As variadas formas de opressão vivenciadas pelas mulheres inseridas em contextos onde há o predomínio da pobreza e de violências as torna vulnerabilizadas socialmente. As mulheres desempenham papéis secundários em comunidades empobrecidas, predominando o autoritarismo masculino. A ascensão do paradigma do feminino que prioriza o cuidado com crianças e jovens e se que se indigna com as condições de vida é condição para um diálogo mais equitativo nesses lugares. Estudos recentes afirmam que um processo de feminilização e infantilização da pobreza ocorre no Brasil, com o aumento da proporção de famílias cujas mulheres são as únicas provedoras e de crianças com menos de 10 anos nas famílias de renda mais baixa. O presente trabalho pretende analisar o processo de construção compartilhada de um curso de protagonismo de gênero: o Curso Mulher Manguinhos, uma tentativa de contribuir para a formação política de mulheres de 13 favelas do Rio de Janeiro. O Curso é uma experiência de desenvolvimento de uma metodologia de Educação em Saúde para mulheres, na perspectiva da Educação Popular em Saúde. Nesta perspectiva são estabelecidas parcerias com mulheres engajadas em diversas áreas da vida comunitária desde a formulação da proposta até a sua finalização. Sua relevância se dá em virtude da inexistência de espaços de discussão que acolham as questões colocadas pelos desafios cotidianos enfrentados pelas mulheres. O Curso Mulher Manguinhos foi elaborado coletivamente. O primeiro momento foi a Oficina “Coisa de Mulher”. Como resultado da oficina o curso ficou constituído em três módulos: “Ser Mulher”; “Ser Criança” e “Mulheres e Políticas Públicas”. Os dois primeiros módulos aconteceram em 2009 e o terceiro acontece no segundo semestre de 2010. Sua coordenação é compartilhada entre três técnicas da Fundação Oswaldo Cruz e duas moradoras do complexo de Manguinhos. Cada módulo inicia-se com Aulas Inaugurais que mobilizam reflexões críticas e emoções incentivando à adesão ao módulo que se inicia.  O Módulo Ser Mulher discutiu a condição da mulher moradora de territórios vulnerabilizados nos dias atuais. O Módulo Ser Mãe analisou a situação das mães e crianças em Manguinhos. Ambos discutiram temas relativos à saúde e condições de vida, sempre na perspectiva do protagonismo nas lutas pelo acesso aos direitos desses segmentos da população. O Encontro “Mulheres fazendo da diferença em Manguinhos: refletindo sobre políticas públicas para o nosso futuro” antecedeu o módulo Mulher e políticas públicas que objetiva oferecer bases para o monitoramento e controle das políticas públicas consideradas prioritárias pelas participantes para as áreas no campo social. Realizam-se visitas a instituições formuladoras de políticas públicas e intercâmbios com projetos bem-sucedidos com mulheres em situação de vulnerabilidade social. Participam moradoras e trabalhadoras das 13 comunidades de Manguinhos mais adjacentes. Durante o processo são utilizadas diferentes linguagens como: vídeo, teatro, dança, música, contação de histórias, exercícios de consciência corporal, além de oficinas de construção coletiva, debates e aulas participativas. Os resultados até agora apontam que morar em favela traz diversos impasses para as mulheres pelas adversidades das condições de vida num contexto de extrema pobreza. Aliam-se dificuldades de acesso a serviços públicos de qualidade, o que têm potencializado o seu sofrimento. Há relatos de discriminação e maus-tratos quando são chamadas ambulâncias públicas para o transporte de moradores para atendimentos emergenciais, pois há funcionários que tratam quaisquer moradores como se fossem bandidos. A análise dos discursos leva ao questionamento de políticas de Educação e Saúde, Planejamento Familiar e mesmo a abordagem do corpo humano no ensino formal. São identificados outros múltiplos sofrimentos sobrepostos como: condições precárias dos serviços de saúde e educação; abandono pelos homens; violação de direitos como o de ir e vir; além da “lei do silêncio” que predomina em suas comunidades. Somam-se a isto os confrontos armados que vitimizam moradores não envolvidos com o tráfico de drogas, nos quais morrem homens jovens e afrodescententes. As dificuldades de acesso a justiça são impasses à dignidade. Há mulheres que alegam ter filhos presos injustamente, outras que têm sua integridade moral questionada apenas por morarem em favelas. Expressam frustração diante de carências alimentares, materiais e emocionais. Uma conclusão é a de que a violência doméstica permanece gerando impasses para as mulheres e crianças que a sofrem. Os itinerários percorridos pelas mulheres em busca de lidar com as situações adversas são vários.Para os mulheres das camadas populares, vítimas de violência doméstica, a procura por igrejas pentecostais e neopentecostais como forma de lidar com seus problemas tem crescido vertiginosamente. A constituição de um espaço de formação como o Curso Mulher Manguinhos trouxe a única oportunidade de diálogo entre mulheres, fora dos tradicionais limites dos espaços religiosos e comunitários existentes nas comunidades.A identificação das mulheres de Manguinhos como potencialidade local tende a contribuir para a modificação da correlação de forças do poder local. Para além do âmbito comunitário e familiar, faz-se necessário lutar cada vez mais para que o poder público faça a sua parte como: a implementação de sistemas de vigilância de violências sofridas pelos pobres; a resolutividade dos serviços de saúde, em especial para crianças, adolescentes e mulheres, com prevenção primária; a promoção de igualdade e eqüidade social e de gênero e a qualificação dos serviços de saúde para o atendimento a vítimas de violência entre outros. Além disso, tal processo demonstrou ser possível o desenvolvimento de processos educativos transformadores e libertários, a que Paulo Freire chamava de 'permanente inédito e viável', dirigida à todos indistintamente, mantendo a sua vocação popular.
 
Bibliografia:
Freire AMA 2000. In: Freire P. Pedagogia da Indignação. Editora UNESP. São Paulo
Zaluar A. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro:Ed. FGV; 2004.
 
Palavras-chave: Educação Popular em Saúde; mulheres; vulnerabilidade social.
 
Email: carlamoura@ensp.fiocruz.br
 
(2) Educação Popular e Movimentos Sociais.