A Dura Realidade do Alcoolismo

A Dura Realidade do Alcoolismo

Sexta-feira de um feriadão recente. Quem pôde dormiu até tarde, viajou, torrou na praia ou bebeu um pouco mais que durante a semana. Andando na contramão, uma animada tribo de mais de 5.000 pessoas se reuniu, logo cedo, no pavilhão de eventos do Riocentro, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Vindas do Brasil inteiro, elas chegavam, de ônibus fretado, carro, bicicleta, táxi, ou, quem morava nas redondezas, a pé mesmo. Passaram o feriado enfurnadas em auditórios e salas, ouvindo palestras ou dando depoimentos. Mesmo sem se conhecer, reconheciam-se no essencial: à exceção de alguns conferencistas, todos eram alcoólatras. E sobreviventes. Festejavam os cinqüenta anos de fundação dos Alcoólicos Anônimos, AA, no Brasil.

À noite, vestindo roupa mais domingueira, foram lotar o ginásio do Maracanãzinho para sua grande festa. Teve selo comemorativo dos Correios, Hino Nacional puxado por um coral, a música Unidos para Sempre cantada de mãos dadas, o cerimonioso desfile das bandeiras. Com 15 países estrangeiros e 26 estados brasileiros representados. A delegação dos Estados Unidos, onde o AA nasceu, em 1935, e hoje abriga mais de 1,7 milhão de alcoólatras, e da caçula Hungria, que abriu seu primeiro grupo só em 1991, receberam aplausos dobrados. Depois vieram os depoimentos ao vivo, narrando a travessia sempre desesperada de cada orador para a sobriedade. Naquela platéia, qualquer um que se levantasse teria uma historia de perdas e precipício semelhante para contar.

Ao final, na hora da tradicional chamada geral, um frisson de expectativa quase adolescente tomou conta do ginásio.

- Quem tem até 3 meses de sobriedade contínua? – perguntou o mestre de cerimônias, ele mesmo um alcoólatra em recuperação há quase 17 anos.

A quase totalidade do Maracanãzinho respondeu "Eu!", levantou-se, abraçou-se, festejou. Sentiu-se gente.

- Quem tem até 6 meses? ... Nove? ... E dois anos? ... Cinco? ... Quem tem mais de dez anos? ... Alguém com até 20 anos de sobriedade contínua?

À medida que aumentava a contagem do tempo de abstinência, diminuía o numero de homens e mulheres que permaneciam de pé, no meio da platéia, com os braços erguidos de felicidade. Eram aplaudidos e se aplaudiam. "No AA dependemos um do outro, e é isso que ninguém entende", tenta explicar Ronaldo, um veterano que não bebe há 12 anos. Ou, como reza a cartilha da entidade, "se o seu caso é beber, o problema é seu. Se o seu caso é parar de beber, o problema é nosso". Por fim, quando a chamada chegou aos 43 anos de sobriedade, só Jonas continuou de pé. Fez muita gente chorar de esperança. Ali, todos sentiram na garganta o real significado daqueles 43 anos: 15.695 intermináveis dias em que Jonas não cedeu ao primeiro gole da recaída –aquele que já foi descrito como a "mais sedutora procissão de tochas

descendo pela sua garganta". Para quem chega ao estagio de precisar beber a intervalos delirantes, de apenas 15 ou 30 minutos, como o personagem de Nicholas Cage no filme Despedida em Las Vegas, um dia inteiro de abstinência tem a duração de uma vida. Cientes disso e montados numa sabedoria pé no chão, os Alcoólicos Anônimos se limitam a tentar não beber por um período de 24 horas.

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No dia seguinte outras 24 horas e assim sucessivamente. Para quem está no último estagio da alcoolatria, a meta é monumental. E comovente. Conta Paulo: "Vem aquele desespero. Eu estava no banheiro, de porta aberta, de frente para a pia e sem coragem de olhar para o espelho. Escovo os dentes ou não? Se eu escovar, vomito bílis. Se eu não escovar, vai ser o terceiro dia sem escovar os dentes. Minha ex-mulher tinha vindo ver se eu estava vivo. Veio por trás de mim, colocou a mão no meu ombro e perguntou: Onde está aquele homem bonito que conheci anos atrás? Comecei a chorar. Ainda é tempo, disse-me ela. Pedi o endereço do AA".

Pode parecer estranho que Jonas, com seus 43 anos de abstinência no currículo, ainda se apresente como alcoólatra e continue freqüentando reuniões do AA. Mas, a cada ano que passa, a ciência lhe dá mais razão. "Não creio que exista algum trabalho científico de importância, em algum lugar do mundo, que mostre que o alcoólatra pode voltar a beber com moderação. Não importa a quantidade ou a freqüência com que a pessoa beba, ela não consegue diminuir o seu patamar ou mantê-lo diminuído por longo tempo", explica o psiquiatra carioca Marcos Micelli, especializado em drogas, que já viu de tudo nos seus 18 anos de atuação no Hospital Psiquiátrico do Pinel, no Rio. Micelli, como cerca de 85% dos médicos americanos, considera o alcoolismo uma doença, no sentido de ser um distúrbio involuntário. É o conceito amplamente aceito, também, pela psiquiatria, pelas clinicas de tratamento e pelos Alcoólicos Anônimos. Há quem prefira o termo transtorno mental decorrente do abuso de álcool. A Organização Mundial da Saúde classifica a doença do alcoolismo como síndrome, de causa múltiplas. E, fora do âmbito da ciência, o termo mais usado é ainda o que mais fere e humilha o alcoólatra – vício. Em oposição à virtude, sua forte conotação moral é demolidora e encontra eco na medicina. Em 1972, o americano Thomas Szasz decretava que excesso de bebida era um hábito. Ou desvio comportamental. "Se escolhermos chamar maus hábitos de doença, não haverá mais limites para definir o que é doença", advertia.

Roer unhas, jogar baralho e outras compulsões acabariam no mesmo saco. "De fato", contra argumenta o pesquisador de Harvard George E. Vaillant, autoridade mundial no assunto, "o alcoolismo reflete um desvio de comportamento que costuma ser mais bem entendido por psicólogos do que por médicos. Mas, ao contrario do roedor de unhas e do jogador compulsivo, a maioria dos alcoólicos requer cuidados médicos". Durante o período de abstinência, tendem a desenvolver sintomas secundários agudos – crises convulsivas, insônia, formigamento, câimbras, vômito, derrame, hipertensão, delírio, tremores. E, sobretudo, o alcoolismo pode levar ao óbito. Marcos conhece a agonia da abstinência: "Foi a pior fase da minha vida. Ao tentar parar de beber, tive alucinações terríveis com ratos e cobras geladas subindo pelas minhas pernas. Eu ficava encolhido no quarto, ouvindo vozes que me diziam para me jogar pela janela. (...) Saí do delírio em dois dias. Seguiu-se a fase do suor frio e quente, das tremedeiras, coceiras inexplicáveis, furiosas. Vinte dias depois estava começando a me sentir fisicamente melhor. Mas a cabeça piorou. Recomecei a beber".

Na verdade, são tantas as variáveis no terreno dessa doença que o Conselho Nacional do Alcoolismo dos Estados Unidos, em conjunto com a Associação Americana de Medicina de Dependências Químicas, constituiu uma comissão só para estudar uma definição de alcoolismo e critérios de diagnostico mais adequados.

A versão final ficou assim: "Alcoolismo é uma doença primária, crônica, com fatores genéticos, psicossociais e ambientais influindo em seu desenvolvimento e manifestações. A doença é frequentemente progressiva e fatal. Tem por características contínuas ou periódicas a perda de controle sobre a ingestão da bebida, o uso do álcool apesar de conseqüências adversas e distorções de raciocínio. A negação do problema se torna parte integrante da doença e o maior obstáculo para a recuperação do doente". Ou, segundo definição mais simples do professor de psiquiatria Donald W. Goodwin, da Universidade do Kansas, "alcoólatra é a pessoa que bebe, tem problemas crescentes pelo fato de beber, quer parar de beber, mas continua bebendo".

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Parece simples, quase frustrante na sua banalidade. Mas nada, nos 6.000 anos de convivência da humanidade coma bebida alcoólica é óbvio e simples. Definir o exato momento em que o abuso de álcool merece ser catalogado como alcoolismo é tão difícil quanto cravar o ponto exato em que a cor amarela se torna verde. Ou como saber, no caso do câncer, em que momento a primeira célula se torna maligna. O que há é um padrão: a condição se manifesta de certa maneira, progride de modo bastante previsível e acaba também de forma mais ou menos conhecida. Segundo Goodwin, autor de 8 livros sobre o assunto, o típico alcoólatra caucasiano começa a abusar da bebida em torno dos 20 anos, desenvolve os primeiros problemas depois dos 30, é hospitalizado (caso o seja) antes dos 40 e é identificado como alcoólatra, por ele ou por terceiros, entre os 40 e os 50 anos. "Alcoolismo depende da observação a longo prazo", adverte o americano Vaillant, autor de um trabalho seminal – selecionou um grupo de 660 jovens americanos como amostra e acompanhou o seu relacionamento com a bebida alcoólica ao longo dos 40 anos seguintes, quando já beiravam a terceira idade. Pôde comprovar quanto o consumo normal de bebida se funde, imperceptivelmente, ao consumo patológico. E quanto é tênue a fronteira entre o chamado heavy drinker (o "bebedor pesado", que abusa do consumo de álcool) e o alcoólatra, aquele cujo organismo necessita de álcool para voltar a funcionar normalmente ou que desenvolveu dependência psicológica da garrafa. Conta Ronaldo: "Chega-se a um ponto em que a bebida vira remédio. Usava para dormir e acordar. O organismo pedia. Para fazer a barba sem cortar a orelha, me levantava as 5:30 da manhã, ia até o bar para beber 3 cervejas geladas, sentia diminuir o tremor das mãos e estava em condições de fazer a barba e ir trabalhar. A segunda agonia era o trajeto de micro-ônibus até o centro, sem beber".

Sabe-se hoje que, no início do processo, não há diferença entre um bebedor social e um futuro alcoólatra. O alcoolismo não é hereditário. As pessoas bebem por questões psicoemocionais e criam dependência por questões fisiológicas. O que existe é um fator genético de predisposição ao consumo excessivo de álcool. Em outras palavras, geneticamente, ninguém tem compulsão para a bebida – ou, como escreveu a revista americana US News & World Report, "nenhum gene pode fazer com que você compre uma garrafa de uísque, a verta num copo e a tome toda" -, mas como passar do tempo a pessoa com predisposição genética cria tolerância ao álcool. Ela costuma ser fatal: o jovem que faz sucesso nas rodas da noite por sua capacidade de beber muito, sem ficar embriagado, é o mais forte candidato ao alcoólatra de amanhã. Do ponto de vista do diagnostico do alcoolismo, porem, o que conta não é a quantidade de álcool ingerida, e sim o conjunto de sintomas que disso resulta.

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Winston Churchill, por exemplo, bebeu mais do que vários alcoólatras juntos ao longo dos seus 90 anos de vida e foi considerado "bebedor social". Era mais conhecido por fumar charuto até na banheira. Por sorte sua pesava perto de 100 quilos. Se um piloto de avião, magrinho, viesse a consumir um volume de bebida semelhante, provavelmente estaria internado – e demitido. A equação, no caso, é dada pela quantidade de álcool no sangue de cada um. Pelos critérios americanos, é considerado "bebedor problema" todo aquele que tiver mais de 100 miligramas de álcool em 100 mililitros de sangue. Tradução não literal: quatro ou mais doses de bebida para um adulto de mais de 70 quilos. E o que deve ser chamado de "dose"? Pelo padrão internacional, a dose, ou unidade, equivale a 12 gramas de álcool etílico. Isto é, um mísero copo de chope, ou de vinho ou dois dedos de uísque, vodca ou cachaça.

Não é de hoje que a humanidade bebe – só no Antigo Testamento há mais de 50 referências ao uso inadequado da bebida, a começar por Noé, que "bebeu vinho e se embriagou". E, de lá pra cá, houve todo tipo de flutuação de consumo, dependendo da disponibilidade de água potável ou de fatores como a introdução do chá e do café a preços acessíveis. No final do século XX, a média mundial estagnou em torno de 10% da população mundial com problemas físicos, psicológicos ou sociais por beber, e nem a propaganda maciça nos meios de comunicação parece alterar significativamente esse padrão de consumo.

A pesquisadora Ilana Pinsky, do Instituto de Psicologia da USP e co-autora, com o professor Ronaldo Laranjeira, do livro O Alcoolismo, analisou 2107 comerciais de TV para sua tese sobre propaganda e bebidas alcoólicas e constatou que há mais comerciais de bebidas alcoólicas na televisão brasileira do que de bebidas não alcoólicas, cigarros, medicamentos ou automóveis. E quando se analisam vinhetas, ou seja, comerciais curtos de no máximo 5 segundos de duração, bebidas alcoólicas lideram o ranking, à frente de outras categorias fortíssimas como serviços bancários e aparelhos domésticos. "Hoje a sociedade não faz outra coisa senão convidá-lo a beber. E quando você faz parte dos 10% que se tornarão alcoólatras, ela simplesmente o rejeita", constata, com amargura, um empresário que chegou a cronometrar a velocidade do ônibus que passava em frente a sua casa para se jogar embaixo, no momento exato. "Assim não seria suicídio e sim atropelamento". Paulo, que largou um emprego de 20 anos numa multinacional do petróleo para poder "beber em paz", entende: "Também cheguei a tentar suicídio. Só que era fajuto. Peguei um punhal cego de abrir correspondência, escrevi uma carta sentimental de despedida, mas demorei tanto que acabei dormindo. Minha filha não se comoveu. No fundo, o alcoólatra quer ver o próprio enterro, com todo mundo chorando e com pena dele. Quer imaginar os amigos comentando, em volta do caixão, que, apesar de alcoólatra, era um grande sujeito". Segundo uma pesquisa americana, um em cada 4 suicidas é alcoólatra. Na maioria dos casos, é um homem com mais de 35 anos de idade.

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Historicamente, a bebida sempre foi usada com três objetivos básicos: alívio de angustias, contato com o sobrenatural e busca do prazer. Nisso se inclui, é claro, a mola mestra de quem se inicia na bebida – o seu efeito desinibidor – ferramenta para melhor socialização. Isso vale para indivíduos de qualquer idade, raça, sexo, futuros alcoólatras ou não. "Talvez tenhamos uma potencialidade à adição", arrisca o psiquiatra Micelli. Segundo alguns trabalhos de antropologia que analisam vestígios de plantas em múmias, o fato de o ser humano ter parado em algum sítio e se tornado sedentário ocorreu por ele ter entrado em contato com substâncias que modificam o estado mental". Variações culturais à parte – Israel é o país onde se bebe menos, a França é campeã, e algumas raças orientais tem deficiências de enzimas que metabolizam o álcool -, uma coisa é certa: o álcool tem sido o método de intoxicação mais popular na cultura judaico-cristã. Ou, como alardeou Friedrich Nietzsche, no século XIX, "cristianismo e álcool são os nossos dois maiores narcóticos". Um dos motivos pelos quais o alcoolismo levou tanto tempo para ser incorporado às preocupações da medicina é que, ao contrario da diabete ou da hipertensão, ele é falsamente associado a prazer. Os bêbados consagrados pela literatura, cinema e artes em geral, sempre pareceram invejáveis demais para serem considerados doentes.

"Nenhum ser humano, nenhum poema ou música, nenhum livro ou pintura pode substituir o álcool no seu poder de dar ao homem a ilusão de criar", escreveu a francesa Marguerite Duras. "A natureza nos deu a embriaguez natural do sono, mas 8 horas de sono não bastam. É preciso estar bêbado de todas as mentiras vitais", ensinou Paulo Mendes Campos, na antológica crônica Por Que Bebemos Tanto Assim. "O melhor da vida está na intoxicação", proclamava lorde Byron, o romântico dos românticos. E, mais de um século depois, o escritor Ernest Hemingway emendava: "A vida é uma opressão mecânica e a bebida o único alívio". Já na vida real, a intimidade com o álcool é tudo, menos criativa. Richard Burton, o magistral ator de teatro e cinema que imortalizou uma galeria de beberrões com problemas, era, ele próprio, alcoólatra. Mas jamais conseguiu interpretar nenhum deles quando estava alcoolizado. "Eu tinha de estar sóbrio para ser convincente no papel do bêbado".

Na vida real, o que sobra para o alcoólatra é o deprimente papel de bobo da corte.

"Ele pensa que está se divertindo, mas na verdade está apenas divertindo os outros", observa Helena, que já passou pelo amargor de ver o marido, empresário, numa festa a rigor, engatinhando no meio do salão, de smoking, tentando morder o cachorro da casa. Na vida real, a celebrada voz rouca de Ângela Rô Rô não encanta – seus vizinhos a vêem, de vez em quando, seminua, pelos corredores do edifício em que mora. Na vida real, o genial Zeca Pagodinho acorda num quarto de hotel em Nova Iorque, ensangüentado. Pergunta à esposa se ela "está num daqueles dias", leva a maior bronca e só então percebe que tinha decepado o pedaço de um dedo mão, sem lembrar como. Na vida real, o empresário e artista plástico Antonio Maschio, hoje abstêmio e pacato morador da cidade histórica de Tiradentes, foi encontrado debaixo de um carro, à saída de uma festa, soluçando pela morte de Elis Regina – que ocorrera vários anos antes. Na vida real, Walter Clark esbarrou num amigo freqüentador dos Alcoólicos Anônimos, no restaurante Plataforma, do Rio de Janeiro, dez dias antes de morrer. Combinaram de se encontrar. "Mas não é para falar de AA, é?", esquivou-se. Saiu curvo, andando com dificuldade. Foi atropelado dias depois, alcoolizado.

O médico psiquiatra Luiz Renato Carazzai, de 37 anos, formado pela Universidade Federal do Paraná e estudioso de ponta de dependências químicas, explica como tudo começa. "O bebedor normal, social ou moderado, é aquele que bebe menos do que o necessário para ter problemas médicos, sociais ou psicológicos. No Brasil, 82% da população adulta se enquadra nessa faixa. Desses, uma média de 30% vai desenvolver algum tipo de problema - gastrite, úlcera, problemas sociais, legais, ocupacionais, brigas, separação, violência. Mais da metade dos acidentes de trânsito, por exemplo, está ligada ao consumo de álcool. Nas delegacias da mulher, 87% das agressões também. Na área profissional, o álcool é responsável por um absenteísmo galopante – nas segundas feiras e após dias de pagamento ou feriados, quem bebe falta dez vezes mais do que os demais funcionários. A produtividade é 20% menor e o índice de erro, bem maior. São os chamados "bebedores-problema", que abusam do álcool em vários momentos. Desses, é consenso mundial que 10% se tornarão dependentes. Para descrever a ladeira abaixo da dependência, Carazzai costuma contar a parábola da idade regressiva. É uma seqüência humilhante, que parte de um alcoólatra de 40 anos de idade.

Quando ele começa a beber, tem comportamento de um jovem de 20: tudo é nota 10, tudo é festa, tudo é ótimo. Se continuar bebendo, comporta-se como se tivesse 15: tudo está ótimo, com a condição que seja do jeito dele. Ao beber mais um pouco, baixa para no máximo 5 anos de idade: tudo está ótimo, do jeito dele, mas tem de ser na hora em que ele quer – não pode esperar nem 10 minutos. A etapa seguinte é a regressão para os 2 anos: deixa de se preocupar com a aparência, não toma banho, não se importa com a roupa. Por fim, quando perde o controle dos esfíncteres, cai da cama, machuca-se, lembra um bebê de meses de idade. Obviamente ele percebe não estar bem. Começa a culpa, surge o sintoma da negação.

Mesmo com o hálito alcoólico, dirá que não bebeu nada. Mesmo que totalmente embriagado, dirá que só tomou uma cervejinha. Começa a construir desculpas racionais. "Fui a um jogo com amigos", "até bebo, mas só em festa". Passa a marcar reuniões em casa, faz churrascos nos fins de semana, rodeia-se intensamente de amigos, porque, se ele beber sozinho, dará muito na vista. Por fim, admite que bebe, mas por ter problemas – "não agüento mais minha mulher", "o chefe é um cretino", "falta dinheiro", "meu time perdeu". Está completamente atolado na necessidade orgânica da bebida – um mecanismo psicossocial faz com que beba, e um mecanismo fisiológico o impede de parar de beber. O corpo do alcoólatra passa a depender de bebida quase tanto quanto de oxigênio ou comida.

Ronaldo lembra-se da solidão: "Cheguei a ponto de comprar a companhia de pessoas da rua, de qualquer classe social, para sentar comigo nos bares. Você come a se sentir sozinho, marginalizado da sociedade, e procura qualquer companheiro de copo".

Ao entrar no organismo humano, o álcool vai direto para o sangue. De lá, migra para o fígado, onde é metabolizado, e para o cérebro. Quando o fígado não consegue desintoxicar-se por inteiro, produz-se a ressaca. E quando é alta a quantidade de álcool que vai para o cérebro, sem passar pelo metabolismo, vem o porre – o comportamento do alcoólatra fica intoxicado. "Cientificamente", explica o carioca Marcos Micelli, "o porre ocasional não pode ser considerado alcoolismo, embora o bebedor que se embriague com alguma freqüência seja forte candidato a ter problemas com bebida alcoólica. No fundo, qualquer padrão de uso que não pode ser diminuído é sinal vermelho, inclusive o porrista de 6 em 6 meses.

O produtor de vinho da França, por exemplo, bebe regularmente, mas nunca se fez a experiência de lhe cortar o vinho diário. E chamá-lo de alcoólatra seria atentado à soberania gaulesa. Animado com o fato de que pequenas doses de vinho fazem bem às coronárias, o francês acaba embaralhando quantidades. No Brasil, fez-se o mesmo prejulgamento em relação à cerveja – não é ela que faz mal, e sim a cachaça, cuja concentração de álcool é dez vezes maior. Melhor não se enganar. Uma pessoa que deixa de beber pinga e passa para a cerveja na suposição de que com isto está diminuindo sua alcoolatria, ou dominando melhor sua compulsão, na verdade está apenas trocando de bebida. A dependência do alcoólatra se constrói em cima do que ele já bebeu, não do que ele passa a consumir.

Em consumo per capita, aliás, o Brasil ostenta uma sobriedade surpreendente (dados de 1997): 50 litros de cerveja por ano, contra 90 litros nos Estados Unidos e a enxurrada de 170 litros por habitante checo. No ramo dos destilados, os dados são mais suspeitos. Segundo as estatísticas, o Brasil estaria num bem comportado 28o lugar – mas nessa conta não está computada toda a produção clandestina de cachaça, em alambiques de fundo de quintal.

Luiz Renato Carazzai, que está fazendo um levantamento pioneiro sobre quando, e como, o dependente busca tratamento, vem observando uma mudança animadora. Vinte anos atrás o brasileiro procurava ajuda por volta dos 55 anos, com o quadro já grave. Hoje as clínicas recebem pessoas de 30, 40 e 50 anos, que chegam menos castigadas, permitindo uma condição de recuperação e sobrevida maior. A detecção melhorou porque a sociedade passou a reconhecer com mais segurança que alcoolismo é o problema-causa, e não a conseqüência de outros problemas. Também se avançou bastante no aperfeiçoamento da farmacologia para tratar dos sintomas mais agudos da abstinência – hoje, já se consegue perceber em qual área do cérebro um ou outro medicamento vai surtir o efeito mais preciso. Mas, atenção: remédios antidepressivos não curam alcoolismo, apenas a doença paralela.

Curiosamente, a média internacional de recuperação de alcoólatras, tende a ser fixa, independentemente do método utilizado – em torno de 20%. O que varia são os critérios para considerar alguém recuperado. O mais gabaritado estudo sobre transplantes de fígado, que vem do Canadá, considera uma abstinência de 6 meses suficiente para a realização da cirurgia em condições ideais – ou seja, com 80% de resultados positivos. No Brasil, o maior centro de excelência de transplantes, a Unidade de Fígado do Hospital das Clínicas de São Paulo, segue o mesmo critério. De resto, um ano de abstinência pode ser considerado cientificamente bom, quando sujeito à reavaliação. Segundo um estudo americano, no entanto, psicólogos, psiquiatras e familiares de alcoólatras costumam trabalhar com pelo menos dois anos para garantir a plena reinserção social do doente. Quanto aos alcoólicos anônimos, são os mais radicais: consideram que uma vez alcoólatra, sempre alcoólatra. O que muda é o doente estar ou não "na ativa", como dizem. Os especialistas sustentam que tratamentos baseados na redução gradual do consumo de álcool não são eficazes. "Se eu der menos, não supre a necessidade do alcoólatra. O tratamento recomendado é parar de beber, tapar a garrafa, ponto", garante Carazzai. O estudo longitudinal do americano George Vaillant dá-lhe razão – no grupo que estudou por 4 décadas, o retorno ao consumo "social" e controlado se revelou exceção.

Segundo especialistas, a recaída ocorre, emocionalmente, muito antes de ela acontecer de fato. O alcoólatra começa a s e mostrar mais irritado, mais agressivo. Tudo o incomoda. Parece estar faltando algo na vida dele. Ele vai criando armadilhas para si próprio e vai se encurralando. O período de maior turbulência se estende dos 6 meses aos 3 anos de abstinência, justamente quando ele começa a relaxar, achar que está muito bem, que não precisa ser mais tão assíduo nas reuniões do AA ou no consultório médico. "Nossa doença é cruel e traiçoeira", comenta um veterano. "Você não dá um passo sem ser convidado a beber. Toda esquina tem um botequim aberto. Na televisão, os anúncios mais sedutores são de bebida. Nos restaurantes, a primeira pergunta do garçom é o que você vai beber". Em meados dos anos 70, o economista John Kenneth Galbraith já se espantava com o fato de que, nos Estados Unidos, maioria dos negócios era fechada ou por telefone ou "com participação de bebida alcoólica – e, frequentemente, em condições de intoxicação avançada". No final dos anos 90 o governo americano gastava 200 milhões de dólares ao ano em pesquisas e campanhas de educação contra o alcoolismo, enquanto a industria do setor gastava 10 vezes mais – 2 bilhões de dólares.

No Brasil, segundo dados do Ministério da Fazenda (1997), a arrecadação do governo com bebidas chegou a 1,8 bilhão de reais – mais do que o lucro liquido da Telebrás, Petrobrás e Vale do Rio Doce somadas. Em contrapartida, no currículo de 6 anos de medicina, apenas 6 horas de aula versam sobre o alcoolismo.

Em maio de 1997, o Senai de São Paulo entrou na arena distribuindo uma ferramenta útil em 60 de suas escolas e centros de treinamento: um CD-ROM pioneiro, intitulado Umas e Outras, com linguagem clara e direta, para seus alunos adolescentes. Ótimo, uma vez que apenas 5% dos adolescentes brasileiros acreditam que o álcool seja uma droga. No jovem, a iniciação à bebida costuma ser bem mais suave do que o cigarro – pesquisas mostram que a primeira tragada costuma ser um desprazer. Com o álcool, a adesão é mais imediata. No momento em que o jovem coloca o álcool em seu organismo, ele se sente mais tranqüilo, mais solto, mais enturmado. E, quanto maior o potencial de prazer da droga, maior o risco de dependência. Hoje, a garotada começa a beber entre os 12 e os 13 anos de idade. No Brasil, há baladas que nem sequer servem água e uma coisa vai puxando a outra: a experimentação com drogas, entre jovens que bebem pesado, passa a ser regra, não exceção. Um estudo com 320 pacientes revelou que o alcoólatra puro está em extinção.

Como explica o psiquiatra gaúcho Paulo Knapp, autor do livro Prevenção da Recaída, enquanto o processo de dependência psicológica da cocaína pode ocorrer em 10 semanas, e o da maconha em 10 meses, a dependência do álcool exige pelo menos 10 anos de uso constante.

Valério, 53 anos, já passou por tudo isso. Para ele valeu a pena participar do encontro no Riocentro: "Só fiz o primário, mas aprendi no AA o que não aprendi na escola. Dessa faculdade não quero buscar o diploma".

Está há 7 anos sem beber.

obs. ( ao longo da reportagem, nenhum entrevistado dos Alcoólicos Anônimos foi identificado por completo).

(words by D.H.)

Gary Burton
Enviado por Gary Burton em 02/02/2014
Código do texto: T4675135
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