hipócrates, e difusa em Roma, por Galeno. O uso deste termo nos dias de hoje tomou um
significado bem mais abrangente, contudo a especificação conceitual, aqui, nos ajuda a sublinhar, e
4
O processo de criação ou invenção dos medicamentos na Europa desde a
segunda metade do século XVI seguia, desde já, o timbre desta imitatio humanista. E
o que acontecia no Brasil não poderia ser diferente. O estudo do processo de invenção
de um único remédio, a Triaga Brasílica do colégio da Bahía, nos permitirá observar o
quanto o saber jesuítico, e sobretudo aquele existente em terras brasílicas, vinha já
bebendo e se apropriando de novas e profícuas filosofias emergentes no contexto
europeu.
A Triaga Brasílica era uma versão atual da antiga Teriaca inventada pelo
médico pessoal do imperador Nero, Andrômaco o velho, e cuja receita havia sido
notabilizada e difusa pelo médico de Pérgamo, Galeno, em sua obra De therica ad
Pisonem. O medicamento jesuítico, apesar de ser integralmente constituído por
ingredientes e métodos novos baseava-se nesta antiga receita formulada em priscas
eras.
A Triaga de Andrômaco e sua difusão através de Galeno
A história da teriaca perde-se em tempos imemoriais. Diz-se que o nome de
teriaca ou teriaga ou ainda triaga era empregado para fórmulas antigas que datam de
uma época anterior a dos gregos. Talvez mesmo entre os egípcios. Estes conceitos
eram usados para nomear certos remédios que eram empregados contra a ação de
venenos e mordidas de animais peçonhentos. Por isso eram muito procurados pelos
monarcas antigos para que evitassem a morte enviadas por seus inimigos sob a
dissimulada forma do veneno.
O mais importante desses monarcas foi o rei Mitrídates VI do Ponto (132 a.C.-
63 a.C.) quem, enormemente obsessivo com a morte pela envenenação, inoculava em
seu próprio corpo doses gradualmente crescentes de veneno que o imunizariam de
doses fatais destas substâncias letais4. Além disso, Mitrídates havia adquirido um
enorme conhecimento das ervas da região do Ponto e de suas virtudes. Sua obsessão
fez com que ele criasse diversos antídotos contra os venenos, entre os quais, um
particularmente eficaz conhecido sob o nome de Mitridático ou, em latim,
Mithridatium antidoton, que segundo Plínio o velho era constituído por 54
substâncias.
Depois de ter longamente guerreado contra Roma (as Guerras mitridáticas), o
rei de Ponto sucumbira ao general romano Pompeo Magno (106 a.C.-48 a.C.). Este
general achou, no palácio conquistado, no interior de uma arca, um registro pessoal
escrito pela mão de Mitrídates no qual continha uma série de receitas e entre elas
aquela do precioso Mitridático. Em seguida, Pompeo fez traduzir o manuscrito pelo
seu escravo liberto Leone, que tinha grande conhecimento de línguas, notabilizando a
fórmula entre os médicos romanos.
Cerca de um século depois, Andrômaco o Velho, médico de Nero, originário
de Creta, se apropriou de alguns ingredientes do Mitridático e adicionou outros, em
particular os trociscos ou pastilhas de víbora (tido como a base principal do
medicamento) e o ópio, e criou um novo remédio composto de 62 elementos5: a
Teriaca ou, em latim, Theriaca.
portanto entender, certas características e aspectos da cultura jesuítica, européia, não encontrados na
cultura indígena.
4 Esse processo de imunização pela ministração de doses de veneno no corpo do paciente é atualmente
chamado de Mitridatização ou Mitridatismo.
5 Parojcic e Olmi dizem que a teriaca era feita com 64 ingredientes e não com 62. Contudo, nenhum
desses autores analisou especialmente os ingredientes da fórmula de Andrômaco no texto de Galeno.
5
Este nome, como dissemos, apesar de ser usado por muitos, antes do composto
mitridático, notabilizou-se sobretudo pela fórmula andromacal. De onde, na época
medieval e moderna, a teriaca não era outra coisa a não ser o remédio oriundo desta
fórmula do médico romano. Assim, na verdade, a história da Teriaca começa com a
invenção deste remédio pelo médico de Nero.
A receita do remédio achava-se em um pequeno poema dirigido ao imperador,
onde Andrômaco celebrava as virtudes do medicamento, indicando os ingredientes e
os métodos de preparação assim como os modos e os momentos em que este deveria
ser tomado. Tal poeminha foi inteiramente transcrito pelo famoso médico, de origem
grega, Claudio Galeno (129-199 d.C.) na sua obra De theriaca ad Pisonem. Esse texto
desde sua tradução pelos árabes no período medieval e de sua publicação latina no
século XVI difundiu esta receita entre todos os médicos em toda a Europa até finais
do XVIII e inícios do XIX, quando a medicina cessara de empregar este
medicamento.
No poema do médico cretense, os usos da Teriaca eram os seguintes: a teriaca
servia contra os medicamentos letais, contra as injúrias de feras, contra males do
estômago, contra a asma, contra os gazes do ventriculo, contra as complicações dos
intestinos, contra as cólicas, contra os “Arquaticos”, contra a hidropsia, a tísia, o
tétano, os espasmos do tendão, o ‘opisthotono’, a pleuritide e as afecções da vesícula.
Ela curava os nefríticos, os purulentos e era usada contra a peste e a mordida de cão
raivoso.
Entre os seus 62 ingredientes, podemos observar a presença das pílulas de
víbora, feita com o pó da carne da serpente, do ópio (maeconis) e de outras
substâncias de origem mineral, como o mineral de cobre, vegetal e animal, como o
Castóreo. A lista completa dos ingredientes acha-se ordenada na tabela à seguir:
Ingredientes (em latim) Ingredientes (em português)
Pastillos viperae Trochiscos (trociscos) ou pastilhas de víbora
Piper calidi Pimenta
Maeconis Tipo de papoula; Ópio
Magmatis Resíduo de perfume
Magmatis hedychroi Resíduo de uma espécie de unguento
Folia alba rosae Folha de rosa branca
Irin illyricam Íris ilírica
Glycirissa Raiz açucarada
Opobalsama odora Odor de suco de bálsamo, bálsamo
Scordion Scordion [planta]
Dulcis semina buniados Sementes doces de um tipo de nabo
Myrrha Mirra
Costus Costum [planta aromatica]
Crocus Açafrão
Qui ducitur antro Corycio Planta obtida na gruta de Korykos [relativo ao
agarico], pode ser um fungo ou cogumelo pois
estes até então eram tidos por plantas.
Casea Canela
Nardus quae extremis fertur ab Indis Nardo [arbusto] [Nardo trazido dos extremos da
Índia]
Iuncus apud Arabos Junco, talo semelhante a um Junco
Thus Incenso
Piper obfuscum Pimenta preta
Dictamni germina Semente de Dictamo [planta]
Nós o fizemos e encontramos somente 62 ingredientes. Se algo nos passou despercebido, a culpa é
integralmente nossa.
6
Rheon ???????
Stoechas Tipo de Lavanda
Zingiber calens Gengibre quente [planta]
Prassion Marroio, gênero de plantas labiadas
Terebenthina Árvore (conífera) resinosa
Calaminthe Calamenta
Petroselinum Tipo de salsa
Quinquefolium Quinquefólio
Polij Polium [planta]
Styracis faciens Benjoeiro ou styrax árvore que distila uma resina
odorante
Chamaepytios Abiga [planta]
Meu Heracleum [planta]
Amomi Amomum [planta odorífera]
Nardus Gallica Nardo Gálico
Terra lemnia Terra lemnia
Phu ponti Valeriana [planta]
Semina chamaedrys cretensis Sémente de germandrée [planta] de Creta
Malabathri folia Folha de malobathrum [árvore que fornecia um
perfume]
Torrida chalcitis Mineral de cobre ou pedra preciósa
Anisum Anis [planta]
Gentiana Genciana [planta]
Succus hypocystis Suco de hypocistis [plante parasite]
Balsameum fructum Fruto de bálsamo [arbusto]
Gummi Gomas
Semen marathri Semente de funcho [planta]
Cardamomum Cardamomo [planta]
Acatia Acácia
Hypericum Hipericão [planta]
Seseli Séséli [planta umbelífera]
Thlaspi Tipo de agrião
Sagapenum Tipo de goma de resina
Ammi Tipo de cominho
Castorium nigrum Castóreo, [secreção oleosa glandular do Castor
(animal)]
Terrae malum Maçã da terra; aristolochia
Bitumen iudaicum Betume judaico
Dauci semen Semente de cenoura
Opopanaca Opopanax, suco da planta chamada Panax
Galbana optima Suco tirado de uma planta umbelífera da Síria
Ceutaurion Centáurea [planta]
Orbe phalerno Vinho falerno
Melle quo regio nutrit Attica Mel Ático
Tabela 1. Receita da teriaca tal como Andrômaco o velho dispôs em seu poema.
A teriaca ou triaga, como dissemos, era feita com a carne de víbora,
especialmente uma serpente deste tipo fêmea e não prenhe. Tomava-se a serpente e
cortava-lhe a cabeça e a cauda porque acreditava-se que nestas regiões havia um alto
teor de substância venenosa. Isto feito, deixava-se secar o corpo da serpente e, uma
vez seco, tirava-lhe a escama e a espinha. Depois, o que havia sobrado era pilado até
virar pó e com isso, misturando-lhe outras substâncias, fazia disso os trociscos ou
pastilhas de víbora.
Essas pastilhas eram misturadas aos outros ingredientes do composto e
dissolvidos em vinho (falerno) e em mel. O que fazia da teriaca um eletuário, ou seja,
7
uma substância coloidal que poderia ser ingerida ou usada como emplastro em
diversas partes do corpo.
Na publicação do poema, Galeno, além de dispor ao leitor a arcáica receita,
lançava mão de um minucioso comentário aos usos, às formas de preparo e,
sobretudo, aos ingredientes da teriaca. Isto porque, como podemos ver, a listagem dos
ingredientes da receita a partir do poema de Andrômaco mostra um enorme número
de imprecisões no tocante à classificação dos elementos em uso. O que dificultaria ao
médico ou apoticário o conhecimento dos ingredientes exatos no momento da
composição da receita na época moderna. Assim, o médico de Pérgamo oferecia ao
leitor a transposição do importante poema e um comentário que especificaria certos
pontos da composição do famoso remédio.
Interpretações maculadas e a crítica humanista
Todos os textos de Galeno, apesar deste médico ter passado sua vida em
Roma, foram escritos em língua grega. E durante muito tempo os europeus viveram
alheios ao conhecimento desta língua. Foram antes os árabes, mais ou menos nos
séculos XI e XII, que, depois de muitos séculos, passaram a ler e traduzir as antigas
obras gregas em sua língua materna.
A receita de Andrômaco era lembrada por Avicena no seu Canon, onde dizia
que a pastilha de víbora que aparecia como um ingrediente do remédio (segundo a
leitura humanista) não era específicamente uma pastilha tirada da víbora, mas antes
uma pastilha feita com a serpente denominada Tyrum. O que mostra uma certa
imperícia dos árabes no tocante à tradução e análise filológica dos textos antigos da
tradição clássica. O grego era lido, certamente, mas não com o devido cuidado e
erudição que a compreensão daqueles textos pedia.
Com o advento do humanismo, exatamente no momento da cisão entre igreja
do oriente e a igreja do ocidente, o grego, lingua por muitos séculos perdida entre os
europeus, voltou à ter o renome que lhe cabia na cultura da época. Os humanistas pós-
petrarquianos, visto que Petrarca, apesar de possuir muitos tomos de Platão em grego,
não os pudera ler por não ter absolutamente nenhum conhecimento da língua grega,
puseram-se a estudar e a ler diretamente as obras dos autores gregos. Entre os quais,
achavam-se Hipócrates e Galeno. E no tocante a Galeno, também aquela específica
obra em questão neste trabalho.
Em uma das primeiras edições do De theriaca ad Pisonem de Galeno, o
humanista alemão Johann Winter von Andernach (cujo nome latino era Ioannes
Guinterius Andernacus) criticava enormemente a imperícia linguística dos árabes no
tocante à tradição grega. Johann Winter chamava a atenção para a confusão de
Avicena e para o fato de que essa confusão se repetia nos seus imitadores6, além do
6 Atqui haec nunc à barbaris scriptoribus ita est corrupta, ut magni etiam inter medicos nominis viri in
ipsa rei summa foedissimè hallucinentur. Avicenna ille arabs, quem iuniores medici principem
excellentiae vocabulo nominarunt, serpentes propriè Theriacae consecratos ignorasse videtur, dum
nunc Tyrum, nunc Viperam tanque diversas illorum species adhiberi praecipit. Non enim legit egregius
iste Galeni interpres, fere dixeram, obscurator, ubique
εχιδναγ, quae dictio latinis valet vipera, non
alias bestias ab illo authore adhiberi. Sed condonandum viro censerem graecae eruditinus imperito, ut
qui arabis duntaxat Galeni tralationibus usus sit, ubi tamen semper Tyros pro
εχιδνα habetur, nisi
etiam sui imitaribus magnam ad errores fenestram apervisset. Alius enim viperam ex communibus
serpentibus unum esse scribit, non quae masculi caput nimia coitus dulcedine abrodit. Alius viperae
vocabulo aspides intelligit. Alius tyrum ex cornutorum serpentium numero statuit. Non desunt qui
hominum nomina, prava decepti tralatione, pro viperis usurpent. (GALENO, 1531: dedicatória)
8
que deixava claro à tradição médica ocidental a importância de uma leitura crítica das
obras antigas.
O humanista alemão deixava claro a necessidade de uma análise filológica
depurada do texto galênico que portava consigo a antiga receita de Andrômaco para
que não houvesse confusão entre os ingredientes da receita. A serpente empregada
pelos árabes variava em sua espécie, sendo que a única aceitável para a receita da
teriaca original era a Víbora.
De onde, os humanistas, e nesse caso Johan Winter, laudava o fato de que, no
seu tempo, nas boticas da Alemanha, o modo de se produzir o antigo remédio não se
achava mais corrompido pela má interpretação dos árabes e de seus seguidores. Nas
boticas alemãs já se produzia o remédio segundo aqueles princípios legados pelo
conteúdo preciso dos textos antigos.7
Assim, a partir do século XVI, as boticas européias conseguiram produzir o
medicamento mais fielmente possível àquele que era produzido na época de Nero.
Desta forma, a Theriaca Andromaci Senioris, como era chamada a teriaca entre os
boticários da época moderna, somente era considerada original se fosse produzida de
acordo com a fórmula de Andrômaco.
Contudo, como dissemos, muitos dos ingredientes do remédio que estavam
imprecisos no poema de Andrômaco e muitos outros que Galeno havia proposto na
seu comentário eram de difícil obtenção na Europa. Pelo que iniciou-se, no
Renascimento, uma grande polêmica entre os apoticários europeus sobre a troca dos
simples que compunham a triaga clássica por outros de melhor obtenção.8
Nas maiores boticas européias, como eram aquelas de Veneza e de Roma,
muito se discutiu a respeito da fórmula da teriaca e dos possíveis ingredientes que
poderiam tomar o lugar daqueles de dificil acesso propostos na fórmula original. Já
no século XVIII, nas fórmulas teriacais de algumas boticas do ducado de Mantova
que tivemos a oportunidade de ter em mãos, podemos ver algumas alterações ou
precisões no tocante aos ingredientes do arcaico medicamento.
Receita da teriaca da Speziera
del Moro, Mantova, 1741
(latim)
Receita da teriaca da Speziera
del Pozzo, Mantova, 1702
(italiano)
Tradução portuguesa
Pastillorum sciditicorum Trochisci Scillitici Trochiscos ou pirolas sciliticas?
Sciditicas?
Maoni Hedechroi Hedichroi Hedichroi ?
Orbiculorum ex viperis Trochisci di Vipera Trochiscos de víbora
Piper longior Pepe longo Pimenta longa
Opii thebaici Opio thebaico Ópio tebáico
Rosarum rubearum Foglie di rose rosse Rosas vermelhas (folhas de)
Iridis illiricae Radici d’Iride Illirica Íris ilíricas (raízes de)
Succi glycyrrhisae inspissati Sugo condensato di Glicirrhiza Suco condensado de glycirrhiza
7 Quod si vero antiquos authores per quos haec professio consummatur, potuissent intelligere, aut
Aristotelem, aut Galenum, aut Nicandrum, aut Plinium quoque non haesitassent quid esset Graecis
εχιδνα, latinis vipera: nec Tyrum, quae dictio est arabica, ab illa distinxissent. Theriacam vero
medicamen omnium laudatissimum etiam hodie integrum, incorruptum, germanumque haberent
officinae. (GALENO, 1531: dedicatória)
8 Como já foi dito (OLMI, 1990: 113) a respeito: Nel Rinascimento il compito di maggior impegno di
medici, speziali e naturalisti, sopratutto in Italia, fu di sostituire nella preparazione della teriaca tutte
le essenze vegetali di difficile reperimento. Feroci polemiche, scambi di accuse, liti, perizie e
controperizie caratterizzarono a lungo i processi di confezione dell’antidoto. Numeroso furono anche
le opere pubblicate, nelle quali ogni studioso portava prove a sostegno della propria formula, contro
quella proposta da altri studiosi o addottata da Collegi di medici o Corporazioni di speziali di altre
città.
9
Semi napi agrestis Seme di buniade agreste cioè
Napo
Sementes de Nabo agreste
Scordi cretici Scordio cretico Escódio cretense
Opobalsami optimi Liquore di Balsamo in sua vece
Oglio espesso di noce muscate
Opobalsamo ótimo (liquor de
bálsamo)
Cinnamomi sinceri Cinamomo tenue Cinamomo sincero (tenue)
Agarici albissimi Agarico bianchissimo Agarico branquissimo
Mirrhae optimae Mirra trogloditica Mirra ótima
Costi odorati Costo odorato Costo odorato
Croci optimi Croco ottimo Croco ótimo
Cassiae ligneae Cassa lignea Cassia lignea
Spice Nardi indicae Nardo Indica, cioè Spica Nardo Spica Nardo ou Nardo índica
Schoenanth .i. Iunci odorati Giunco Arabico, cioè
Squinantho
Esquinanto ou junco árabe
Thuris masculi Ture ovvero Olibano maschio Thuris
Piperis nigri Pepe nero Pimenta preta
Dictamni cretici Dittamo cretico Ditamo cretense
Marrubij cretici Marrobio cretico Marróbio cretense
Rhapontici optimi Ragonthium ottimo Rapontico ou Ragontico ótimo
Summitatum stoechados Sommità di stechade Pontas de Stechade
Perroselini macedonici Semi di petroselino macedonico Petroselino macedônico
(sementes)
Calaminthae montana creticae Calamenta montana Calamenta montana cretense
Terebenthinae cypriae Terebentina cipria Terebentina cípria
Gingiberis optimi Zenagro ottimo Gengibre (Zenagro) ótimo
Radicum pentaphyli Radici di cinque folio, cioè
pentafillo
Raíz de cinquefolio ou pentafilo
Polij montanij Polio montano Pólio montano
Chamae pityos cretici Chamaepitio, cioè Iua artetica Chamaepitio pityos cretense
Styracis calamirnae Stirace calamita purissima Estyrace calamirnae
Amomi racemosi Amomo racemoso Amomo racemoso
Mei athamantici Meo atamantico Meo atamantico
Nardi celticae Nardo celtica Nardo celtica
Terrae lemniae Rubrica lemnia, overo Bolo
armeno
Terra lemnia ou bolo armeno
Phu pontici Phù pontico Phù pontico
Camaedryos cretici Chamedrio cretico Chamaedrio cretense
Folii malabathri Foglio malabathro Folha malabathra
Calciditis ustae Calcitide mènò tosta Calcitide
Radici gentianae Radici di Gentiana Raíz de gentiana
Seminis anisi Semi di Aniso Semente de aniz
Carpobalsami Frutti di Balsamo, in loco di
questi bacche di ginepro
Frutos de bálsamo
Succi hypocystidis Sugo d’hipocistide Suco de hypocistide
Gummi vermicularis Gomma arabica vermicolare Goma vermicular
Sem. Foeniculi cretici Semi di finocchio cretico Semente de funcho cretense
Cardamomi Cardamomo minore Cardamomo
Seseleos massiliensium Sesseli di Marsiglia Sefelio de Marselha
Succi acaciae Sugo di Acatia Suco de acácia
Sem. Thlaspeos cretici Semi di Thlaspi Semente de Thlaspe
Summitatum hyperici Sommità di Hipericò Pontas de Hipérico
Lachrymarum sagapeni Lacrima di Segapeno Lágrimas de Segapeno
Amineos cretici Amineos cretico Aminio cretense
Castorei pontici Castoreo pontico Castório pontico
Aristolochia longae Aristologia longa Aristoloquia longa
Seminis dauci cretici Semi di Deuco Semente de Deuco cretense
Bituminis iudaici Betume giudaico Betume judáico
Opoponacis Lacrima d’Opoponago Opoponago (lágrimas de)
10
Summitatum centaurij nun. Summità di Centaurea minore Pontas de Centaurea menor
Lachrymarum chalbani Galhano puro Lágrimas de galhano (calbano)
Mellis attici optimi Miele ottimo despumato Mel ático ótimo
Vini falerni Vino malvatico Vinho falerno ou malvatico
Tabela 2. Receita de duas boticas mantovanas (OLMI, 1990: 120-121).
Aparece nestas receitas alguns ingredientes novos que não estavam presentes
na receita original trazida ao público por Galeno e alguns outros ingredientes são
também específicados e complementados. Os novos ingredientes presentes nestas
receitas são os Trochisci Scillitici, o hedichroi, o Rhapontici, etc. Os ingredientes
específicados ou complementados são o ópio tebáico, que na receita antiga era
identificado como maeconis, sendo este uma planta opiácia mas não especificamente
o ópio; a rosa que na receita antiga era branca, passa a ser vermelha, o fungo Agarico
que na receita antiga era aquilo que é tirado das cavernas de Corycio, a Spica Nardo
que na antiga receita era o Nardo Índico, etc.
Nota-se um grande número de especificações e alterações entre a receita
antiga e estas mais recentes, filhas do intenso debate que se instaurara no
Renascimento ao qual fizemos referência anteriormente.
Como estes apoticários desde o Renascimento, dentro da turbulência cultural
que os humanistas haviam legado, os jesuítas também alteraram a receita da antiga
teriaca ou triaga propondo uma nova receita quase totalmente independente dos
ingredientes europeus, a Triaga Brasílica. Essa receita apresentava uma dificuldade
ainda maior para os jesuítas porque, estando em terras brasileiras, a obtenção dos
ingredientes clássicos, advindos em sua maioria da Europa, era ainda mais
complicada.
À primeira vista, sua composição espanta pela enorme quantidade de
ingredientes, de origem vegetal e animal, colhidos da natureza brasileira. Entre eles se
acham o jaborandi, a pagimirioba, a ipecacuanha, a angélica, a pindaíba, o bálsamo
do Brasil e, especialmente, as jararacas de onde os jesuítas faziam os trociscos ou
pílulas que compunham o médicamento como veremos à seguir.
A Triaga Brasílica
Antes de 1716, a triaga brasílica já era conhecida e mencionada por João
Curvo Semedo na sua obra Memorial de varios simplices que da India Oriental, da
America, & de outras partes do mundo vem ao nosso Reyno para remedio de muytas
doenças, dizia ele, no verbete Triaga Brasílica, & suas virtudes que:
No Collegio dos Religiosos da Companhia de Jesus da Bahia, se faz huma Triaga chamada
Brasílica, composta de várias plantas, raízes, ervas, frutos, & outras que nascem no Brasil,
dotadas de tão excellentes virtudes, que cada huma só per si pòde servir em lugar de Triaga
Magna; pois com algumas das raízes, de que se compoem este Antídoto, se curam no Brasil
de qualquer peçonha, & mordedura venenosa, como também de outras enfermidades, só com
mastigallas; & a experiencia tem mostrado, que senão he melhor que a Triaga Magna, não he
inferior a ella; porque eh efficacissima contra todo o veneno (excepto os corrosivos) como he
o solimão, & o rosalgar (SEMEDO, 1716: 17-18)
Por Triaga Magna, Semedo entedia a teriaca oriunda da antiga receita de
Andrômaco e assim sendo, segundo o médico, a Triaga Brasílica, remédio moderno,
era já considerada, senão melhor, ao menos igual em eficácia ao remédio antigo.
Essa famosa, e ao mesmo tempo misteriosa, receita era um dos ingredientes
que dava grandíssimo renome às boticas jesuíticas do Brasil. Isto porque o composto