O SOFRIMENTO NA RELAÇÃO PSÍQUICA COM O TRABALHO E A ATUAÇÃO DOS MECANISMOS DE DEFESA PARA A MANUTENÇÃO DA SAÚDE MENTAL

Aline Bernardes Gomes

Resumo

Este trabalho foi desenvolvido com o propósito de identificar quais são os mecanismos de defesa do ego utilizados pelos trabalhadores para minimizar o sofrimento mental no ambiente de trabalho, buscando, também, compreender, através das várias vertentes da psicodinâmica do trabalho, a influência da organização do trabalho no processo de saúde mental do indivíduo. Trata-se, portanto, de um artigo científico realizado através de pesquisa de revisão bibliográfica tendo por referência alguns dos principais estudiosos na área da Psicologia do Trabalho, tais como, Christophe Dejours, Le Guillant, Sigmund Freud, Frederick Winslow Taylor, Paul Sivadon, dentre outros, em sua maioria fundamentados na abordagem psicanalítica do processo saúde x doença mental no trabalho.

Palavras-chave: Mecanismos de defesa do ego. Psicodinâmica. Saúde mental. Trabalho.

Abstract

This work was developed with the aim of identifying what are the mechanisms of ego defense used by workers to minimize mental distress at work, trying also to understand, through the various aspects of the psychodynamics of work, the influence of the organization of work in the process or mental health of the individual. It is, therefore, a scientific paper conducted through research of literature review with reference to some of the leading scholars in the field of Occupational Psychology, such as Dejours Christophe Le Guillant, Sigmund Freud, Frederick Winslow Taylor, Paul Sivadon, among others, mostly based on the psychoanalytic approach of the health x mental illness at work.

Key-words: Defense mechanisms of the ego, Psychotherapy, Mental health work.

1. INTRODUÇÃO

As repercussões em torno da organização do trabalho sobre a saúde mental do trabalhador têm sido ao longo dos anos, objeto de pesquisa de diversos autores, podendo citar como referência os trabalhos de Christophe Dejours, Le Guillant, Frederick Winslow Taylor (conhecido como o “Pai da Administração Científica”), Paul Sivadon, dentre outros. O que antes era estudado com foco na “anormalidade”, ou seja, na doença mental (Psicopatologia do Trabalho) passou a ter como enfoque, a partir das pesquisas de C. Dejours (1983), criador da Psicodinâmica do Trabalho, o estudo da “normalidade” dos processos mentais do trabalhador em face das situações adversas do ambiente organizacional.

Conforme citação de Maria Elizabeth Antunes Lima, Professora Adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do curso de especialização em Saúde Mental e Trabalho do Centro Universitário Newton Paiva Ferreira, em seu artigo “Psicologia Ciência e Profissão: A Psicopatologia do Trabalho”, C. Dejours acredita que:

Ao se dar a normalidade como objeto, a psicodinâmica do trabalho abre perspectivas mais amplas que (...) não dizem respeito apenas ao sofrimento, mas também ao prazer no trabalho; não apenas ao homem, mas ao trabalho; não apenas à organização do trabalho, mas às situações de trabalho no detalhe rigoroso de sua dinâmica interna.

Partindo da premissa de que o modelo de organização do trabalho influencia e é também influenciado pelas relações subjetivas (intrínsecas) do trabalhador, e de que estamos vivendo em uma sociedade onde as manifestações somáticas estão a cada dia mais presentes, e onde o trabalho tem sido visto muitas vezes como uma necessidade de sobrevivência quando deveria ser uma fonte sublimatória de prazer, é de fundamental relevância a presente pesquisa de revisão bibliográfica para fins de contribuir com a melhoria da saúde mental do trabalhador e conseqüentes ganhos para a organização.

Visando identificar os mecanismos utilizados pelos trabalhadores no intuito de minimizar o sofrimento mental no trabalho é que esse tema fora desenvolvido. Levando em consideração que se trata de um tema bastante amplo, que envolve questões ligadas a Psicologia do Trabalho, Psicologia Social, Organizacional, etc, tem-se como objetivo geral um estudo voltado para a utilização dos mecanismos de defesa do ego na manutenção do bem-estar psíquico do indivíduo dentro da organização.

Têm-se como objetivos específicos desta pesquisa determinar as causas do sofrimento mental, bem como quais as possíveis conseqüências no ambiente de trabalho, destacando-se neste contexto, os mecanismos de defesa (positivos e negativos) utilizados pelos trabalhadores para se adaptarem as diversas situações que porventura ocorram na organização.

Constantemente o ser humano se vale de mecanismos de defesa para se manter em equilíbrio com o meio o qual vive e desempenha suas atividades e a busca constante da satisfação em tudo àquilo que faz o torna um ser diferenciado, único, dinâmico, complexo e que precisa se sentir bem para exercer suas tarefas de forma eficaz, coerente, com comprometimento, responsabilidade e eficiência.

Em um primeiro momento, este artigo abordará um breve histórico sobre a psicodinâmica do trabalho, traçando suas origens dentro de um contexto sócio-histórico específico, tendo em vista as várias abordagens que tratam desse tema.

Posteriormente, serão expostos, para melhor compreensão e apreensão do conteúdo, alguns dos conceitos do que seria saúde mental, visto que um dos seus objetivos mais recentes não se limita apenas na cura das doenças e em sua prevenção, mas sim na busca de recursos que tenham por finalidade proporcionar uma melhor qualidade de vida para o trabalhador.

A relação saúde x trabalho envolve uma série de fatores que são dignos de destaque no atual cenário organizacional, levando em consideração o aumento gradativo das situações geradoras de estresse, neuroses, fobias, doenças ocupacionais que atingem tanto a saúde mental quanto a física gerando conseqüências também no meio externo. O homem, como sendo um ser psissocial, é movido por sentimentos, desejos, crenças, valores, da mesma forma que tem suas limitações, às vezes impostas pelo seu ambiente externo; porém, sua capacidade de superação e adaptação é grande e para isso ele tende a desenvolver mecanismos de defesa necessários para a manutenção dessa capacidade, bem como de sua saúde físico-mental.

Alguns conceitos psicanalíticos precisam ser explicitados neste trabalho de forma a facilitar a compreensão do que seriam tais mecanismos de defesa do ego. Como esse assunto faz parte de nosso objetivo geral, conforme já mencionado anteriormente, será enfatizado com mais destaque no último tópico deste trabalho.

Para viver em sociedade o homem precisa desenvolver alguns destes mecanismos, nem sempre conscientes, que possivelmente serão determinantes para a manutenção de uma vida saudável, tanto ajudando a enfrentar assertivamente as situações desgastantes causadas em seu ambiente de trabalho e da forma menos dolorosa possível, quanto a manter relacionamentos interpessoais satisfatórios com a equipe a qual trabalha.

Identificando tais mecanismos e tornando-os acessíveis àqueles que desejem encontrar soluções eficazes para minimizar o sofrimento mental no trabalho, essa pesquisa tende a ser de significativa valia para o público em questão. De forma clara, objetiva, sucinta, porém incrementadora, este tema, ao mesmo tempo em que pode ser visto como um assunto antigo, é também inovador se levarmos em conta as questões perceptíveis em nossa atual realidade. Corpo e mente são indivisíveis, assim também o homem e a sociedade. E como diz o trecho bíblico, “O trabalho dignifica o homem” (Matheus) espera-se que essa dignidade seja vivenciada em sua plenitude.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

Serão abordados, deste então, os tópicos referentes ao tema deste artigo, onde estarão contidos desde um histórico resumido da psicodinâmica do trabalho, para fins de uma melhor compreensão dos fatos que norteiam os estudos sobre saúde mental no trabalho, destacando-se a influência do mesmo como fator principal de todo esse processo, buscando também mencionar algumas das principais causas e conseqüências do sofrimento mental, e por último, esclarecendo quais os mecanismos de defesa utilizados pelo trabalhador para a manutenção de sua integridade psíquica.

2.1 – Breve histórico da Psicodinâmica do Trabalho

França, século XX - a relação do trabalho com os processos psíquicos começa a ser estudada com base em princípios Tayloristas, os quais consideravam que a organização do trabalho era caracterizada pela rigidez e moldada por um sistema de restrições e imposições técnicas e imóveis. Com o desenvolvimento industrial sérios prejuízos à saúde mental e física do trabalhador se manifestavam, tendo em vista as longas jornadas de trabalho, o aumento do ritmo de produção e a conseqüente fadiga física, bem como a não participação no processo produtivo, dentre outros fatores marcantes.

Em discordância com os princípios Tayloristas, Dejours (1987), médico francês, com formação em Psicossomática e Psicanálise, diretor científico do Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação no CNAM de Paris, acreditava que a grande responsável pelas conseqüências desfavoráveis ao funcionamento psíquico era a forma de organização do trabalho. Ana Magnólia Bezerra Mendes, Professora Assistente do Departamento de Psicologia da UFPE e Mestre em Psicologia Social e do Trabalho pela UNB, em sua resenha Aspectos psicodinâmicos da relação homem x trabalho: As contribuições de C. Dejours, cita o seguinte pensamento de Dejours (1987):

A organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos e uma organização do trabalho que os ignora.

Por volta dos anos 50, a psicodinâmica do trabalho teve também em suas origens a grande contribuição de Lê Guillant (1984), seguidor de C. Dejours, que através de seus estudos deu início às primeiras observações sistemáticas relativas à relação do trabalho com a Psicopatologia. Seu primeiro trabalho, publicado na França (1980) e traduzido no Brasil (1987), referente à influência da forma de organização do trabalho sobre a mente humana, foi o chamado Travail: usure mentale. Essai de psychopathologie du travail (A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho). C. Dejours, também contribuiu para o desenvolvimento e publicação deste livro, inicialmente intitulado Trabalho: Desgaste Mental – Um ensaio de Psicopatologia do Trabalho.

Na obra Cadernos de Saúde Pública (2005), Milton Athayde, na resenha Christophe Dejours: da Psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho, escreve, dentre outras coisas, que para fundamentar o trabalho destes autores foram realizadas enquetes as quais detectaram que:

os trabalhadores não se mostravam passivos em face das exigências e pressões organizacionais, e, sim, capazes de se proteger dos efeitos nefastos à saúde mental. Eles sofriam, mas sua liberdade se exercia, mesmo que de forma muito limitada, na construção de sistemas defensivos, fundamentalmente coletivos.

A Psicodinâmica do Trabalho deriva da Psicopatologia do Trabalho, passando a ter esse nome a partir do foco no estudo da normalidade em detrimento do estudo da patologia. Apesar de Dejours não considerar a psicanálise como recurso para compreender a relação indivíduo x trabalho, sempre buscou os seus conceitos, até mesmo ao propor a mudança do termo psicopatologia para psicodinâmica do trabalho (1992).

A utilização do conceito de Psicodinâmica do Trabalho, em substituição ao de Psicopatologia do Trabalho, deu-se a partir de um privilegiamento do estudo da normalidade, sobre o da patologia. O que importa para a Psicodinâmica do Trabalho é conseguir compreender como os trabalhadores alcançam manter um certo equilíbrio psíquico, mesmo estando submetidos a condições de trabalho desestruturantes. (Dejours, 1993)

Álvaro Roberto Crespo Merlo, no livro Saúde Mental & Trabalho - Leituras (2002) relata que Le Guillant, em uma de suas pesquisas, diagnosticou um distúrbio denominado Síndrome Geral da Fadiga Nervosa, caracterizada por alterações de humor e caráter, modificações no sono e modificações somáticas tais como angústia, palpitações, etc; também foi identificada por este autor a chamada Síndrome Subjetiva Comum da Fadiga Nervosa manifestada através da manutenção do ritmo de trabalho no período de férias, sensação de irritação, dificuldade para ler em casa e a repetição incontrolável de expressões verbais do trabalho (Lê Guillant, 1984:328)

Também cabe ressaltar que outra característica importante da Psicodinâmica do Trabalho é que ela visa à coletividade de trabalho e não apenas aos indivíduos isoladamente e com isso busca intervenções voltadas para a organização do trabalho a qual os indivíduos se submetem.

No ano de 1984, C. Dejours ajudou a realizar o I Colóquio Nacional de Psicopatologia do Trabalho, iniciando posteriormente a organização do Seminário Interdisciplinar de Psicopatologia do Trabalho (1986 – 1987, publicado em 1988) cujo tema foi Sofrimento e Prazer no Trabalho.

Após a II Grande Guerra, com as inúmeras transformações político-sociais, científicas e tecnológicas ocorridas na França, bem como mediante as vastas experiências realizadas em hospitais psiquiátricos, desenvolveu-se a chamada Ergoterapia, representada por Paul Sivadon (adepto da psiquiatria social), estabelecendo uma nova abordagem para a doença mental e reconhecendo o trabalho pelo seu valor de integração social, contribuindo assim para os estudos relacionados à saúde mental no trabalho.

Muitos destes conceitos citados anteriormente, tiveram embasamento na Psicanálise. Freud considera que o homem é guiado pela busca de ausência de sofrimento e pela experiência de prazer. Acredita também que esse sofrimento não se origina na realidade exterior, mas sim, na forma como este homem se relaciona com o meio externo, ou seja, o trabalho representaria fonte de sofrimento ou prazer dependendo do atendimento ou não atendimento da satisfação dos desejos inconscientes frente às condições externas.

O pensamento capitalista, através do capitalismo histórico, traz a concepção de que o trabalho é essencial à vida, e a racionalização, bem como o acúmulo de capital e a hegemonia das categorias sócio-econômicas levam Chanlat (1993) a concluir que o trabalhador passou a ser visto como um objeto, um meio de produção, e não como um ser humano dotado de subjetividade.

Na década de 90, a organização do trabalho passa a ser pontuada como algo mutável e móvel, e o funcionamento psíquico do trabalhador capaz de transformar as situações de trabalho de forma a trazer benefícios para a saúde mental do indivíduo.

Sendo assim, a Psicodinâmica do Trabalho, de uma forma geral, busca compreender o que ocorre com este indivíduo em sua relação com o trabalho propondo, com isso, um estudo dinâmico voltado para os processos intersubjetivos e interativos desenvolvidos no ambiente de trabalho. Ela entende que o caminho que direciona o indivíduo ao trabalho saudável precisa respeitar a sua identidade pessoal, tornando-se necessário para isso, a flexibilidade da organização do trabalho de forma a atender às necessidades do trabalhador.

Partindo dos princípios da Psicologia do Trabalho [Psicologia Industrial, Psicologia Organizacional e Psicologia do Trabalho – Sampaio (1998)], passando pelas vertentes da Psicopatologia, fundamentada em grande parte pela corrente teórica da Psicanálise, a Psicodinâmica do Trabalho vem tomando novos rumos frente às concepções atuais do que seria a saúde mental no âmbito organizacional, bem como dos fatores que norteiam essa relação.

Convém ressaltar que, como este tópico se trata de um breve histórico da Psicodinâmica foram priorizados alguns pontos considerados de fundamental importância para a compreensão do contexto em geral, tendo em vista que se trata de um assunto muito vasto, com inúmeras abordagens teóricas, todas de relevante importância para o desenvolvimento do tema em questão.

2.2 – Saúde Mental x Doença Mental: o trabalho como fator preponderante

A Organização Mundial de Saúde define a saúde como sendo o estado de completo bem-estar físico, mental e social. Assim sendo, alguns critérios de valores foram identificados para caracterizar o que é saúde mental. São eles:

·Atitudes positivas em relação a si próprio

·Crescimento, desenvolvimento e auto-realização

·Integração e resposta emocional

·Autonomia e autodeterminação

·Percepção apurada da realidade

·Domínio Ambiental e competência social

De uma forma geral e do ponto de vista clínico, o conceito de saúde se dá pela presença ou não de sintomas que determinam uma situação de mau funcionamento mental com alterações de personalidade, percepção, inteligência, pensamento, dentre outros.

Maria da Conceição de Almeida Martins, Professora Adjunta da Escola Superior de Viseu, em seu artigo Factores de Risco Psicossociais para a Saúde Mental, cita o conceito de saúde definido por Caplin (1989) como sendo um estado de boa adaptação, com uma sensação subjectiva de bem-estar, prazer em viver e uma sensação de que o indivíduo está a exercer os seus talentos e aptidões.

O conceito de saúde, antes definido como a ausência de doenças vem se modificando e se complementando ao longo dos anos. Estudiosos de diversas culturas dão diferentes definições à Saúde Mental, que vão desde o bem-estar subjetivo ao poder de auto-realização intelectual emocional do indivíduo, porém todos são unânimes em dizer que o conceito de saúde mental vai além da ausência de transtornos mentais.

Henry Ey (1950) atribuía a loucura aos aspectos orgânicos, infecciosos, endocrinológicos ou traumáticos, enquanto que Jacques Lacan (1950), recusando a teoria de Ey, defendia que a loucura é um fenômeno do pensamento, não sendo, portanto, um defeito de adaptação à vida.

Na visão de Bleger (1984) a ênfase em saúde mental desloca-se da doença à saúde e à observação de como os seres humanos vivem em seu cotidiano.

Não é de hoje que as causas e conseqüências do sofrimento mental no trabalho tem sido objeto crescente de estudo devido ao aumento do número de casos ocorridos no ambiente de trabalho trazendo prejuízos ao desempenho do trabalhador e traduzindo-se também em perdas econômicas e macro-econômicas para o empregador.

Doutora em Educação e professora junto ao curso de mestrado em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Maria da Graça Corrêa Jacques, relata no texto Abordagens teórico-metodológicas em saúde/doença mental & trabalho (2003) que:

Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, os chamados transtornos mentais menores acometem cerca de 30% dos trabalhadores ocupados e os transtornos mentais graves, cerca de 5 a 10%. No Brasil, segundo estatísticas do INSS, referentes apenas aos trabalhadores com registro formal, os transtornos mentais ocupam a 3ª posição entre as causas de concessão de benefício previdenciário como auxílio doença, afastamento do trabalho por mais de 15 dias e aposentadorias por invalidez (Ministério da Saúde do Brasil, 2001).

Dejours (1986, 1994) contemplou em seu sistema teórico todas as dimensões do ser humano e acreditando ter a organização do trabalho influência na manutenção da saúde e do bem-estar do indivíduo propõe não a eliminação do sofrimento, e sim a elaboração de condições que possibilitem aos trabalhadores gerir seu próprio sofrimento em proveito da saúde e da produtividade. Para ele, as doenças mentais não são causadas pelo trabalho, no máximo podem ser desencadeadas por ele, já que existe uma determinação psíquica anterior ao ingresso do sujeito no mundo do trabalho, escreve Lílian Erichsen Nassif em seu artigo Origens e desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho na França (século XX): uma abordagem histórica. Lílian é Psicóloga, especialista em Gestão Estratégica de RH pela UFMG, mestre em Psicologia Social pela UFMG, com formação em Psicoterapia Cognitiva pelo Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo e doutoranda em Educação pela UFMG. Nesse mesmo artigo Lílian faz menção à Le Guillant o qual defende um enfoque psicossociológico da doença mental, em que o trabalho figuraria como instância central da realidade social, reconhecendo, portanto, o trabalho como sendo o fator central da gênese dos distúrbios psíquicos.

Em contraposição ao pensamento de Dejours, a psiquiatria tradicional tende a limitar o sofrimento mental aos fatores orgânicos e individuais, não considerando, portanto, a influência das condições sociais, inclusive do trabalho, sobre a saúde mental.

Gillon (1962) apenas reproduzia a abordagem psiquiátrica tradicional a qual via no trabalho apenas um instrumento neutro e indispensável para a cura de doenças mentais. Ele não acreditava haver relação entre o distúrbio mental e o trabalho realizado, porém via como exceção os casos derivados de intoxicações e os trabalhos considerados penosos. Ainda assim, considerava a existência de elementos desfavoráveis no trabalho, como por exemplo, a duração excessiva do trabalho, um ciclo de trabalho muito longo, que exija um grau de atenção muito alto, ou então um trabalho considerado monótono, muito leve ou muito sedentário, dentre outros.

Embora cada autor tenha a sua concepção sobre a relação saúde mental e trabalho, é indiscutível a presença de indicadores que comprovam a relevante interligação entre estes, sendo, portanto, necessário que seja dada a devida atenção a tais elementos desfavoráveis de forma a não prejudicar o envolvimento do individuo consigo próprio e com o ambiente o qual trabalha.

2.2.1 – Causas e conseqüências do sofrimento mental no trabalho

Fatores como o estresse, a fadiga crônica, a Síndrome de Burnout, LER (DORT), estão cada dia mais presentes dentro do contexto organizacional, sendo estes algumas das principais manifestações de sofrimento físico e psíquico.

Amanda de Vasconcelos e José Henrique de Faria, no artigo Os Paradoxos entre a Saúde Mental no Trabalho e as Estratégias Organizacionais de Promoção de Saúde do Trabalhador: Um Estudo de Caso, deixam bem claro que de acordo Ministério da Saúde, os transtornos mentais e do comportamento são resultado de contextos de trabalho em interação com o corpo e aparato psíquico dos trabalhadores e complementam que entre os contextos geradores de sofrimento estão a falta de trabalho ou a ameaça de perda do emprego, o trabalho desprovido de significação ou ainda que ameace a integridade física ou psíquica, acidentes de trabalho, fatores relacionados a tempo, ritmo e turno de trabalho, jornadas longas de trabalho, submissão do trabalhador ao ritmo das máquinas, pressão por produtividade, dentre outros.

Dejours (1994) acredita que as pressões físicas, mecânicas e biológicas do ambiente de trabalho estão diretamente ligadas ao corpo desencadeando, portanto, doenças psicossomáticas no trabalhador. Essas pressões, por conseguinte, levam ao sofrimento e às estratégias defensivas coletivas. Ele considera também a existência de dois tipos de sofrimento: o sofrimento patogênico, surgido quando as possibilidades de transformação, aperfeiçoamento e gestão da organização do trabalho já foram tentadas ou quando as pressões físicas, rígidas, repetitivas e frustrantes geram uma sensação de incapacidade, e o sofrimento criador, quando as ações no trabalho possibilitam a modificação do sofrimento, estruturando, positivamente, a identidade do sujeito, aumentando a resistência deste frente às várias formas de desequilíbrios corporais e psíquicos. Assim sendo, o trabalho pode ser o mediador entre a saúde e a doença e o sofrimento, seja ele criador ou patogênico. De tal forma, prazer e sofrimento são decorrentes de atitudes e comportamentos franqueados pelo desenho organizacional constituídos de relações subjetivas e de poder.

Ele entende também que, em uma situação, por exemplo, onde o empregado tem um comportamento padronizado, com obediência à hierarquia e pouco espaço para se expressar, ele passa a ter seus sentimentos reprimidos e uma agressividade contida, gerando o que ele chama de repressão pulsional, ou seja, a tarefa esteriotipada acaba por ser desprovida de significação para o trabalhador.

Talita Tomazini (2009), em sua dissertação As vivências dos trabalhadores de um Shopping Center em relação ao seu trabalho: uma abordagem psicodinâmica apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Psicologia da Universidade Católica de Goiás, cita o seguinte trecho de Lancman e Heloani:

A reestruturação produtiva no nosso país, a incorporação de novas tecnologias, a precarização das relações de trabalho, a intensificação do ritmo, a diminuição de postos de trabalho, a sobrecarga e a exigência de polivalência dos que permanecem trabalhando têm ampliado e agravado o quadro de doenças e riscos de acidentes, causando afastamentos no trabalho e aposentadorias precoces com forte impacto nas contas do sistema previdenciário. (LANCMAN e HELOANI, 2004, p. 2)

As mudanças ocorridas na estrutura organizacional levam o empregado a se deparar com novas exigências afetando-o por completo. Mediante a nova situação o trabalhador terá que se adaptar a esta com responsabilidade, autonomia e senso de cooperação; porém, quando sua realidade, seus desejos e suas intenções são diferentes dos da empresa gera-se então um conflito que não bem trabalhado pode levá-lo a um adoecimento psicossomático.

O trabalho assume uma posição central na estruturação da identidade individual implicando diretamente nas formas de inserção social dos indivíduos podendo ser visto como algo essencial na construção de redes de relações sociais e de trocas afetivas e econômicas. Os desafios, regras, valores, estabelecidos pelo mundo objetivo quando entram em choque com a singularidade de cada trabalhador faz com que o confronto entre relações e organizações de trabalho x mundo interno e subjetivo do indivíduo acarrete como conseqüência o sofrimento psíquico, o qual também acaba por gerar, em muitos casos, o adoecimento físico.

A falta de reconhecimento, a insatisfação no trabalho, condições físicas de trabalho inadequadas, relacionamento difícil com a equipe de trabalho, pressão, orientações contraditórias para a execução das tarefas, são fatores também relevantes e causadores de sofrimento mental.

Como pode se vê, inúmeros são os fatores que podem ou não ser desencadeadores do sofrimento mental no trabalhador e este, por sua vez, caso não consiga administrar seus próprios sentimentos frente a estas questões, seja adaptando-se às novas realidades e/ou buscando formas de superar as dificuldades tanto subjetivas quanto externas, criando mecanismos saudáveis para aliviar essas tensões, tende a ter conseqüências danosas para sua saúde como um todo afetando também a sua relação com o trabalho.

2.3 – Os mecanismos de defesa do ego na relação sujeito x trabalho

...o sofrimento é um espaço clínico intermediário que marca a evolução de um luta entre funcionamento psíquico e mecanismo de defesa por um lado e pressões organizacionais desestabilizantes por outro lado, com o objetivo de conjurar a descompensação e conservar, apesar de tudo, um equilíbrio possível... (Dejours, 1987c: 735)

Não há como se falar em mecanismos de defesa do ego sem antes abordar questões de cunho Psicanalítico, conceituando alguns termos e fazendo um percurso por algumas das principais descobertas freudianas.

Houaiss (2001) define defesa como sendo o conjunto de operações inconscientes que visam diminuir a influência de fontes de perigo que ameaçam a integridade do indivíduo. Conceitua também mecanismos de defesa:

Conjunto de sentimentos, representação e tendências comportamentais que sobrevêm automaticamente, quando um indivíduo percebe uma ameaça psíquica, o que o protege da angústia, de uma tomada de consciência dos conflitos e perigos internos e externos, ou lhe permitem acomodar-se de uma forma mais fácil, sem necessariamente consciencializar-se deles nem atingir de facto uma nova adaptação ou um domínio da situação.

Sigmund Freud (1856-1939), médico vienense que alterou de forma radical o modo de pensar a vida psíquica, considerado o pai da psicanálise, conceitua defesa como sendo a operação pela qual o ego exclui da consciência os conteúdos indesejáveis protegendo, desta forma, o conteúdo psíquico.

Apreende-se do conceito de Freud que os mecanismos de defesa do ego são processos inconscientes, realizados pelo ego, que afastam determinados conteúdos psíquicos procurando manter a integridade mental do indivíduo, afastando dele o desprazer através da supressão ou deformação da realidade com o intuito de prover esse equilíbrio. Dessa forma, frente a uma situação de agressão ao ego, o indivíduo defende-se através da produção de “fantasmas” que lhe permitem fazer uma ligação com a realidade externa desfavorável, o desejo e a possibilidade de sublimação.

Dejours (1986, 1994) acredita ser mais interessante buscar compreender as estratégias de defesa (individuais e coletivas) dos trabalhadores do que estudar as doenças mentais decorrentes das condições de trabalho. Diferentemente do que se possa parecer o sofrimento mental nem sempre é prejudicial à saúde física e mental do trabalhador, podendo sim, representar um meio por onde o indivíduo confere uma nova significação ao trabalho, à medida que, ao deparar-se com a necessidade de solucionar um problema dentro do seu ambiente de trabalho, tem a chance de aprender a dominar as suas angústias, controlar seu sofrimento, bem como de alcançar o reconhecimento social de seu trabalho.

Em suas teorias sobre o aparelho psíquico, Freud identifica a existência de três sistemas ou instâncias psíquicas interdependentes denominadas, primeiramente, de inconsciente, pré-consciente e consciente, mais tarde identificadas como id, superego e ego.

O id representaria o reservatório de energia psíquica onde seriam encontradas as pulsões de vida (Eros), que abrange as funções sexuais e de autoconservação, e as de morte (Tanatos) que podem ser autodestrutivas se manifestando como pulsão agressiva.

Originado do complexo de édipo, com a internalização das proibições e das limitações, o conteúdo do superego refere-se as exigências sociais e culturais.

Assim, em seu livro, O que é Psicanálise, Fábio Herrmann (1984) descreve o complexo de édipo:

Acontece entre 2 e 5 anos. No complexo de Édipo, a mãe é o objeto de desejo do menino, e o pai é o rival que impede seu acesso ao objeto desejado. Ele procura então assemelhar-se ao pai para "ter" a mãe, escolhendo-o como modelo de comportamento, passando a internalizar as regras e as normas sociais representadas e impostas pela autoridade paterna. Posteriormente, por medo da perda do amor do pai, "desiste" da mãe, isto é, a mãe é "trocada" pela riqueza do mundo social e cultural, e o garoto pode, então, participar do mundo social, pois tem suas regras básicas internalizadas através da identificação com o pai. Este processo também ocorre com as meninas, sendo invertidas as figuras de desejo e de identificação. Freud fala em Édipo feminino.

E por último, o ego, que é uma instância a serviço da realidade externa, principalmente através da percepção exterior recebendo, portanto, informações tanto do mundo exterior quanto do interior. O pensamento, a memória e os sentimentos também são funções básicas do ego. Ele se desenvolve a partir do id e tem a tarefa de garantir a saúde, segurança e sanidade da personalidade.

Freud menciona os seguintes mecanismos de defesa abaixo conceituados:

1.Recalque – no mais radical dos mecanismos o indivíduo nem vê e nem ouve o que está ocorrendo, ou seja, ele suprime uma parte da realidade.

2.Formação Reativa – o indivíduo adota um comportamento oposto ao desejo buscando o afastamento desse desejo, ou seja, a sua atitude visa esconder dele próprio suas verdadeiras motivações.

3.Regressão – é uma passagem para os modos de expressão mais primitivos, onde o indivíduo retorna a momentos anteriores de seu desenvolvimento.

4.Projeção – é o mecanismo mais freqüente na vida diária, onde indivíduo projeta no outro algo que seja indesejável dentro de si mesmo e que não percebe como sendo seu.

5.Racionalização – trata-se do processo de achar motivos lógicos aceitáveis para pensamentos e ações inevitáveis; ou seja, quando um determinado ato não é recomendável usa-se a racionalização para justificá-lo.

6.Repressão – afasta-se da consciência um evento ou percepção que possa provocar ansiedade mantendo-o no inconsciente. Para Freud, algumas doenças psicossomáticas, tais como asma, artrite e úlcera, e também o cansaço excessivo e as fobias, estariam relacionados a sentimentos reprimidos.

7.Negação – o indivíduo fantasia que determinado acontecimento não é de fato do jeito que é; nesse mecanismo existe a tentativa de não aceitar na consciência algo que perturba o ego.

8.Deslocamento – a pessoa substitui um ato por outro mais aceitável socialmente.

9.Sublimação – a energia associada a impulsos socialmente constrangedores é canalizada para atividades socialmente reconhecidas.

É saudável e natural que todas as pessoas se utilizem destes mecanismos de defesa (ainda que inconscientemente), para afastar ou minimizar a ansiedade, desde que isso não seja levado ao extremo. A necessidade de proteger a sua auto-imagem, de ter a aprovação de seu comportamento ou de justificá-lo quando necessário é algo inerente ao ser humano e quando essa necessidade se encontra ameaçada por uma situação externa a tendência é a de que a mente humana busque formas de proteção e preservação da saúde psíquica.

Freud (1987a) ao descrever o desenvolvimento psíquico relata que uma criança recém-nascida não sabe diferenciar seu ego do mundo externo como sendo originado das sensações vivenciadas por ela. Isso só ocorreria com o passar do tempo à medida que ela fosse reagindo adequadamente aos estímulos externos correspondentes. O ego procura afastar as sensações desprazerosas tendendo a isolar ou a projetar tudo o que possa ser fonte de desprazer. Em um estágio mais avançado o ego consegue diferenciar o que é interno do que se origina do mundo externo introduzindo, assim, o princípio da realidade. Através desse princípio o ego pode localizar se sofrimento parte de nosso corpo, do mundo externo ou das nossas relações interpessoais. Tal processo de evitação do sofrimento pode também ocorrer em relação ao trabalho.

José Roberto Heloani, Professor e Pesquisador da Universidade Estadual de Campinas e na FGV-SP, e Cláudio Garcia Capitão, Psicólogo Clínico, Professor e Pesquisador em Psicologia na Universidade São Francisco, no artigo Saúde Mental e Psicologia do Trabalho (2003) relatam que:

O trabalho, não só como uma condição externa, pode propiciar sofrimento insuperável para o ego, empobrecendo-o e restringindo sua ação a mecanismos defensivos repetitivos e ineficazes, não lhe possibilitando aferir, de acordo com suas atividades, a satisfação de determinadas pulsões, que, não satisfeitas, tencionaram o aparelho psíquico, gerando angústia, estados depressivos, ansiedade, medos inespecíficos, sintomas somáticos, como sinais marcantes de sofrimento mental, com o agravante de que um ego debilitado e frágil não consegue diferenciar, pela sua condição, a origem de seu sofrimento.

Os mecanismos de defesa são benéficos à medida que afastam do indivíduo as sensações de angústia e ansiedade evitando-se assim estados de stress psíquico. Porém deve-se ter cuidado com a sua utilização prolongada e inconsciente, pois pode levar a pessoa a um comportamento de afastamento da realidade, sendo, portanto funestos ao ajustamento individual. O sujeito precisa ter a maturidade necessária para diagnosticar o mecanismo que está sendo utilizado, bem como para saber o momento certo de abandoná-lo, evitando-se assim, problemas maiores os quais poderiam prejudicar ainda mais a sua saúde mental e, conseqüentemente, a sua relação com o trabalho.