OBSTINAÇÃO TERAPÊUTICA
Segundo tradição milenar humanitária a vida humana é considerada sagrada, o que significa que somente a Deus pertence dá-la e/ou retirá-la. No entanto, a história civilizatória, muitas vezes, transcorreu à margem desta convicção, permitindo guerras e penas de morte. Além disto, os milhares de homicídios, a tolerância das mortes por miséria, e por falta de atendimento médico não intranquilizam as consciências de milhões de pessoas que, além de se considerarem humanistas, se declaram extremamente religiosas. Mas, não quero aqui tratar destas mortes por ação positiva dos homens. Nas últimas semanas está novamente na ordem do dia o “direito de morrer”. No dia 31 de agosto 2012 foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) a Resolução 1995/12 do Conselho Federal de Medicina, autorizando os médicos a respeitarem a vontade de pacientes terminais, de doenças degenerativas, a não quererem continuar com tratamentos extraordinários para prolongarem suas vidas.
Na ética esta problemática está sendo discutida há décadas, sob conceitos como eutanásia, distanásia, ortotanásia, eutanásia ativa, eutanásia passiva, obstinação terapêutica, ato médico fútil, futilidade terapêutica. Sob estes conceitos se discutem as atitudes médicas que interferem ou não na interrupção ou prolongamento da vida de pacientes terminais. Para quem se fundamenta em uma solução simplória sustentaria o princípio do juramento hipocrático de que o médico existe para conservar a vida, e jamais estará autorizado a contribuir para a morte de seu paciente, seja por ação positiva ou omissão. Acontece, porém, que hoje a medicina é capaz de prolongar artificialmente a vida de pacientes terminais, sem esperança razoável de continuidade da vida com dignidade. Assim o médico, sob o argumento de salvar a vida de um paciente terminal, o submete a grandes sofrimentos. Com esta atitude não se prolonga propriamente a vida, mas o processo de morrer. Dali o direito do ser humano de morrer dignamente. Neste sentido o CFM autorizou os médicos a respeitarem a vontade dos pacientes, manifestada antecipadamente, se em caso terminal não desejarem tratamentos extraordinários. Isto é, renunciando a “obstinação terapêutica”, preferindo uma “eutanásia passiva” e respeitando o processo natural que os leve à morte. Isto, com certeza, é humanitário, ético e de acordo com compreensões religiosas.
É muito curioso que, no mesmo dia em que a Resolução 1995/12 do CFM foi publicado no DOU, em Gallarate, na Itália, faleceu o Cardeal Carlo Maria Martini, com 85 anos de idade. Martini tinha sido forte candidato para o Papado com a morte de João Paulo II. Mas como já havia sido diagnosticado com o mal de Parkinson, isto não ocorreu. Em seus últimos dias, o cardeal Martini não conseguia mais deglutir, mesmo assim não aceitou sondas, nutrição e hidratação, nada que pudesse impedir o processo natural que o levou à morte. Esta atitude foi interpretada como exemplo humanitário, ético e teológico. Martini se contrapôs, assim, à prática das “obstinações terapêuticas”, legitimando os denominados “testamentos vitais”, ou “testamentos biológicos”, conforme os princípios da Res. 1995/12 do CFM.
Inácio Strieder é professor de filosofia – Recife/PE