Humanizar é preciso? Comentário sobre a Humanização na Saúde.
Abenon Menegassi
Introdução
“Na Índia, casos de meninos lobos foram abundantes, tanto que em 1920 descobriram duas crianças, Amala e Kamala, vivendo no meio de uma família de lobos. Amala tinha um ano e meio e morreu um ano mais tarde (após o inicio de seu processo de aculturação). Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929. As duas meninas não tinham nada de humano e seu comportamento era exatamente semelhante à dos irmãos lobos.
Elas eram incapazes de permanecer em pé, somente engatinhavam, apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os trajetos mais longos. Só comiam carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, lançando a cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram acolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas num canto onde o sol não alcançava; eram ativas e faziam muito barulho durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Não sabiam chorar nem rir.
Kamala viveu oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se lentamente. Foram necessários oito anos para que a menina aprendesse a andar e pouco antes de morrer tinha um vocabulário de somente 50 palavras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos. Ela chorou pela primeira vez por ocasião da morte da irmã Amala e a partir daí começou a se apegar, mesmo que de forma lenta, às pessoas que cuidavam dela.
Kamala era rudimentarmente inteligente e isto permitiu-lhe aprender a comunicação por gestos, inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário básico, aprendendo a executar pedidos simples.”
Este antigo caso de meninas lobo pode sevir como ponto de partida para traçarmos alguns comentários sobre os processos de humanização em voga em contextos institucionais.
Humanizar é preciso?
Comumente tem-se traçado um modelo de humanização como sendo aquele que se preocupa com a oferta de serviços com qualidade por parte dos agentes institucionalizados. Sem desprezar a importância desta perspectiva, por outro lado, a Política Nacional de Humanização no Sistema Único de Saúde - HumanizaSUS do Ministério da Saúde, propõe que as mudanças nos modelos de atenção só são possíveis se encaminhados em consonância com mudanças nos modelos de gestão.
Partindo-se desta perspectiva, tem-se que se torna necessário abrir reflexões acerca das atuações dos agentes que se encarregam das propostas das políticas de humanização no interior de instituições de Saúde/SUS. Isso por que a interferência dos aspectos políticos e ideológicos situados no interior de discursos particularistas veiculados por estes agentes acabam por gerar tensões que nos convocam à reflexão acerca dos impasses decorrentes.
Tais impasses é que me permitiram questionar, a partir dos casos de meninos-lobos que surgiram ao redor do mundo, sobre se humanizar é preciso, já que tais casos parecem demonstrar que os processos de humanização dependem da construção das subjetividades na cultura, no convívio com outros humanos e, portanto, concernentes à abertura inerente à condição humana quanto à sua essência.
Para compor as palavras “humanizar” e “preciso” em uma pergunta parti da frase de Fernando Pessoa “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Considero tal frase, no passo de sentido que comporta, peculiar para induzir reflexões acerca do necessário e do contingente em todas as suas infinitas variações, sobretudo quando se trata de colocar em relevo as ações humanas.
Jogando com a palavra “preciso” em seu aspecto de verbo e de adjetivo, diremos que do lado do adjetivo tal palavra remete ao sentido de necessidade que se faz exata, não ambígua, não duvidosa. Aquilo que é conhecido e definido como verdade absoluta e imutável.
Em outra via, “Preciso” como verbo remete ao sentido de necessidade enquanto aquilo que se busca para preencher uma falta ou uma carência, mas não no sentido de uma fórmula matemática que se acopla inequivocamente às coisas, antes, como aquilo que convoca um objeto a aparecer como contingente no complemento que o convida.
Assim, em “navegar é preciso”, pode-se encontrar a afirmação do que é exato, do que pode ser calculado sem margem de erro diante da contingência. Na segunda parte da frase “Viver não é preciso”, a negativa de Pessoa assenta-se sobre a idéia de que o sentido da vida humana na cultura não abriga fórmulas.
Nesta via, é inerente ao fato de que ele se aventura no constante processo de humanização a idéia de que tal processo compreende que ele enquanto ser de linguagem, de razão e politeu, está sempre aberto ao horizonte de sua constante definição e redefinição. Como diz Sartre, no homem a existência precede a essência. Ele não é um artefato, nem um animal em que impera os instintos como na abelha ou na aranha.
Homo Faber é, nesta linha, mera contingência, não uma necessidade.
Isto significa que toda tentativa de reduzir o homem a uma tal natureza tem como conseqüência necessária a sua incorrência na alienação e na reificação. Aprisionado em uma dimensão de objeto, não de sujeito, o homem na alienação se torna coisa por fora e por dentro.
No interior de contextos socialmente dados, como por exemplo, e não por acaso, nos serviços de saúde, tende-se a utilizar o termo “humanização” enquanto sinônimo de “oferta de serviços, de gestão e qualidade de trabalho para a população e para os colaboradores”. A ideia parece apontar para uma direção correta.
O problema começa quando percebemos que o conceito implícito a esta idéia se refere a uma cisão entre idealismo e materialismo naquilo que o termo idealismo se refere à constante abertura para a redefinição do homem e materialismo se refere a uma submissão a contextos historicos atravessados por formas ideologicamente dadas de produção. Tal cisão se dá a partir da reprodução de ideologias particularistas que, por sua vez, impõem modelos de exercício de poder hierarquizados verticalmente com forte formatação fisiologista.
Nas instituições atravessadas por ideologias reificantes o dia-a-dia mostra claramente que tal tipo de cisão entre abertura e alienação degrada o humano porque retira-lhe a possibilidade da ação ética originada de sua relação legitima com a sua história.
Destituído de sua condição de animal livre, o homem, perde-se de si mesmo e passa a reproduzir em suas práticas, junto com os modos de produção, as mesmices viciadas que os condicionam porque não dialetizados por conceitos que redimensionam constantemente a sua condição de humano.
Disso se conclui que não é possível falar em qualidade na prestação de serviços sem se falar na qualidade dos processos de produção de subjetividades pois, o homem só se torna humano e age como humano face ao outro quando se assume na posse de seu direito inalienável de participar dos processos de subjetivação que o inventa lá onde as condições objetivas são criadas. Qualquer discurso que tenta suprimir a necessidade entre humanização e ação humana busca, de fato, mascarar regimes autoritários que se prestam à coisificação do homem no trabalho.
Nesta linha de raciocínio cabe perguntar: qual é a função do Estado? Servir como uma empresa que administra bens, serviços e recursos humanos e que, a partir disso, organiza-se como uma instância que normatiza, regula e disciplina, vigia e pune, ou sua razão de ser encontra legitimidade apenas em uma dimensão mais ampla, que é a de estar profundamente comprometido com a permanente transformação do espírito em sua época?
07/12/2012
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