Doença não é destino
Com base na trágica história do alcoolismo na minha família e principalmente nas histórias que ouvimos todos os dias em salas de Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Neuróticos Anônimos, estou perfeitamente convencido de que ninguém se recupera da dependência química ou do descontrole emocional se não se envolver de corpo e alma na sua luta pela recuperação, tal qual o jogador de futebol que coloca o seu coração no bico da chuteira para ganhar o jogo de qualquer maneira. Vejamos o triste caso do alcoolismo na minha família.
Meu avô paterno, espírita, homem de comportamento austero, jamais fumou qualquer cigarrinho ou tomou uma única gota de álcool em sua vida. Já os seus filhos homens, meu pai e os meus dois tios, morreram prematuramente, vitimados pelo alcoolismo. Eu e os meus três irmãos, filhos de pai alcoólico, nos tornamos também alcoólicos. De onde se conclui que se o alcoolismo tem herança genética, seus genes ora são regra, ora são exceção no caso do descendente alcoólico.
Meu pai e os meus dois tios, segundo contava a nossa mãe, pareciam aceitar pacificamente a sua desgraça engarrafada, nunca manifestando um desejo sincero de abandonar a bebida. Meu tio Berlim morreu com 28 anos, meu pai, com 35 anos, e o meu tio Bernardino, com 38 anos, todos por doenças relacionadas com o uso imoderado de bebidas alcoólicas. Quanto aos meus três irmãos, ambos eram realmente doentes alcoólicos, mas quando eu tentava convencê-los disso, eles faziam um paralelo entre as suas bebedeiras e as minhas, para concluir que eu sim, era alcoólico, mas eles, não! Alguns amigos e parentes também achavam que, em virtude do alcoolismo deles ser muito diferente do meu, eles eram apenas adeptos da garrafa, mas não dependentes. Mas todos morreram prematuramente, em virtude do uso abusivo de bebidas alcoólicas: Vicente, com 42 anos, José, com 59, e Joaquim, com 61.
Eu, considerado caso irrecuperável de dependência química, tendo começado com as anfetaminas no Rio de Janeiro, na década de 60, para depois tornar-me compulsivo e incontrolável usuário da bebida alcoólica, de loucas e devastadoras crises de embriaguez contínua, desde 1973, agarrei-me ao Programa de Recuperação de AA e depois de N/A, e, mesmo aos trancos e barrancos, sofrendo várias e quase trágicas recaídas, nunca desisti do sonho de recuperação, pois permaneci fiel à idéia de que era um doente alcoólico e que precisava me manter definitivamente afastado do único veículo que impulsionava a minha doença: o álcool.
Tive muitos períodos de sobriedade descontínua: um mês, seis meses, oito meses, um ano, dois anos, até que, a partir de 1999, nunca mais recaí na garrafa. Nesses 48 anos de AA e de luta contra a dependência alcoólica, somndo os quase 22 anos de sobriedade contínua de hoje aos períodos de sobriedade descontínua do passado, creio que totalizam mais de 40 anos de abstenção ao álcool, pois, desde que me tornei adepto do Programa de Recuperação de AA, em reação ao álcool, eu só tive recaídas. Caía, me levantava, sacudia a poeira e voltava para o tratamento. Foram quarenta anos, portanto, sem um único gole! E foi isso que salvou minha vida!...
O alcoolismo, como se define comumente em AA, é uma doença que combina uma obsessão (periódica ou temporária) para ingerir bebidas alcoólicas com uma alergia orgânica ou mental para o uso do álcool. E é aqui que reside o mais triste dos paradoxos dos alcoólicos: têm uma atração incomum pela garrafa, mas, após o primeiro copo, descontrolam-se completamente. Trata-se de um doença incurável e progressiva; ou o indivíduo para de beber ou vai beber até morrer – quase sempre indigna e prematuramente – ou enlouquecer.
Não pude trazer meus irmãos para o AA. Mas tentei. Não é fácil convencer um dependente químico de que ele é um doente e de que precisa tratar-se, seja com terapeutas profissionais, seja em Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos ou Neuróticos Anônimos, seja pela conversão a uma Religião. Faz parte dos sintomas da dependência química essa característica de o doente ser o último a reconhecer que está doente e que precisa de ajuda. Isso é desolador e frustrante para os seus familiares e amigos, mas é a regra geral.
A farta pesquisa científica ou leiga sobre a dependência química ou psíquica já comprovam que ela não é causa, mas consequência: o indivíduo, em estado de permanente conflito com o mundo que o cerca, tenta fugir e essa fuga pode ser fatal para algumas pessoas, como, por exemplo, o alcoólatra ou o usuário de drogas ilícitas. Mas, quaisquer que sejam as causas da doença emocional, da dependência química ou psíquica, quaisquer que sejam os índices de sucesso da psicoterapia e da farmacoterapia nessa área, já é premissa plenamente aceita pela maioria dos profissionais de Medicina, sociólogos, religiosos e os próprios neuróticos em geral - portadores somente de transtornos emocionais (os chamados “neuróticos puros”), alcoólicos, usuários de outras drogas, dependentes de jogo, comida ou sexo - em tratamento, que a recuperação do indivíduo passa obrigatoriamente pela mudança radical da sua personalidade, em outras palavras, pela sua higiene mental o que, na prática, se pode traduzir por "passar um aspirador de pó no espírito".
Para essa alternativa - que a cada dia se revela mais acertada - estão convergindo as várias correntes de opiniões e terapêuticas, inclusive com a disseminação mundial dos Grupos de Auto-Ajuda (terapia grupal para pessoas que têm problemas comuns), tendência que, a partir da fundação dos Alcoólicos Anônimos, em 1935, vem crescendo de maneira avassaladora no mundo inteiro.
Alcoólicos Anônimos (AA), Neuróticos Anônimos (N/A), Narcóticos Anônimos (NA), Dependentes Amorosos e Sexuais Anônimos (DASA), Fumantes Anônimos (FA), Jogadores Anônimos (JA), Comedores Compulsivos Anônimos (CCA), Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA), núcleos religiosos e os CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) estaduais prestam, nos dias de hoje, extraordinárias contribuições para o enfrentamento da problemática da doença emocional com as suas variantes de dependência química ou psíquica. Oferecem gratuitamente e sem quaisquer exigências de ordem social, religiosa ou jurídica, Programas de Tratamento, baseados em terapias grupais que detêm encorajadores níveis de recuperação.
Nesse contexto psicossocial é fundamental que, independente do programa, meio ou instituição de que o dependente químico ou doente emocional se valha para tratar-se, ele seja esclarecido – sem sofismas ou preconceitos – sobre o seu real estado de saúde mental, emocional e física. É um doente e precisa tratar-se. Às vezes, basta essa conscientização para que ele faça a sua adesão sem restrições ao seu processo de tratamento ou recuperação. Outras vezes, ele procura um reforço adicional no tratamento psiquiátrico ou na conversão religiosa.
Atente-se para o fato de que eu disse "reforço adicional no tratamento psiquiátrico ou na conversão religiosa", porque antes que o doente emocional ou dependente químico admita sem reservas que é um doente e que precisa de ajuda para tratar-se adequadamente, qualquer tipo de tratamento, na minha opinião, tem poucas chances de sucesso.
Na questão do tratamento médico, discute-se a eficácia dos medicamentos psicoativos: antidepressivos, tranquilizantes, ansiolíticos, soníferos, etc. Pode um produto químico - ingerido de fora para dentro - corrigir um distúrbio mental e/ou comportamental - que, obviamente, se produz de dentro para fora? Parece evidente que os medicamentos psicoativos têm indicação e uso extremamente indispensáveis em certos quadros neuróticos graves, tais como, depressão e fobia social severas, síndrome de pânico, insônia rebelde, pensamentos suicidas, etc., mas, de modo geral, parecem atuar mais em cima da sintomatologia do que da etiologia desses transtornos emocionais. Mas, fora disso, eles são, como querem alguns, meros paliativos para uma doença da alma, cuja causa remota até mesmo o próprio doente pode desconhecer?
Somente o tempo e os avanços da Medicina Humana poderão nos elucidar tais questões.
No que concerne à conversão religiosa, posso argumentar com a minha própria experiência. Minha mãe, espírita militante, irritava-se com o que chamava de orgulho e teimosia da minha parte, por não aceitar que era vítima de uma obsessão espiritual e que precisava tratar-me em sessões espíritas. Mas estava certa somente numa coisa: eu não aceitava mesmo tratar-me em sessões espíritas, porque, sempre agnóstico, me faltava a fé necessária para ser militante de qualquer religião. Mas eu admitia pacificamente a idéia da obsessão espiritual - já que inacreditáveis incidentes da minha conturbada vida me faziam suspeitar que havia uma sombra inteligente influenciando negativamente alguns acontecimentos. Mas, como já disse, me faltava a necessária fé para a frequência habitual aos templos espíritas; além disso, a obsessão espiritual é uma hipótese filosófico-religiosa, fato que, aqui e ali, batia de frente com a minha fria racionalidade.
Mas, quando cheguei ao AA me disseram simplesmente que se o meu problema fosse igual ao deles, eu era um doente alcoólico e impotente - para toda a vida - para ingerir o primeiro gole de bebida alcoólica e que, cada fez que eu o fizesse, com certeza experimentaria desagradáveis consequências. Meu insuportável racionalismo e o meu orgulho de intelectual recusaram-se inicialmente a admitir que a simples ingestão de um copinho de cerveja poderia desencadear em minha mente uma imperiosa necessidade de beber mais até embriagar-me e causar problemas. Contudo, isso não era uma hipótese, nem uma teoria, era um fato científico: o descontrole alcoólico é irreversível e incurável; portanto, cada triste vez que o desafiei, resvalei pela sarjeta da embriaguez. Que mais provas eu poderia exigir para ter certeza de que a minha incapacidade para usar o álcool é tão orgânica quanto a incapacidade do diabético para usar o açúcar? Nenhuma mais! Por isso, tornei-me definitivamente sóbrio em AA.
De qualquer modo, é somente a partir do momento em que o doente corajosamente resolve buscar toda a ajuda disponível para libertar-se da cruz da sua dependência química ou descontrole emocional, é que estará dando início – talvez sem o saber – a uma experiência espiritual transformadora capaz de levá-lo com segurança à maior das vitórias: a vitória sobre si mesmo.
"Se vir algo faiscando na areia, abaixe-se e pegue. Pode ser um caco de vidro ou uma pérola. Mas você nunca saberá se não a pegar.” (Will Randall)
Com base na trágica história do alcoolismo na minha família e principalmente nas histórias que ouvimos todos os dias em salas de Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Neuróticos Anônimos, estou perfeitamente convencido de que ninguém se recupera da dependência química ou do descontrole emocional se não se envolver de corpo e alma na sua luta pela recuperação, tal qual o jogador de futebol que coloca o seu coração no bico da chuteira para ganhar o jogo de qualquer maneira. Vejamos o triste caso do alcoolismo na minha família.
Meu avô paterno, espírita, homem de comportamento austero, jamais fumou qualquer cigarrinho ou tomou uma única gota de álcool em sua vida. Já os seus filhos homens, meu pai e os meus dois tios, morreram prematuramente, vitimados pelo alcoolismo. Eu e os meus três irmãos, filhos de pai alcoólico, nos tornamos também alcoólicos. De onde se conclui que se o alcoolismo tem herança genética, seus genes ora são regra, ora são exceção no caso do descendente alcoólico.
Meu pai e os meus dois tios, segundo contava a nossa mãe, pareciam aceitar pacificamente a sua desgraça engarrafada, nunca manifestando um desejo sincero de abandonar a bebida. Meu tio Berlim morreu com 28 anos, meu pai, com 35 anos, e o meu tio Bernardino, com 38 anos, todos por doenças relacionadas com o uso imoderado de bebidas alcoólicas. Quanto aos meus três irmãos, ambos eram realmente doentes alcoólicos, mas quando eu tentava convencê-los disso, eles faziam um paralelo entre as suas bebedeiras e as minhas, para concluir que eu sim, era alcoólico, mas eles, não! Alguns amigos e parentes também achavam que, em virtude do alcoolismo deles ser muito diferente do meu, eles eram apenas adeptos da garrafa, mas não dependentes. Mas todos morreram prematuramente, em virtude do uso abusivo de bebidas alcoólicas: Vicente, com 42 anos, José, com 59, e Joaquim, com 61.
Eu, considerado caso irrecuperável de dependência química, tendo começado com as anfetaminas no Rio de Janeiro, na década de 60, para depois tornar-me compulsivo e incontrolável usuário da bebida alcoólica, de loucas e devastadoras crises de embriaguez contínua, desde 1973, agarrei-me ao Programa de Recuperação de AA e depois de N/A, e, mesmo aos trancos e barrancos, sofrendo várias e quase trágicas recaídas, nunca desisti do sonho de recuperação, pois permaneci fiel à idéia de que era um doente alcoólico e que precisava me manter definitivamente afastado do único veículo que impulsionava a minha doença: o álcool.
Tive muitos períodos de sobriedade descontínua: um mês, seis meses, oito meses, um ano, dois anos, até que, a partir de 1999, nunca mais recaí na garrafa. Nesses 48 anos de AA e de luta contra a dependência alcoólica, somndo os quase 22 anos de sobriedade contínua de hoje aos períodos de sobriedade descontínua do passado, creio que totalizam mais de 40 anos de abstenção ao álcool, pois, desde que me tornei adepto do Programa de Recuperação de AA, em reação ao álcool, eu só tive recaídas. Caía, me levantava, sacudia a poeira e voltava para o tratamento. Foram quarenta anos, portanto, sem um único gole! E foi isso que salvou minha vida!...
O alcoolismo, como se define comumente em AA, é uma doença que combina uma obsessão (periódica ou temporária) para ingerir bebidas alcoólicas com uma alergia orgânica ou mental para o uso do álcool. E é aqui que reside o mais triste dos paradoxos dos alcoólicos: têm uma atração incomum pela garrafa, mas, após o primeiro copo, descontrolam-se completamente. Trata-se de um doença incurável e progressiva; ou o indivíduo para de beber ou vai beber até morrer – quase sempre indigna e prematuramente – ou enlouquecer.
Não pude trazer meus irmãos para o AA. Mas tentei. Não é fácil convencer um dependente químico de que ele é um doente e de que precisa tratar-se, seja com terapeutas profissionais, seja em Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos ou Neuróticos Anônimos, seja pela conversão a uma Religião. Faz parte dos sintomas da dependência química essa característica de o doente ser o último a reconhecer que está doente e que precisa de ajuda. Isso é desolador e frustrante para os seus familiares e amigos, mas é a regra geral.
A farta pesquisa científica ou leiga sobre a dependência química ou psíquica já comprovam que ela não é causa, mas consequência: o indivíduo, em estado de permanente conflito com o mundo que o cerca, tenta fugir e essa fuga pode ser fatal para algumas pessoas, como, por exemplo, o alcoólatra ou o usuário de drogas ilícitas. Mas, quaisquer que sejam as causas da doença emocional, da dependência química ou psíquica, quaisquer que sejam os índices de sucesso da psicoterapia e da farmacoterapia nessa área, já é premissa plenamente aceita pela maioria dos profissionais de Medicina, sociólogos, religiosos e os próprios neuróticos em geral - portadores somente de transtornos emocionais (os chamados “neuróticos puros”), alcoólicos, usuários de outras drogas, dependentes de jogo, comida ou sexo - em tratamento, que a recuperação do indivíduo passa obrigatoriamente pela mudança radical da sua personalidade, em outras palavras, pela sua higiene mental o que, na prática, se pode traduzir por "passar um aspirador de pó no espírito".
Para essa alternativa - que a cada dia se revela mais acertada - estão convergindo as várias correntes de opiniões e terapêuticas, inclusive com a disseminação mundial dos Grupos de Auto-Ajuda (terapia grupal para pessoas que têm problemas comuns), tendência que, a partir da fundação dos Alcoólicos Anônimos, em 1935, vem crescendo de maneira avassaladora no mundo inteiro.
Alcoólicos Anônimos (AA), Neuróticos Anônimos (N/A), Narcóticos Anônimos (NA), Dependentes Amorosos e Sexuais Anônimos (DASA), Fumantes Anônimos (FA), Jogadores Anônimos (JA), Comedores Compulsivos Anônimos (CCA), Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA), núcleos religiosos e os CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) estaduais prestam, nos dias de hoje, extraordinárias contribuições para o enfrentamento da problemática da doença emocional com as suas variantes de dependência química ou psíquica. Oferecem gratuitamente e sem quaisquer exigências de ordem social, religiosa ou jurídica, Programas de Tratamento, baseados em terapias grupais que detêm encorajadores níveis de recuperação.
Nesse contexto psicossocial é fundamental que, independente do programa, meio ou instituição de que o dependente químico ou doente emocional se valha para tratar-se, ele seja esclarecido – sem sofismas ou preconceitos – sobre o seu real estado de saúde mental, emocional e física. É um doente e precisa tratar-se. Às vezes, basta essa conscientização para que ele faça a sua adesão sem restrições ao seu processo de tratamento ou recuperação. Outras vezes, ele procura um reforço adicional no tratamento psiquiátrico ou na conversão religiosa.
Atente-se para o fato de que eu disse "reforço adicional no tratamento psiquiátrico ou na conversão religiosa", porque antes que o doente emocional ou dependente químico admita sem reservas que é um doente e que precisa de ajuda para tratar-se adequadamente, qualquer tipo de tratamento, na minha opinião, tem poucas chances de sucesso.
Na questão do tratamento médico, discute-se a eficácia dos medicamentos psicoativos: antidepressivos, tranquilizantes, ansiolíticos, soníferos, etc. Pode um produto químico - ingerido de fora para dentro - corrigir um distúrbio mental e/ou comportamental - que, obviamente, se produz de dentro para fora? Parece evidente que os medicamentos psicoativos têm indicação e uso extremamente indispensáveis em certos quadros neuróticos graves, tais como, depressão e fobia social severas, síndrome de pânico, insônia rebelde, pensamentos suicidas, etc., mas, de modo geral, parecem atuar mais em cima da sintomatologia do que da etiologia desses transtornos emocionais. Mas, fora disso, eles são, como querem alguns, meros paliativos para uma doença da alma, cuja causa remota até mesmo o próprio doente pode desconhecer?
Somente o tempo e os avanços da Medicina Humana poderão nos elucidar tais questões.
No que concerne à conversão religiosa, posso argumentar com a minha própria experiência. Minha mãe, espírita militante, irritava-se com o que chamava de orgulho e teimosia da minha parte, por não aceitar que era vítima de uma obsessão espiritual e que precisava tratar-me em sessões espíritas. Mas estava certa somente numa coisa: eu não aceitava mesmo tratar-me em sessões espíritas, porque, sempre agnóstico, me faltava a fé necessária para ser militante de qualquer religião. Mas eu admitia pacificamente a idéia da obsessão espiritual - já que inacreditáveis incidentes da minha conturbada vida me faziam suspeitar que havia uma sombra inteligente influenciando negativamente alguns acontecimentos. Mas, como já disse, me faltava a necessária fé para a frequência habitual aos templos espíritas; além disso, a obsessão espiritual é uma hipótese filosófico-religiosa, fato que, aqui e ali, batia de frente com a minha fria racionalidade.
Mas, quando cheguei ao AA me disseram simplesmente que se o meu problema fosse igual ao deles, eu era um doente alcoólico e impotente - para toda a vida - para ingerir o primeiro gole de bebida alcoólica e que, cada fez que eu o fizesse, com certeza experimentaria desagradáveis consequências. Meu insuportável racionalismo e o meu orgulho de intelectual recusaram-se inicialmente a admitir que a simples ingestão de um copinho de cerveja poderia desencadear em minha mente uma imperiosa necessidade de beber mais até embriagar-me e causar problemas. Contudo, isso não era uma hipótese, nem uma teoria, era um fato científico: o descontrole alcoólico é irreversível e incurável; portanto, cada triste vez que o desafiei, resvalei pela sarjeta da embriaguez. Que mais provas eu poderia exigir para ter certeza de que a minha incapacidade para usar o álcool é tão orgânica quanto a incapacidade do diabético para usar o açúcar? Nenhuma mais! Por isso, tornei-me definitivamente sóbrio em AA.
De qualquer modo, é somente a partir do momento em que o doente corajosamente resolve buscar toda a ajuda disponível para libertar-se da cruz da sua dependência química ou descontrole emocional, é que estará dando início – talvez sem o saber – a uma experiência espiritual transformadora capaz de levá-lo com segurança à maior das vitórias: a vitória sobre si mesmo.
"Se vir algo faiscando na areia, abaixe-se e pegue. Pode ser um caco de vidro ou uma pérola. Mas você nunca saberá se não a pegar.” (Will Randall)