"Doze passos para os cristãos"

Doze Passos para os Cristãos – Jornada Espiritual com Amor Exigente (pe. Harold J.Rahm, SJ)

Considerações de um psicólogo

João dos Santos Leite – CRP - 04-2674

A presente edição é dedicada a Ana Cunha Souza Gomes,

Ministra da Eucaristia, Santuário Nossa Senhora da Abadia

Ituiutaba - MG

Primeiro Passo – Ciência e Religião

Retomo considerações feitas em 2002 quando era voluntário na Comunidade Terapêutica um Novo Caminho – Fazendinha, Ituiutaba-MG, sobre as abordagens no tratamento de dependentes químicos.

Naquele tempo e mesmo hoje reconheço concordâncias entre as abordagens psicológicas e religiosas para o tratamento da dependência química e uma diferença radical entre ciência e religião.

O conhecimento científico e o conhecimento religioso, enquanto saberes históricos, estão sujeitos a análises, discussões, interpretações e nunca apresentam a última palavra sobre o que quer que seja objeto de investigação.

No entanto, o conhecimento religioso expresso na Bíblia Sagrada, base dos “Doze Passos para os Cristãos”, professado nas comunidades terapêuticas, é uma revelação. Nesta perspectiva não é o caso estudá-lo, analisá-lo e criticá-lo. Como revelação trata de fé, basta acreditar.

O objetivo das considerações é fornecer algumas idéias, do ponto vista psicológico, para lideranças do “amor exigente” em seu trabalho com a dependência química.

Segundo Passo – A importância dos primeiros anos de vida

O bebe é absolutamente dependente de cuidado materno “suficientemente bom” (Winnicott), que implica a presença do pai, do meio ambiente para o seu desabrochar rumo à independência.

A independência é resultado de desenvolvimento físico e emocional e, de maneira simples, significa maturidade, a capacidade de lidar com as necessidades do interior e as estimulações e restrições do mundo externo.

Nem sempre há uma correspondência entre o processo maturativo orgânico e psicológico e a maturidade emocional pode ser entendida como a síntese que o aparelho mental consegue estabelecer entre as necessidades impulsivas interiores com as estimulações intensas do mundo externo.

A criança necessita da “maternagem suficientemente boa” para lidar com todo este processo e prosseguir o seu desenvolvimento sem sucumbir às avalanches de exigências instintuais, nem aos perigos do mundo externo, durante o período em que se encontra absolutamente indefesa e vulnerável, aproximadamente até os 06 anos de vida.

Estes primeiros anos são determinantes para a vida futura.

Terceiro Passo – A “maternagem suficientemente boa” continua a ser importante

O embate pela consolidação da maturidade emocional vai se repetir na adolescência.

Tanto o menino quanto a menina já estão fisicamente prontos quando retomam a batalha entre as exigências instintivas internas e as estimulações e restrições do mundo externo. O filho já não é biologicamente dependente da mãe, mas o é emocionalmente de maneira intensa.

A explosão de sua força instintiva o torna impaciente, descontrolado, ousado, rebelde e estas características, ao mesmo tempo, positivas e construtivas para o processo do desenvolvimento pessoal e para o avanço da sociedade, o transformam num ser frágil e vulnerável aos perigos do mundo externo.

A “maternagem suficientemente boa” será exigida e deverá levar a termo a árdua tarefa de oferecer suporte emocional necessário para o adolescente vencer a nova etapa sem “naufragar em mar aberto”, como disse um adolescente interno.

Quarto Passo – A imprevisibilidade da natureza humana

O ambiente familiar “suficientemente bom”, onde reina uma relativa estabilidade biológica, econômica, social e emocional é imprescindível para o desenvolvimento da personalidade de maneira serena e saudável, embora, não seja garantia da ausência de dificuldades. Há histórias de dependência que contrariam esta assertiva.

Esta incerteza é, ao mesmo tempo, o sinal da diferenciação entre os homens e os outros animais e a motivação para a crescente busca do aprimoramento das relações interpessoais.

Quinto Passo – O princípio do prazer/desprazer

De maneira ligeira, o aparelho mental se organiza em torno do princípio do prazer/desprazer (Freud), onde o desprazer está ligado ao aumento da excitação e o prazer à sua diminuição.

Um exemplo simples é a fome. Aproximando a hora do almoço não é estranha uma sensação esquisita, um fundo na boca do estomago, uma inquietação que faz procurar comida. E quando o faz, que delícia. Quanto mais fome, mais excitação e mais gostosa é a comida e maior o prazer de degustá-la, por que a comida alivia aquela sensação esquisita e põe fim à inquietação.

A idéia econômica do principio prazer/desprazer tem uma implicação muito séria para quem lida com a dependência química: quanto maior a sensação de estranheza, de inquietação, de sufoco, de fissura, mais a pessoa dependente necessita da droga para sentir alívio. A droga alivia o desprazer!

Sexto Passo – Nem só de pão vive o homem

Os bebes sabem muito bem disto. O nascimento é uma sensação indescritível de desconforto fisiológico devido à extraordinária excitação interna e externa, é um verdadeiro trauma (Fenichel) só amenizado pelo aconchego materno, da própria mãe ou do profissional na sala de parto.

O trauma do nascimento inaugura, possivelmente, a primeira experiência de desamparo do bebe, mas oportuniza a sua primeira vivência prazerosa, o aconchego.

São estas duas lembranças, marcadas a sangue, suor e afago, que vão acompanhar o novo ser por toda a vida: a que nunca vai querer recordar, o trauma do nascimento; e a outra, que não vai querer esquecer, o aconchego materno, o gesto miraculoso capaz de mitigar a dor sentida na expulsão do éden placentário.

Sétimo Passo – “Há partes da minha infância que simplesmente não consigo lembrar” (interno)

O bebe não é uma película virgem, ele já vem ao mundo com um enxoval – rosa ou azul – impregnado de determinações difíceis de se livrar, os sonhos dos pais. A isso vão se juntar a experiência do nascimento, as vivências traumáticas dos primeiros anos, que constituirão as lacunas, os pontos cegos da existência, aquilo que não se pode lembrar.

O que não se pode lembrar está ligado à angustia original, à indescritível dor da expulsão do ventre, à terrificante sensação da perda do amor materno.

Oitavo Passo – “Não tenho a menor idéia da razão pela qual, às vezes, reajo com pânico, ansiedade ou medo enorme em certas situações” (interno)

O bebe, a criança sabe. Ela tem medo de reviver a angústia original e não ter o amor da mãe, única dádiva capaz de mitigar aquela apavorante vivência de abandono, perdido nas vicissitudes de sua existência.

O que complica a compreensão da natureza humana é o seu funcionamento segundo o processo primário (Freud), intensamente irracional, atemporal, inconsciente e avesso a princípios de realidade. Os impulsos transgridem a lógica da vida cotidiana, ignoram princípios éticos, valores morais. Amor e ódio convivem lado a lado. O objetivo indestrutível, que buscam compulsivamente, é a satisfação a qualquer custo, ainda que seja a morte, que o processo desconhece.

Apesar de complexo, o processo primário, ajuda a compreender a dependência química em lares relativamente estáveis.

As experiências traumatizantes posteriores não precisam ter sido concretas. À criança basta pensar/imaginar/alucinar uma sensação de desconforto que ela imediata e inconscientemente a associa ao trauma original e a vivencia como se tivesse ocorrendo, razão porque sente tanto medo e o pânico a faz reagir de maneira irracional e inconsciente. Não são estranhas aos pais as diarréias, febres, dores de cabeça, os machucões que desaparecem como mágica, tão logo a criança seja amparada pela mãe!

O adolescente e o adulto emocionalmente dependentes estão em sofrimento e funcionam como se fossem crianças desamparadas, com o agravante de não serem indefesos fisicamente e terem acesso às artimanhas do perigoso mundo externo e, muitas vezes, já não têm o amparo familiar.

Não saber a razão, é como a criança fez um dia, é recusar tornar consciente uma realidade desagradável, quase sempre a sensação de não ser amada: “não tive amor, não tive mãe, não tive quem me apoiasse”! (interno)

Nono Passo - “Quando começo a sentir muita ansiedade ou medo, ou quando ouço o que se passa em minha cabeça, procuro algo com que me distrair ou tirar a dor” (interno)

O desabafo é eco da infância. O vivido naquela época está armazenado, às vezes represado, nunca apagado e, persistentemente, procura caminhos para manifestação. É uma luta descomunal que se trava entre as instâncias do aparelho mental para conciliar a força vulcânica dos impulsos com as exigências da consciência moral, as restrições do mundo, as leis e regras do convívio social e a própria dimensão inconsciente deles.

A dificuldade do trabalho do Ego é que nele impera o processo secundário (Freud): racionalidade, ausência de contradição, preservação da vida. O seu objetivo é o prazer possível e, em nome disto, persevera, a qualquer custo, ainda que com a dor, a morte que ele conhece.

Os comportamentos e atitudes desproporcionais, irracionais, francamente destrutivos de jovens e adultos dependentes nada mais são do que a manifestação possível de um impulso instintivo poderosíssimo, única maneira de mitigar a verdadeira dor desconhecida, muito mais intensa e terrível que o sofrimento sintomático da dor conhecida.

“Um vazio, aperto no coração, uma coisa que vai subindo e para aqui na garganta, um abafamento, uma fissura, como se fosse morrer; é quando começo a sentir muito medo, aí é quando ouço o que se passa em minha cabeça, procuro algo com que me distrair ou tirar a dor, chego mesmo a balançar a cabeça para afastar os pensamentos maus que me mandam fazer coisas que não gostaria ”(interno)

O relato é o indício da manifestação da dor desconhecida, que dispara a busca alucinada para encontrar o que pode preencher o vazio, desapertar o coração, desatar o nó da garganta, o alívio da fissura, afastar o medo da morte.

O vazio, o abafamento, o aperto no coração é a sensação da falta do amor: “Não tive amor, não tive mãe, não tive quem me apoiasse” (interno). Um NÃO tão veemente é artifício mental de dizer que é tudo que tivera e procura reencontrar.

Como só se procura o perdido ou imagina perdido, nosso jovem está afirmando o sofrimento pela falta, ou sensação da falta, que é a mesma coisa, do instante mágico da experiência vivencial, quando o aconchego o amparou e aliviou a grande dor do nascimento. O que se procura é o amor perdido.

Na impossibilidade de retorno ao éden placentário e não encontrando o amor em relações com um outro possível, na dimensão mental, o menos pior, é a droga!

Décimo Passo – O caminho da cura

A trilha da recuperação passa pelo nomear do que não se pode lembrar. Processo que não oferece garantia incondicional. O inconsciente é indestrutível. Sempre e toda vez que aumentar a excitação ele ressurgirá voraz.

Resta a sua subjugação. Mantê-lo sob o domínio de processos conscientes, mecanismos fornecedores de artifícios de satisfação do impulso compatibilizados com restrições internas e externas recentes, autorizando ao Ego preencher o vazio com outros investimentos e, ainda assim, permanecer vigilante ao sinal de perigo, a angústia.

A estratégia é o fortalecimento do Ego, ampliar a sua capacidade de lidar com situações de perigos internos, os conflitos entre impulsos, afetos e a consciência moral e com os perigos externos, as tentações do mundo das drogas, através de mecanismos de defesa mais evoluídos (Anna Freud).

O mecanismo de defesa não pode, sob o risco de inviabilizar a vida em condições de relativa salubridade, ser muito primitivo: a negação.

Para isso acontecer é preciso que a pessoa saiba do que defender, o medo, quase sempre imaginado, de perder o amor da mãe, algumas vezes transmudado em ódio violento ao pai, distorcido para figuras de autoridade ou para a sociedade em geral.

Décimo Primeiro Passo – O Amor Exigente e o caminho para a cura

Os princípios do Amor Exigente auxiliam na estratégia de fortalecimento do Ego, oferecendo alternativas possíveis para a subjugação dos “sentimentos não resolvidos, as lembranças não curadas e os defeitos pessoais que produziram ressentimento, depressão e perda de amor próprio”, substituindo os pensamentos maus, negativos por uma idéia positiva de si, “como pessoa jubilosa, confiante” (pe. Harold).

O fortalecimento da pessoa se completa com o preenchimento do vazio interior com uma opção fora das drogas, a esperança do “pai supremo” que a tudo provê e redime, DEUS.

O Amor Exigente utiliza argumentos conhecidos dos psicólogos: reaprendizagem de comportamentos, mediante uma disciplina à antiga; o condicionamento em todas as dimensões: recompensas para a adequação, punição para o desvio.

A metodologia dos Grupos de Apoio centra-se na idéia da “aceitação positiva do outro”, em que os participantes estão ali para “partilhar, confiar, compreender, incentivar e nunca condenar”. O Grupo de Apoio trabalha na promoção de clima de confiança e respeito mútuo, onde impera comunicação autêntica, seguindo a regra básica do sigilo com relação à individualidade e privacidade dos participantes.

Tudo isto é reconhecido entre os psicólogos como essencial para uma relação de ajuda eficaz.

O Amor Exigente é eficiente na medida em que lida com a questão da perda do amor à maneira inconsciente, sem referência direta. O Pai Absoluto assinala para o filho que a garantia do amor materno passa pela resignação, pela aceitação da sua partilha. Reconhecendo e tolerando isto estará livre da angústia, de sentimentos de culpa e poderá reconstruir sua vida em moldes mais saudáveis.

Os seguidores do Amor Exigente sustentam a idéia de que as pessoas que ajudam precisam estar disponíveis, significando que o ajudador necessita estar apto a fazer calar suas próprias dificuldades, não projetar no outro seus anseios e vontades. Para isso contam com a vigilância onipresente de Jesus Cristo, zelando para que dêem conta de suportar as suas próprias demandas, seus próprios desejos mobilizados, de inconsciente a inconsciente, na relação com o outro, espaço sempre fugidio para racionalidades, ainda que racionalidade religiosa.

Décimo Segundo Passo – O caminho do psicólogo

Não há garantia incondicional, pois desprovido do absolutismo divino e sujeito a um inimigo indestrutível, o inconsciente.

O psicólogo joga com as próprias regras do inimigo, suas razões econômicas, a capacidade de realização de maneira alucinada e a necessidade imperiosa de um aparelho motor para manifestar.

A cultura é mágica. Reina entre os homens a idéia de que o pensamento tem o poder de se transformar em realidade. É bastante característico que a magia predomina para os pensamentos negativos, maus, daí o costume de se recomendar evitá-los, bater na boca ou na madeira sempre que uma idéia negativa, má apareça.

Quanto mais se reprime uma idéia, mais energia ela acumula. Quanto mais energia, mais excitação e maior a necessidade de expressá-la. Na repressão, na forma de angústia. Na dependência, a fissura, o aperto no coração, o nó na garganta.

O psicólogo, nesta circunstância, recomenda à pessoa a diminuição do medo e o exercício exaustivo do inevitável ato de pensar.

Desta forma, na fluidez do pensamento, pode acontecer duas coisas: a pessoa tem a oportunidade de uma compreensão, mesmo que intelectual, de seu interior; e, ao mesmo tempo, é uma forma do Ego lidar com desejos inconscientes, sem ter que reprimi-los, o que só aumentaria a sua energia.

A razão disto é que o aparelho mental não perdeu a capacidade de realização de maneira alucinada, como fez na infância, nas brincadeiras das crianças, transformando uma boneca ou amigo imaginário na mãe que está ausente, no trabalho.

Assim como os desejos dependem do pensamento para a sua transformação em imagens, o pensamento necessita do aparelho motor para se transformar em ação na realidade. Por mais poderoso que seja o pensamento, por si só, não faz coisas: abrir garrafa de pinga, enrolar cigarro de maconha, carreira de cocaína.

Por isso a recomendação de se pensar exaustivamente e a proibição de atuar, de agir e fazer impulsivamente o que o pensamento manda.

De outro lado, alerta para a dimensão em que a pessoa pode tudo, esbaldar-se em aventuras paradisíacas, atrocidades demoníacas, pecados carnais. É o local do sonho, quando o aparelho motor estiver imobilizado pelo sono. É a forma alucinada da mente realizar seus vorazes apetites selvagens sem risco. Após o sonho, preferencialmente os pesadelos, a pessoa desperta sorridente, cantarolando cantiga folgaz e sai para o mundo, em condições mais vantajosas para enfrentar as dificuldades do cotidiano.

Essa estratégia costuma dar certo, quando a pessoa consegue restaurar uma relativa estabilidade biológica, social, espiritual e emocional!

João dos Santos Leite

Psicólogo – CRP 04-2674

Rua 16 nº 48 – próximo ao sanatório

(34) 9965-7321 – jsleite7@gmail.com

Ituiutaba, março, 2013

Joao dos Santos Leite
Enviado por Joao dos Santos Leite em 05/03/2013
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