Entre o ser e a síndrome
Ângelo Gustavo Venâncio de Lima
Este presente artigo irá elucidar, através dos pressupostos da Fenomenologia – Existencial, a dimensão do encontro clínico e suas conseqüências para o ser.
Resumo
Através do trabalho exercído pelo aluno pesquisador na clínica Fenomenológica – Existencial, será possível discorrer sobre a psicoterapia de um rapaz que chamaremos de M., que foi encaminhado a clínica com o diagnóstico de Síndrome de Aspergir. Nesse processo psicoterapêutico foi possível ao psicoterapeuta estabelecer um vínculo com o paciente que permitiu trabalhar questões como liberdade, escolha, alienação, dependência, auto-imagem, entre outras. O processo psicoterapêutico teve a duração de aproximadamente um ano, com uma sessão por semana.
Palavras chave: Síndrome – Liberdade – Escolha – responsabilidade
A angustia de existir e o desespero
Segundo Kierkegaard, citado por Feijoo (2000), “define-se a angustia como a antipatia simpatizante e simpatia antipatizante, mostrando assim o caráter da mobilização deste sentimento que, ao mesmo tempo em que traz o desejo como devir, traz o temor do amanha, justamente o imprevisível”.
A seguir a descrição da primeira sessão com o paciente M:
M. chegou ao consultório sem dizer nada, sentou-se na beirada da poltrona e ficou olhando ao redor, para a mesa, a janela e o armário sem olhar para o psicoterapeuta. Ao ser perguntado sobre o que lhe trazia a clinica, ele sem olhar nos olhos do psicoterapeuta diz que teria sido encaminhado por ter sido diagnosticado pelo psiquiatra como sendo portador de uma doença chamada Síndrome de Aspergir. Ao perguntá-lo sobre os sintomas dessa síndrome, ele prontamente relata detalhadamente, como se tivesse retirado de um livro cientifico, todas as facetas dessa doença. E diz ainda:
- Minha mãe diz que sou um gênio, consigo ler um livro de trezentas paginas em um dia. Esse e´ um sintoma da Síndrome (ele diz). Também não expresso vontade, não expresso alegria ou tristeza, nem raiva e nem contentamento. Eu não preciso de ninguém. Consigo viver só. Não tenho paciência com as pessoas e com a conversa delas. Vejo-me como se estivesse acima de todos. Prefiro viver no meu mundo. No mundo que criei, no mundo de Henrique (Henrique é um personagem criado por M., um personagem no qual M. consegue se relacionar pela Internet com outras pessoas “especiais como ele”, sem mostrar-se).
“No desespero demoníaco pela consciência desse eu passivo de querer ser ele próprio, acaba não tolerando qualquer situação difícil. Pela paixão no seu tormento, torna-se demoníaco: crê na sua superioridade infinita, sem querer a ajuda de ninguém. Acaba por temer o infinito, formando-se uma abstração infinita do eu”. (FEIJOO, 2000, P. 66)
O mais interessante nesse início de processo psicoterapêutico, foi perceber o quanto M. estava apegado e “formatado” a uma identificação alienante com o ser que sua mãe dizia que ele era. Ou seja, um gênio, um ser especial e único que não tem nada de si no outro e nada do outro em si. Porém existia ao mesmo tempo na fala de M., certa revolta por estar nessa posição, como se quisesse demonstrar a todo o momento que não estava ali, na psicoterapia, apenas para satisfazer um desejo da mãe, mas para encontrar o onde e porque perdera o próprio desejo, a própria vontade.
“A Psicologia tornou agora a encontrar a angustia no objeto. Deve porem, manter prudência. A historia da existência individual progride em movimentos de estado a estado e cada estado e´ fixado por um salto… O estado que antecede cada salto e´ a maior aproximação psicológica que pode ser atingida com respeito ao salto: esse e´ o objeto da Psicologia. Em cada estado existe uma esfera de possibilidades e, em igual medida, a angustia.” (KIERKEGAARD, citado por Feijoo, 2000)
Um fato interessante no atendimento ao paciente M. se deu pela escolha por parte do psicoterapeuta em não buscar um maior conhecimento sobre a Síndrome de Aspergir, num primeiro momento. O psicoterapeuta se ateve a vivência experienciada pelo paciente, ou seja, a maneira como esse jovem de dezenove anos se percebe e se situa no mundo. Essa escolha definiria todo o processo terapêutico. A escolha em tratar o paciente como um ser – no – mundo e não um objeto doente alienado do mundo.
“O homem não pode sair do seu espaço de destino concreto, se este rebela contra o destino, isto e´, em face daquilo contra que nada pode, em face daquilo em que não tem nenhuma responsabilidade ou culpa é porque não se viu bem o sentido do destino. E, há um sentido do destino, pois este, tal como a morte, da a vida um sentido. Dentro do seu espaço de destino, como que exclusivo, o homem e´ insubstituível. E e´ esta insubstituibilidade que gera a sua responsabilidade pela configuração do seu destino. Com o destino assim caracterizado, o homem esta por assim dizer, só´ no meio do universo. O seu destino não se repete. Ninguém tem as mesmas possibilidades que ele, nem ele próprio as volta a ter. As ocasiões com que depara para realizar valores criadores ou vivenciais, aquilo que e´ próprio do destino e vem ao seu encontro’. (VICTOR FRANKLEL, p.119, 1989)
Liberdade e responsabilidade
Apesar da forma como M. se colocava, como um ser mais inteligente que a media, acima dos pobres mortais, M. excolhia não escolher. Não queria ser responsável pela liberdade que a escolha oferece. M. escolhia esconder-se atrás de um diagnóstico que de certa forma da´ um sentido para o seu ser.
Segundo Victor Frankel, “Se quiséssemos definir o homem, teríamos que caracterizá-lo como o ser que se vai libertando daquilo que o determina, enquanto tipo determinado biologicamente, psicologicamente e sociologicamente; quer dizer, como o ser que transcende toda estas determinações, dominando-as ou configurando-as”.
Do primeiro ao quinto mês de psicoterapia, o que o psicoterapeuta escutou de M. foi uma enorme expressão de fantasias. M. teria construído uma espécie de “mundo paralelo” onde inventara seu outro rapaz, com outra família e morando em outro lugar, melhor dizendo, na Noruega. O escutar dessas fantasias e a atitude do psicoterapeuta em dar nomes às mesmas, ou seja, dizer, por exemplo, a M.; Você esta dizendo do Henrique, o rapaz que você gostaria de ser e que você fantasiou…, possibilitou a M. se colocar novamente em situação, ou seja, colocar-se presente, lúcido e responsável pela decisão de escolher ser outro e assim, perceber as perdas e os benefícios que essa escolha o trouxera ate esse momento.
“… Mas ser – no – mundo não quer dizer que o homem se acha no meio da natureza, ao lado de arvores, animais e outros… E´ uma estrutura de realização… O homem esta sempre superando os limites entre o dentro e o fora”. (HEIDEGGER, 1998, p. 20)
Aproximadamente com um ano de processo psicoterapêutico, M. deixou o fone de ouvido que trazia sempre nas sessões e que o afastava do mundo, pois não ouvi a ninguém a não ser seus pensamentos. Também nesse momento, M. começou a demonstrar emoções como raiva, asco, ódio e humor irônico. Embora fossem emoções que traziam uma enorme carga negativa, eram sentimentos, que ao contrário do que o sintoma da sua “Síndrome” descrevia M. expressava-os com muita intensidade. Também nesse período M. já não era mais chamado pela sua mãe de Gênio, muito pelo contrario, ele agora, era comparado por ela como sendo uma copia do pai, ou seja, um traste.
Ao escolher se expor, colocar-se no mundo através de suas vontades e escolhas, começavam a surgir para M. as conseqüências das mesmas. De gênio passou a ser considerado pela sua mãe um traste, de fantasioso, passou a se colocar como inseguro, porem ciente de ser um ser em situação e para a morte, assumindo a sua finitude. Sua mãe também deixou de ser para ele aquela pessoa na qual ele dizia não sentir nada, nem amor, nem ódio, para ser alguém que o provoca emoções de revolta, ódio e desapontamento.
A seguir um trecho de uma sessão que M. ao convocar a mãe a uma discussão franca recebe uma resposta que o deixa furioso e espantado por perceber o quanto era colocado por ela num papel de infantil e retardado.
Psicoterapeuta: Como foi a conversa que você me disse que teria com a sua mãe?
M.: Ah, eu disse a ela que estava com muita raiva por ela não ter feito almoço.
Psicoterapeuta: O que ela disse?
M. Você não e´ igual ao seu pai, é pior, porque ele pelo menos e´ um traste que cozinha, você nem sabe cozinhar. Você esta com raiva não e´ por causa da comida, é porque quando você tinha seus 5 anos de idade eu não deixei você brincar com o super nintendo o dia todo.
Psicoterapeuta: Como você se sente com essa fala da sua mãe?
M. Ela que precisa de terapia, ela acha que eu não cresci que ainda sou um menino.
Psicoterapeuta: E você pensa o que?
M. Bom, digamos que estou aprendendo a não ser.
Psicoterapeuta: Ou ser você mesmo?
M.: Sim, pode ser.
Nessa sessão M. pode perceber o quanto a relação com a sua mãe não era uma relação de ser – com, ou seja, uma relação onde duas pessoas se encontram e estabelecem vínculos sem deixar que uma se sobreponha a outra. Ao contrário, no caso de M., o encontro com a sua mãe era sempre baseada numa relação de ser – para o outro, ou seja, ser em função do outro, em fusão com o outro. Uma relação de objeto. Daí a angustia vital que M. trazia. A angustia de ser sempre para a mãe, para os desejos da mãe, a angustia de não ser.
“O primordial ser –no –mundo do homem não e´ uma abstração, mas uma ocorrência concreta, acontece e se realiza, apenas, nas múltiplas formas peculiares do comportamento e nas diferentes maneiras dele relacionar-se `as coisas e `as pessoas. Ser não e´uma estrutura antológica existindo em algum supermundo que se manifesta uma vez ou outra na existência humana. Se – no – mundo consiste na maneira única e exclusiva do homem existir, comportar e se relacionar `as coisas e `as pessoas que encontra”. (BOSS, 1963, p.34)
Nas ultimas sessões M. se mostrou falante, observador, critico, lúcido e autentico. M. agora tem a consciência do lugar que ocupa no mundo e percebe que as fantasias que criava não eram delírios ou sintomas da suposta síndrome diagnosticada previamente, mas sim saídas que ele encontrou para dar conta da imensa insatisfação de ser quem ele realmente era, ou seja, um rapaz pobre, muito tímido, que divide um quarto com a mãe, tendo seu espaço muito limitado e desrespeitado por ela. E também esta consciente que desempenhava muito bem o papel de filho doente para não enfrentar as adversidades que o mundo coloca a sua frente, como trabalho, estudos e ate mesmo aprender a cozinhar. M. deixou de ser o ser – para a mãe e separado do mundo para ser o ser – no mundo, separado da mãe.
Conclusão
Primeiramente, deixemos claro que o caso não esta concluído, pois a construção da obra de M. esta apenas começando, que e´ a construção da sua própria existência. Uma existência antes rotulada por um diagnostico ou um sentença e agora uma existência real, vivida com intensidade, repleta de medos e inseguranças porem vivida humanamente, ou seja, com riscos e o fascínio que as possibilidades da liberdade oferecem a aqueles que se colocam diante da vida, não a observando apenas, mas a “engolindo e a digerindo”.
Assim, o que podemos concluir aqui e´ que somente nos tornamos seres quando existimos. Somente nos tornamos libertos, se nos responsabilizarmos pela liberdade e somente há encontro se percebo no outro o que há em mim.
“O mundo e´ sempre um mundo compartilhado com os outros, só´ posso saber quem sou como ser humano, convivendo com meus semelhantes”. (HEIDEGGER, 1988, p.169)
Referencias Bibliográficas:
FEIJOO, Ana Maria Lopes Calvo de. A escuta e a fala em Psicoterapia. Uma proposta fenomenológico – existencial. São Paulo. Ed. Vetor, 2000.
FRANKEL, E, Viktor. Psicoterapia e sentido de vida. São Paulo. Ed. Quadrante, 1989.
MAY, Rollo e Outros. Existência Madri , Gredos, 1967.
MAY, Rollo. A descoberta do ser. Rio de Janeiro. Ed. Rocco, 1988.
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