A LIBERDADE... O CONHECIMENTO... A ARTE... (2) - WILHELM REICH - 4ª Versão - (3ª parte) - "Os beija-flores mandam mais beijos, muito mais carinhosos". 11/09/2015 - (J.M.C.)

Sua obra surge num momento de uma intensa expansão da indústria química após a segunda guerra mundial, que teve o objetivo fundamental de produzir armas químicas que afetassem o homem e a vegetação. Surgem moléculas sintéticas com ação biocida, depois proscritas, mas ainda presentes, que hoje se diferenciam num sem número de substâncias cujo "conforto" no uso

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não deveria esconder potenciais malefícios a Gaia e seus habitantes em longo prazo.

O tema continua atual e se tornou mais complexo: em 1996 "O Futuro Roubado" trouxe o procedente alerta da disseminação e efeitos de agentes químicos alterando os sistemas endócrinos de seres vivos, os chamados disruptores endócrinos ambientais (COLBORN; DUMANOSKI; MYERS, 2002) (14), substâncias que causam distúrbios na síntese, secreção, transporte, ligação, ação ou eliminação de hormônios endógenos e, assim, como metabolismo, alteram também a diferenciação sexual e a função reprodutiva (PINTO) (56), como no caso da queda contínua na contagem de espermatozóides no sêmen que se vem presenciando na raça humana.

A poluição e contaminação do ar, das águas, do solo, dos alimentos, as radiações ionizantes (incluindo as explosões e acidentes nucleares) acrescidas agora todas as formas de uso expansivo de tecnologias de comunicação sem fio (radiações não ionizantes) expondo a população de forma artificial a campos eletromagnéticos, tudo interagindo de forma potencialmente agressiva à natureza, incluindo a humana, traz motivo para apreensão. A precaução aponta o que o interesse econômico esconde: a cautela deveria ser ainda maior quando o elo mais vulnerável - concepção, gravidez e primeiros anos de vida - acabam por poder manifestar de forma insuspeita, alterações que resultam em anomalias resultantes de agressões ambientais pregressas.

Na "Psicoecologia reichiana: das origens biológicas da solidariedade à desertificação humana e ambiental", de José Henrique Volpi "...assim caminha a humanidade, sendo regida durante toda sua existência pelo desejo de conquista, de guerra, de poder, de violência, perturbando a frágil relação existente entre o homem e a natureza e alongando consideravelmente a lista dos desastres ecológicos provocados nos últimos tempos. [...] É inegável os efeitos destrutivos da espécie humana sobre o próprio homem, sobre as demais espécies animais e vegetais e sobre a biosfera como um todo. [...] O homem foi quem se separou da natureza, e não a natureza do homem" (VOLPI, 2004) (83).

Portanto, a constatação do problema ambiental planetário pode evidenciar o caminho tomado pela ideologia tornada hegemônica no planeta globalizado, da

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usurpação dos benefícios da natureza e da vida, destruindo-a, contaminando já e cumulativamente para as próximas gerações de entes viventes e seres humanos, crianças do presente e do futuro.

Uma substituição do superior pelo banal, do profundo pelo efêmero, culto a narciso e destruição da natureza.

Crescimento urbano e sociopatia do século XXI

Amplas hordas de seres subumanos formam-se bárbaros do século XXI, ou refugiados agora também ambientais, excluídos e desempregados, convivendo com as empresas de comando do mercado, da produção em massa, da ideologia de um consumo que extrapola a capacidade natural de suporte da natureza, da demanda por energia, e dos recursos naturais do planeta.

Uma transformação estrutural da humanidade que deve ser salientada é a decorrente do crescimento em progressão geométrica da população mundial ocorrida nesses 50 anos, determinante de rápidas transformações na configuração planetária precedente e atual, trazendo uma concentração urbana inusitada na história, e principalmente intensificando o formato de uma arquitetura civilizatória com profundos problemas estruturais, deixando mais nítida e clara a necessidade de se tocar na sua essência.

Assim, se foram necessários dois milhões de anos para que a humanidade atingisse o primeiro bilhão de habitantes em torno do ano 1.800, cerca de 130 anos após (1930) é atingido o segundo bilhão (período reichiano), mais 30 anos (1963) o terceiro bilhão, 4 bilhões de habitantes em 1978 (15 anos após), mais 12 anos o quinto bilhão em 1990, e dez anos mais para o sexto bilhão, sendo que as estimativas mundiais apontam para 6,5 bilhões o número de seres humanos habitando o planeta Terra ao final de 2007. Ou seja, nos últimos 50 anos a população mundial cresce em progressão geométrica, passando em curtíssimo intervalo histórico, de 2 para 6 bilhões de seres humanos.

Esse crescimento populacional exponencial da humanidade é um poderoso fator de aceleração e amplificação dos problemas da civilização, ao lado de todos demais componentes da complexa globalidade. No dizer de James Lovelock:

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Tudo que fazemos ao planeta não é necessariamente ofensivo, nem impõe uma ameaça geofisiológica, a menos que façamos em uma escala muito grande. Se fôssemos apenas 500 milhões de pessoas na Terra, quase nada do que hoje estamos fazendo com o ambiente iria perturbar Gaia. Infelizmente para nossa liberdade de ação, estamos chegando aos oito bilhões de pessoas, com mais de dez bilhões de ovelhas e gado em geral, além de seis bilhões de galináceos. Utilizamos grande parte do solo produtivo para plantar uma variedade muito limitada de vegetais para colheita e processamos de modo ineficaz uma grande quantidade deste alimento através do gado. Além do mais, a nossa capacidade para modificar o ambiente aumentou muito com o uso de fertilizantes, produtos químicos ecocidas e do maquinário que movimenta a terra e corta árvores. Quando se leva tudo isso em conta, vemos que estamos realmente correndo o risco de tirar a Terra do confortável estado em que ela já esteve (LOVELOCK, 1991) (37).

As projeções das conseqüências desse perfil epidemiológico-demográfico que se delineia para as “crianças do futuro”, não parece alentadora.

Hoje em dia temos as doenças "mentais-corporais" que nos afligem: conseqüências de modos alimentares e hábitos como o do tabagismo, o estresse global decorrente da exposição ao ambiente estressante e antropicamente poluído, a depressão, o "bullying", o "burn-out"19, o estresse pós-traumático, a AIDS e doenças sexualmente transmissíveis, todas as doenças cardiovasculares, o câncer entre outras doenças degenerativas, acidentalidade, violências e uso de drogas particularmente entre jovens, etc, configurando uma transição sócio-epidemiológica mais complexa hoje que na contemporaneidade reichiana. Houve também indiscutíveis conquistas que contribuem para o adensamento desse perfil epidemiológico.

No dizer de José Henrique Volpi, "no âmbito psicológico o homem também sofreu. [...] Aumentou o desemprego, a fome, o estresse, a violência":

Segundo relatório da Organização Mundial de Saúde (2004) o estresse foi a doença que mais matou pessoas em todo o mundo no ano de 1999, número esse que cresce a cada dia. Então o estresse tornou-se uma epidemia global, fruto da desadaptação da espécie humana às pressões cotidianas que são impostas por um estilo de vida altamente

19 Referente a síndrome de "burn-out" - do inglês, queimar-se, extinguir-se, um diagnóstico clínico contemporâneo que se tornou visível e freqüente, principalmente entre profissionais das áreas de educação e saúde.

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competitivo. Também como fruto desse estresse, causado por uma variada fonte de estressores, surgiram as fobias. Dados da Organização Mundial de Saúde (2004) também informam que no ano 2000 aproximadamente 14% da população mundial estava sofrendo de algum tipo de fobia. A depressão também foi apontada como resultado da crise econômica causada pela modernidade. Junto a isso, encontramos as alergias, a hipertensão, os infartos, e várias outras doenças de fundo emocional, que são indicadores significativos da crescente dasadaptação humana às novas condições ambientais precipitadas pela modernidade (VOLPI, 2005) (82).

A violência multiforme como um fenômeno patológico na civilização merece destaque, assim como também o fenômeno do câncer, ambos trazidos aqui como graves indicadores do que seria uma "pulsão de morte" agindo em âmbito individual e coletivo global nossa sociedade, que, numa perspectiva reichiana seriam desvios compreendidos como sociopatia e biopatia decorrentes da perturbação da pulsação vital pela negação social da vida, "expressão e conseqüência de perturbações psíquicas e somáticas da atividade vital" (REICH, 1982 p. 18) (61).

De um ponto de vista de saúde pública e ambiental, há implicações significativas no adensamento populacional, aliado com outra tendência relevante, que é a do aumento da longevidade, trazendo a emergência desenvolta da epidemiologia do câncer e também de outras doenças degenerativas como um sério problema que cada vez mais a humanidade terá de enfrentar. Infelizmente a longevidade não vem acompanhada do aumento da ocorrência das chamadas mortes naturais de homens e mulheres que vivem por até um século: morre-se antes, por doenças e descompensação do sistema cardiovascular, por câncer, de permeio aos males como de Parkinson e Alzheimer.

O "flagelo do câncer" merece destaque quando se fala em Wilhelm Reich. Foi acusado por ação da peste emocional, de ter proposto a "cura" do câncer com o acumulador de orgônio. Reiteradamente negou que sua proposta de modelo de compreensão da fenomenologia do câncer (e outras biopatias) oferecia uma "cura", mas que pacientes de câncer pareciam beneficiar-se com o uso do tal acumulador. Não é o propósito discorrer aqui sobre acumulador de orgônio como

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abordagem contra-hegemônica do tratamento do câncer, ainda que seja tema de relevante interesse.

Mais do que isso, Reich sublinha que uma possibilidade de abordar o problema do câncer residiria mais na profilaxia da enfermidade que em sua cura, defendendo a profilaxia das neuroses desde a gestação e parto e por toda a vida, oferecendo aos que já passaram essas fases traumáticas a alternativa do aumento do fluxo bioenergético psíquico e corporal, num sentido do prazer natural da vida e da sexualidade poderem se complementar no afastamento da neurose e da peste emocional.

Então essa sua abordagem é atual, até porque tenham se agravado os fatores estressores ambientais na complexa fenomenologia da história natural das biopatias da sociedade contemporânea. Epidemiologistas clássicos falavam na "história natural" de uma doença, tomando por base o modelo cartesiano das doenças infecciosas com agente vetor identificado, e daí o combate ao agente.

No caso do câncer e outras doenças que Reich classificava como biopáticas - exatamente as não infecciosas porque estas seriam as não biopáticas, as hipóteses evoluem, mas alguma incógnita prevalece, principalmente quando se toma por base a concepção mecanicista da "boa" ciência, que deseja encontrar um agente causador.

Dessa forma Reich observava em 1942 o fenômeno epidemiológico do decréscimo das doenças infecciosas e aumento das doenças biopáticas, tais sejam, as doenças mentais, as doenças cardiovasculares por hipertensão sistêmica, o câncer, os suicídios e a criminalidade. Esse movimento continua, e tem quarenta anos depois, na Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – SIDA (AIDS), uma expressão inusitada de um hibridismo entre infecção e biopatia nesta acepção formulada por Reich, que impôs refreio e ressaca numa revolução sexual abortada.

A ciência avançou no diagnóstico e tratamento do câncer nesses últimos cinqüenta anos, obtendo até "cura" e prolongando a qualidade de vida em numerosos casos, mas quanto a uma abordagem científica que vá mais profundamente às suas origens biológicas, e principalmente em formas de evitá-lo - profilaxia - muitas perguntas ficam sem respostas.

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A resposta preponderante nos meios oficiais e acadêmicos passa hoje ao tabagismo e o uso de álcool o seu devido peso, numa titânica luta contra a indústria do fumo, e do abuso do álcool, este principalmente pelo co-fator de abuso e violências em geral, como no genocídio dos acidentes de trânsito neste momento no Brasil.

Para além disso há o estímulo aos demais hábitos saudáveis como a prática de esportes etc, mas quando entra em alimentação, o mutismo se inicia por dar de encontro com os interesses da agricultura, pecuária e da indústria alimentícia que são co-responsáveis, por exemplo, pela epidemia de obesidade da sociedade humana. Aí começa um processo de vitimização da vítima, responsabilizando-a por seu câncer, porque fumou, bebeu, não praticou esportes, consumiu alimentos inadequados, postergou ou não procurou o exame preventivo periódico, não esteve atento aos primeiros sinais...

Falar de contaminação e, portanto da necessidade de maior rigor no controle da exposição ambiental de um sem número de poluentes que contaminam os alimentos, a água e ar, não faz parte das políticas hegemônicas de "controle" do câncer e dos demais agravos decorrentes da exposição eco-psico-ambiental a fatores de estresse e potencial agressão. Muito menos de que o câncer possa também ser uma manifestação de uma resignação geral de caráter como resposta ao prazer bloqueado, comprometendo por qualquer motivo os mais vulneráveis a esse processo.

O cenário das pesquisas atuais aponta que o problema do câncer tende a se agravar na humanidade, com número crescente de casos e óbitos, hoje em torno de 10 e 7,5 milhões respectivamente, esperando-se maior severidade de grande acometimento de populações pobres ou em países em desenvolvimento, e que historicamente vem também comprometendo mais crianças.

A realidade hoje do câncer de mama em mulheres cada vez mais jovens e o de próstata em homens seriam indicadores do fator exposição ambiental a hormônios, ou ao efeito nocivo da estase da bioenergia como uma biopatia de todo o ser?

O obra de Reich na sua última década de vida passa a uma densidade para a qual avalio ainda devamos melhor nos preparar para compreender. "A

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Biopatia do Câncer" é uma publicação de 1947 que ao momento, ainda não recebeu edição brasileira.

A hipótese reichiana da biopatia do câncer como problema sexual sociológico merece consideração, não de forma isolada, mas no conjunto da multifatorialidade atribuída etiopatogenia dessa doença. Não se poderia negar que ao fato de poder haver a vulnerabilidade caracteriológica e energética defendida por ele, agora vem agravada pelos fatores ambientais de estresse psicossomático e biológico.

Privados da função sexual natural, cancerosos em potencial - qualquer ser humano enfim - desenvolveria resignação caracteriológica, a partir da qual o bio-sistema passa a claudicar em sua capacidade autonômica de defesa e manutenção da vida. A partir daí, cada indivíduo com a sua história e vulnerabilidade genotípica e fenotípica, poderia desenvolver, em algum ponto significante da sua corporeidade e energética, um anelo de conflito psi-corporal que resulte em proliferação celular de natureza invasora e agressiva, como manifestação orgânica ulterior de uma anterior enfermidade sistêmica do organismo, que evoluiu da couraça muscular e caracteriológica também desenvolvidas como defesa ao impedimento crônico ao prazer.

Para Reich o câncer seria uma putrefação dos tecidos que se produz em vida, como conseqüência da fome de prazer do organismo. Uma parte autônoma desloca-se do todo orgânico de forma contrária ao sistema vital que a contém, minando-o em sua energia, destruindo-o. Uma biopatia de encolhimento à inexorável renúncia orgástica.

Violência: ressonância biopática da peste emocional.

Dany-Robert Dufour levanta a hipótese de que uma mutação histórica na condição humana estaria se completando nas sociedades, identificável através de uma "fratura na modernidade":

[...] um cortejo de acontecimentos: domínio de mercado, dificuldades de subjetivação e de socialização, toxicomania, multiplicação das passagens ao ato, aparecimento do que se chama, corretamente ou não dos 'novos sintomas' (anorexia, bulimia, toxicomania, a depressão, a crise de

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pânico... quer dizer, práticas de ruptura, de rejeição do laço com o Outro, freqüentemente encontradas e invocadas nos diagnósticos ditos de 'pré-psicose'), explosão de delinqüência em porções não negligenciáveis da população jovem, nova violências e novas formas sacrificiais... sinais de uma crise gravíssima que afeta a população dos países desenvolvidos em primeiro lugar, sua parte mais exposta, a juventude" (DOUFOUR, 2005 p. 23-24) (18).

A entrada do século XXI é pronunciadamente marcada por evoluções na questão da violência, aqui re-significada para todas as suas formas e diversificações complexas do mundo globalizado, e suas conseqüências individuais e coletivas no cotidiano planetário de todos e de cada um, a partir das suas incontáveis vítimas.

Uma violência que banaliza a vida no seio da civilização globalizada, como "biopatia psicopática" da peste emocional da humanidade, como se assim alguém talvez pudesse propor numa tentativa de compreensão reichiana deste fenômeno que recrudesce no século XXI. Crianças do futuro: da natureza pura à criminalidade na juventude, agressores e vítimas.

Adquire uma multiplicidade de formas deploráveis mas exerce fascínio nas massas. Acaba de ganhar prêmio urso de ouro no Festival de Berlim o filme "Tropa de Elite" do diretor José Padilha, sobre o qual Jurandir Freire Costa comenta:

Tropa de Elite (...) mostra o Brasil de hoje. Precisamente o Rio de Janeiro de 1997, por ocasião da visita do papa João Paulo II. O pano de fundo é totalmente diverso: favelas, tráfico de drogas, corrupção policial e, por fim, as entranhas do Bope, a tropa policial de elite que dá título ao filme. Se o inferno tivesse alguma feição, com certeza seria algo semelhante ao que o diretor nos faz ver. Nos guetos marginais das favelas, miséria socioeconômica e miséria moral dão-se as mãos na corrida desenfreada de delinqüentes e policiais para provar quem consegue ser mais violento. Tortura, sanguinolência, delação, falta de escrúpulos, tudo fede à mais estúpida desumanidade. [...] o que de mais macabro produzimos em desrespeito à vida e à dignidade da pessoa. Instituições falidas e indivíduos desencantados debatem-se como moscas tentando

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escapar da maligna teia de destruição que se contrai e os tritura de forma inexorável (COSTA, 2007) (15).

Nos tritura e fratura a todos. Violência que também decorre do pânico e do medo de entrar em contato com a essência amorosa roubada, competição no lugar da cooperação, do matriarcal deposto pela peste.

Nesses anos que sucedem, a história mostra que o fenômeno das violências, que perpetra morticídio entre as espécies, perdura, aprofunda-se e se amplia de forma trágica, atinge o planeta (além da humanidade) também de uma forma global e polissêmica. Generaliza-se no espaço, no tempo e nas relações, um retono a uma não civilização (HOBBES apud MINAYO, 200620).

Relatório da ONU em profundidade global organizado pelo sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro e apresentado àquela organização em outubro de 2006 aponta que a violência contra a criança é uma prática generalizada na sociedade contemporânea. O relatório, que se transformou num livro,

[...] aponta a violência contra a criança como prática generalizada, independentemente de situação socioeconômica e cultural dos países. A mutilação genital feminina não é praticada na América Latina, mas é presente na África e na Ásia. O nível de homicídio de jovens na América Latina não se compara ao de outros lugares. Então cada região tem problemas específicos, mas hoje temos problemas no Norte e no Sul. E, apesar de 14 países terem proibido o castigo corporal, isso não quer dizer que ele tenha sumido (RADIS, 2007) (58).

O "Relatório mundial sobre violência contra crianças", que está disponível na Internet (ONU) (53) mostra uma situação dramática. Naquela entrevista concedida a Mariluce Moura (50), Paulo Sérgio Pinheiro informa "os cinco contextos em que se dá a violência contra a criança: família, escola, instituições como asilos, orfanatos ou prisões, o lugar de trabalho e a comunidade. O maior desastre é o das crianças e adolescentes em conflito com a lei. Aí é a tragédia. [...] Há conseqüências para a saúde mental, física, é um desastre total. O Estado vai gastar com o tratamento de cidadãos totalmente lesados. [...] Temos um

20 Comunicação oral da autora no 11° Congresso Mundial de Saúde Pública e 8° Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, Rio da Janeiro, Brasil, em 21 a 25 de agosto de 2006.

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estatuto (o da Criança e do Adolescente) maravilhoso, mas entre o estatuto e sua aplicação há um abismo" (PINHEIRO, 2007) (58).

As estatísticas aportam números superlativos ao se observar o fenômeno do trauma de origem antrópica, num modelo epidemiológico de curva endêmica ascendente, e episódios de recrudescimento "epidêmico" ou surtos nas guerras e guerrilhas em curso, nos atos de terrorismo, banditismo, seqüestro e suas represálias institucionais, nas chacinas urbanas, nos meios de transporte terrestre de condução humana, etc. Uma verdadeira pandemia de traumas, acidentes e violências.

Em matéria na revista do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo Luís Mir traz que:

Quando se fala de guerra civil no Brasil, confundem-se duas realidades: o país oficial e o país real. O Estado evita qualquer abordagem direta e indireta sobre o conflito civil e metropolitano que temos instalado hoje em todo o país, que não parta de sua ótica e dos seus diagnósticos. Vamos aos fatos: oficialmente 550 mil pessoas morreram vítimas de disparos de armas de fogo no Brasil entre 1979 e 2003 (SIM/Unesco), num ritmo infernal. Se somarmos a subnotificação de 20% sobre esse total (o mínimo admissível, em alguns Estados nordestinos chega a 60%), temos 600 mil assassinatos. Nos últimos 24 anos as vítimas de armas de fogo cresceram 461,8%, enquanto a população do país cresceu 51,8%. Em 1979, as mortes por arma de fogo representavam 1% do total de óbitos do país e passaram para 3,9% em 2003. Entre os jovens a taxa de mortes por armas de fogo aumentou de 7,9% (1979) para 34,4% (2003). Das 550 mil mortes provocadas por disparos de armas de fogo, 206 mil foram vítimas dessa faixa etária. (MIR, 2005) (49).

Para o pesquisador, do total de despesas do sistema de saúde do Brasil, 24% é gasto com vítimas de trauma. "A conta médica da guerra civil é impagável. A medicalização da violência tem um custo proibitivo para um país desequilibrado e injusto como o nosso. Por conta da guerra civil o sistema de saúde pública começou a entrar em colapso na década de 80 e a crise atinge na década de 90 o grau de catástrofe. No novo século, com apenas cinco anos, a catástrofe continua" (MIR, 2005) (49).

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Pode-se falar em violência como fenômeno polissêmico: todo e qualquer ato que resulte em morte, sofrimento ou dano de natureza física, psicológica, social, sexual, todos atos destrutivos e/ou auto-destrutivos. Aí temos uma ampla gama de situações especificando o tipo e contexto de atuação envolvido: abandono ou abuso, situações em trabalho (exploração e assédio) e na esfera sexual, intrafamiliar e doméstica, contra criança, a mulher e o idoso, em escolas (assassinatos em série e o fenômeno do "bullying") e na rede Internet (que o amplia), a pedofilia, os estádios de futebol, todos os crimes e torturas, o terrorismo e o seqüestro, as facções criminosas, os crimes, todas as formas de corrupção e o evidente componente sexual freqüentemente associado à violência e ao abuso de poder. Das guerras e dos conflitos bélicos, éticos e religiosos do século XXI já falamos bastante.

O tema violência aparece, portanto de forma bem demarcada em 2006 e 2007 destacadamente no Brasil, em outras partes do planeta.

Além do citado relatório de Paulo Sérgio Pinheiro, a Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva editou volume específico de Ciência & Saúde Coletiva sob o tema Violência e Saúde: Desafios Locais e Globais, inicialmente em inglês e a seguir num suplemento que o amplia, em português (ABRASCO, 2006) (2).

No 8° Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e 11° Congresso Mundial de Saúde Pública é aprovado o "Manifesto da ABRASCO pela segurança cidadã e contra a violência" que conclama sua ampla divulgação para cobrar dos então candidatos a cargos eletivos, compromisso com o ideário ali proposto (ABRASCO, 2006) (1).

O Ministério da Saúde Brasileiro também publica um número exclusivo tratando de "Violência - prevenção e controle no Brasil", de Epidemiologia e Serviços de Saúde, Revista do Sistema Único de Saúde do Brasil, trazendo diversos dados e análises sob um ponto de vista institucional (19).

Paulo Cesar Endo recebeu em 2006 o prêmio Jabuti na categoria Educação Psicologia e Psicanálise, com o seu livro "A Violência no Coração da Cidade - Um Estudo Psicanalítico" (ENDO, 2005) (20), onde aponta que os cidadãos passam a ter uma posição reativa no que se refere à violência, e no

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geral, mesmo não tendo isso claro, ligam-se a políticas de extermínio, como a pena de morte, a redução da maioridade penal e o discurso de que pobre tem que morrer, num ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação, enraizando definitivamente o problema da violência nas grandes cidades, ao se agregar as práticas de encarceramento e o desrespeito à Lei de Execuções Penal, que acaba reforçando o lema da justiça com as próprias mãos, propondo no seu trabalho uma investigação das raízes psíquicas do problema (ENDO in GERAQUE, 2006) (27).

Raízes psíquicas e corporais. Para Flávio Roberto de Carvalho Santos, "A criminalidade não pode deixar de ser compreendida por um aspecto clínico, no sentido econômico-sexual, dentro da abordagem reichiana". E prossegue:

Dentre tantas colocações, destacou Reich que quando o instinto sexual não é satisfeito adequadamente, este mesmo se transforma em destrutividade. [...] A destrutividade necessita da neuro-muscularidade tal como a satisfação sexual saudável. No indivíduo com uma estrutura de personalidade desajustada ao longo de sua história, a excitação sexual insatisfeita invade o corpo não mais com um cunho sensual agradável, mas com um cunho ameaçador e destrutivo. [...] Desta forma, sem essa compreensão, nada muda na sociedade porque nada é feito de fato no sentido da economia sexual. Sabemos que a leitura reichiana é uma tarefa difícil por se associar à brutalidade do criminoso e às questões econômico-sexuais de seu desenvolvimento afetivo. Porém, tudo que tem sido feito até agora, das medidas corretivas, em nada modificou a condição da atualidade (SANTOS, 2004) (73).

Violência: uma reverberação obscurantista, onde, à transgressão, só tem restado o controle, no "vigiar e punir" de Michel Foucault (FOUCAULT, 2007) (21).

Essa hegemonia "sempre foi assim", a humanidade nasce com o "o instinto de morte" e de fato cada vez mais será necessário o "controle" da inata bestialidade humana?

Os sistemas institucionais procuram a prevenção do fenômeno, mas avançam muito pouco além do conhecimento, identificação pelos sistemas de

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vigilância e epidemiologia e punição aos infratores num subsistema prisional e tutelar que acaba agravando na prática o problema.

Por vigorarem hegemônicas, as abordagens do "combate" à violência e da tolerância "zero" não só adentram nas controvérsias éticas da adoção da pena de morte e redução da maioridade penal, mas evidenciam que na polissemia deve ser incluído o prazer sádico que se reforça quando a grande mídia e os sistemas tecnológicos agregados (jogos, cinema, etc) escancara toda a bestialidade de uma forma tão real de civilização, quanto perversa. Milton Santos fala de que violência é um quase um estado, uma situação característica do nosso tempo.

Entre os fatores constitutivos da globalização, em seu caráter perverso atual, encontra-se a forma como a informação é oferecida à humanidade e a emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida econômica e social. São duas violências centrais, alicerces do sistema ideológico que justifica as ações hegemônicas e leva ao império das fabulações, a percepções fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos totalitarismos - isto é, dos globaritarismos - a que estamos assistindo (SANTOS, 2001) (74).

A parafernália do controle acaba por estimular a violência, como o dito de que violência atrai violência. A ressonância perversa. As abordagens tradicionalistas contentam-se em reconhecê-la como um fenômeno humano, e que por isso não se almeja erradicá-la, mas compreendê-la para lidar com ela.

Não se toca na profilaxia da violência, como na da neurose em geral, como defendeu Wilhelm Reich, termo mais adequadamente empregado aqui ao invés de prevenção: previne-se uma doença ao se evitar a exposição aos fatores etiológicos e de risco. No caso da violência, como na profilaxia da neurose, alude-se a um conjunto complexo de fatores, num âmbito muito mais amplo do que numa relação mecanicista de causa efeito, e que numa hipótese Reichiana merece uma possibilidade de análise a partir da compreensão simples e profunda da economia sexual humana. O mesmo se aplica ao câncer.

Tem-se tocado nesse assunto de um ponto de vista da gênese da fenomenologia para além do construto de pulsão de morte no caso da violência?

Ao nos aproximarmos de uma síntese neste trabalho devo aqui destacar a edição de uma entrevista gravada com Reich em fita magnética em 18 e 19 de

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outubro de 1952, aproximadamente 5 anos antes de sua morte (HIGGINS, 1979) (29), na qual ele fala longamente de sua relação com Sigmund Freud ao entrevistador.

Ali, ao ouvir Reich, uma fala de profundo respeito a Freud vai mostrar os pontos de sintonia e dissonância diametral. A questão do instinto-pulsão de morte é um deles, que tem implicação com visões-postura no mundo opostas: acreditar no vivo lutando para um caminho de preservar seu desabrochar natural, ou acreditar que a morte mata o vivo em vida, e que, portanto temos de aprender a viver no inferno terrestre. Pode decorrer também daí o descaso ainda hoje com a idéia de profilaxia das neuroses. Admite-se como salutar os cuidados no ciclo concepção puerpério, mas nem se toca em que isso seja parte de uma abordagem maior numa proposta reichiana.

Portanto, diferentemente de considerá-la como “natural” nas relações humanas a partir de um "instinto" de morte, Reich enquadra a violência como uma enfermidade, uma biopatia adquirida da cultura de uma civilização fundada na hegemonia patriarcal-capitalista que necessita sepultar, no seu nascedouro, toda força vital que potencialmente a desloque de sua dominação.

As energias vitais regulam-se a si mesmas naturalmente, sem qualquer obrigação compulsiva ou moralidade compulsiva - ambas, sinais certos da existência de impulsos anti-sociais. As ações anti-sociais são a expressão de impulsos secundários. Esses impulsos são produzidos pela supressão da vida natural, e estão em contradição com a sexualidade natural. (REICH, 1982, p. 16) (61).

A atualidade reichiana: por uma outra globalização.

Nesses cinqüenta anos após a morte de Reich, a "arquitetura" cultural, social e agora ambiental do planeta teve suas características auto-destrutivas bastante acentuadas, e no início do século XXI continua agindo nos moldes patriarcais, nas relações de autoridade, no abuso e no uso de poder econômico, pela força policial ou coerção moral, na repressão no paradigma pulsional e na insatisfação no objetal (WEIGAND, 2007, p. 26-29) (87), na competitividade, e não na cooperação como valor ético.

REFERÊNCIA:

ABRAHÃO, CARLOS EDUARDO C. Wilhelm Reich no século XXI: de violência a globalização.

Americana: Ligare, 2007.

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Além de toda a sua contribuição às técnicas de psicoterapia e terapêuticas, Reich fala de profilaxia das neuroses. Transposto de forma adequada ao tempo presente, parece atual, e, portanto merece avaliação ponderada, haja vista que o total abandono da inusitada proposta não lha permitiu ser cogitada como possibilidade para uma civilização humana que passe, desde uma concepção desejada, por uma outra ordem de valores simples, e que de fato preservem a vida.

Reich trouxe e traz reflexões e aplicações no campo das ciências naturais e biofísicas, da medicina, da psicologia e psicanálise, da sociologia e da política, e das inter-relações entre tudo isso, cujas conseqüências têm implicações práticas sociológicas e políticas relevantes para este momento por que passa hoje a humanidade.

Para Reich deveria dizer que nós, das gerações subseqüentes aos cinqüenta anos de sua morte, crianças que éramos do futuro de há cinqüenta anos atrás, ainda não conseguimos transformar a trajetória do mal estar da civilização para uma humanidade mais sadia, ao se observar todo uso e o abuso que são perpetrados na "torre de babel em que vive nossa era globalizada". Milton Santos nos convida:

Todavia, podemos pensar na construção de um outro mundo, mediante uma globalização mais humana. As bases materiais do atual período são, entre outras, a unicidade da técnica, a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta. É nessas bases técnicas que o grande capital se apóia para construir a globalização perversa de que falamos [...]. Mas, essas mesmas bases técnicas poderão servir a outros objetivos, se forem postas ao serviço de outros fundamentos sociais e políticos. Parece que as condições históricas do fim do século XX apontavam para esta última possibilidade. Tais novas condições tanto se dão no plano empírico quanto no plano teórico (SANTOS, 2001) (74).