O MÉDICO NÃO É VILÃO.
Atualmente a parte mais frágil do sistema público de saúde concentra-se no médico. Há quase uma unanimidade acerca de debitar a esses valorosos profissionais todas as mazelas da atenção não prestada nos diversos níveis de atenção. Há anos se vive essa realidade em que os nossos médicos para se manterem num padrão de vida financeira aceitável tem que acumular vínculos empregatícios diversos. Isto tanto na esfera pública quanto na particular ou privada como conhecemos. Contudo, usando a linguagem popular, o “buraco é mais em baixo” e vários são os fatores pouco visíveis aos olhos dos usuários ou da imprensa para quem o médico, no geral, é o vilão dessa história. Certamente que eles têm culpa principalmente em função de se sentirem não cobrados num processo gerencial mais sistemático, mais controlador, mais profissional e com menos ingerência política no âmbito do funcionamento das unidades públicas de saúde.
Profissionais ruins não é privilégio da categoria médica. Como não poderia ser diferente, existem médicos mau caráter, “enrolões”, trambiqueiros, mercenários, não cumpridores de horários, tratando mal aos pacientes, etc., tudo há. Mas há excelentes profissionais nessa área de tantos bons serviços prestados a população. Execrá-los agora é não querer contextualizar o processo histórico em que eles foram inseridos, bem como ignorar que há culpa nas universidades que ainda formam mal esses profissionais de saúde; é ignorar que o próprio governo como grande empregador do setor saúde sempre foi coadjuvante e permissivo de práticas gerenciais clientelistas em que o médico fingia que consultava, o paciente fingia que era curado e o governo fingia que cuidava da saúde da população. Agora parece que a máscara caiu e que todos estão vendo que o “rei está nu”. Na verdade ele sempre esteve “nu”. Essa nudez sempre foi amparada pelos biombos dos apadrinhamentos, dos gerenciamentos anacrônicos das unidades, pela falta de políticas públicas compartilhadas com o controle social, fincadas, principalmente, antes da implantação do SUS – Sistema Único de Saúde.
Sem muito receio de errar, talvez se os governos pagassem bem aos profissionais de saúde, especialmente aos médicos, fosse possível demitir os maus profissionais e, concomitante, exercer um controle gerencial eficiente e, paralelamente, planos de cargos e carreira compatíveis. Talvez com metade do contingente de profissionais devidamente integrados numa política pública de saúde, se pudesse prestar melhores serviços a população do que como acontece atualmente. Com certeza que não seria tão simples como parece ser, pois há garantias legais, órgãos de classe, e a estabilidade do servidor público nalguns momentos se transforma num impedimento a mais para se dar agilidade às ações de saúde que a população deseja.
Como se vê, parece mesmo que o “buraco é mais embaixo” como dissemos. Talvez mais em cima ou no meio. Verdade é que a portaria 134 veio em tempo oportuno e provocou muita celeuma na categoria médica que teve que optar, em cumprimento à lei, por apenas dois vínculos públicos ou 160 horas/mês trabalhadas. Diante de tudo isto, não duvidamos que o mais prejudicado seja o mau médico (isto é ótimo) e o paciente (isto é péssimo) que vai continuar adoecendo no grosso e tentando se curar no varejo.
O governo, a despeito dos esforços para manter o financiamento do SUS, carece de mais atitude proativa na formulação das políticas e no aumento dos tetos financeiros repassados aos Estados e Municípios, bem como no controle rigoroso desses repasses.
Apostando que das grandes crises sempre saem as grandes soluções, esperamos que o atual momento de dificuldades que a saúde pública brasileira enfrenta resulte em avanços. Avanços nas universidades que formam os médicos; nos governos que precisam ser menos politiqueiros com a saúde; nos sindicatos que precisam ser menos corporativistas e mais defensores dos bons profissionais; nos conselhos de classe que precisam chegar mais perto dos seus associados; nos usuários que precisam conhecer melhor seus direitos concernentes ao SUS. Enfim, de todos que, de alguma forma ou de outra, utilizam o SUS. Nesse emaranhado de responsabilidades, o médico certamente irá repensar suas práticas e sua ética na relação com os pacientes.
Particularmente credito essa crise de médicos que passamos a processos gerenciais equivocados praticados nas três esferas de governo. Que há falta de médicos no “mercado” não podemos ignorar. Precisamos interiorizar a medicina, repensar currículos nas universidades, lutar pelo estabelecimento de serviço obrigatório de médicos formados nas escolas públicas, estimular a residência médica como fator de ingresso, modificar estatutos de servidores públicos adequando-os a nova realidade, discutir a carreira SUS, estabelecer tetos mínimos de pagamentos de profissionais de saúde. Também democratizar as gestões públicas, dentre outros fatores, é o que imaginamos que possa dar uma “refrescada” na atual situação. Enquanto isto não acontece, os governos têm que fazer suas partes através de gerenciamentos com foco em resultados. Colocando gerentes certos para os lugares certos e evitando a ingerência política que tanto dano causa a saúde da população. Mas por favor não execrem os bons médicos.