A Vida
"Antes era tudo vazio, uma imensa noite. Então Tupã criou o firmamento e as águas, e desceu lá de cima, no meio da enorme ventania. Tocou as águas, apareceu o sol e rachou sua pele, que se estendeu sobre as águas formando as terras. Pegou Tupã a mistura da terra com a água e moldou gente, que começou a falr quando Tupã soprou em sua boca".
Mito da formação do mundo, dos ídios Nheengatu, Amazônia, Brasil.
Um dia, talvez, a maioria dos seres humanos tenha se perguntado: de onde vim?, quem sou eu?, para onde vou, o que é a morte? Ora, estas são as perguntas filosóficas relacionadas ao existencialismo, ao humanismo. Em termos, tudo aquilo que podemos conhecer, embora nosso único referencial seja nós mesmos. Em todo caso, essas perguntas, na verdade essa grande curiosidade humana intrínseca ao seu comportamento biológico, é que deu origem à filosofia e à Ciência como a conhecemos hoje.
Repare que a Ciência tenta exatamente buscar um lugar para o ser humano no complexo da existência. O estudo dos átomos, do cosmo, das forças físicas, químicas e do ambiente terrestre, é nada mais senão a tentativa de explicar a curiosidade inata humana. Por isso talvez, a religião trave uma certa disputa com o meio científico, já que ambas elucidam as mesmas dúvidas de vários e diferentes modos.
Algumas dessas perguntas primordiais: quem sou eu, de onde vim... são filosóficas ou religiosas dependendo do modo como se elabora a questão. A pergunta da filosofia é sempre “por quê”, a pergunta da Ciência é “como” (ao invés de perguntar por que existem as coisas, a ciência pergunta como existem as coisas). Tentemos isso com as perguntas acima. Ao invés de perguntarmos “quem sou eu, de onde vim?” (que são referenciais do ‘porque’), substituímos por referenciais do ‘como’, ficando assim “o que sou eu, como vim?”. Pronto, trocando-se o referencial da questão, mas sem retirar o sabor do conhecimento, podemos responder o existencialismo cientificamente.
Para a primeira pergunta “o que sou eu?”, podemos hoje responder com certeza: você é um ser formado por água e proteínas, altamente mecânico, tendo seu mecanismo principal ordenado em sua formação e organizado por sub-divisões de trabalho.
Bem, pareceu um tanto esquisita essa resposta. Contudo, ao respondermos a segunda pergunta, ela se esclarece muito fácil, pois a resposta é sua complementação. Assim, “como vim?”, nos remete à mesma coisa que perguntar, como fui gerado? Como eu funciono?
Ora, essa é a parte mais bonita, prazerosa e misteriosa de se estudar em toda a biologia humana. Em primeiro lugar, é necessário saber que você veio dos genes. Um gene é algo que está dentro das suas células. Comecemos do início. Todos os seres humanos e seres vivos têm genes, então você herdou de seus pais, que herdaram dos pais deles e assim por diante. Você pode até perguntar como é que surgiram os genes, afinal se todo mundo tem, deve ter existido um início. De fato, há cerca de três bilhões de anos atrás, a atmosfera do planeta Terra era muito diferente. Muito gases faziam parte em grande quantidade, como metano, amônia hidrogênio e água. Também existiam descargas elétricas, resultantes de tempestades constantes. Essa combinação foi suficiente para gerar aminoácidos, e por combinação, proteínas. Essas se estruturaram de diferentes formas e se uniram a uma substância chamada carbono, capaz de formar cadeias enormes e dar estrutura a essas moléculas. Conforme esses compostos foram se desenvolvendo, eles passaram a se copiar, ou seja, surgiu um composto que, facilmente, por recombinação, podia copiar a si mesmo, dando origem a muitos outros compostos (moleculares) iguais a ele.
Surge assim o que hoje se chama de gene. E os genes estão agrupados em cadeias muito grandes, chamadas de DNA. Esses genes copiavam a si mesmos e organizavam meios de captar energia e utilizar essa energia para eventuais necessidades. Eles não se copiavam perfeitamente. No mundo molecular, as coisas são sempre caóticas, porém buscam sempre a estabilidade. Esse é o segredo de toda a vida. A busca pela estabilidade fez com que, ao se duplicar, uma cadeia de DNA podia sair alterada em uma minúscula molécula (ou em várias) dependendo das condições em que foi feita a duplicação. Essa modificação, obviamente, dava origem a uma cadeia diferente, um ser diferente, dependendo de quantas cadeias ele teria. Esse ser podia morrer (ou seja, a cadeia poderia não durar) se a mudança não o deixasse preparado para o ambiente. Mas esse ser podia também sobreviver melhor do que os outros, se a mudança o deixasse mais “forte” no ambiente que os outros. Assim, ele poderia inclusive, se reproduzir mais, deixando mais de si mesmo (descendentes) e eliminando os menos desenvolvidos.
Isso tudo acontecia no nível molecular, esse DNA e as proteínas que ele produz para sobreviver, nada mais são do que amontoados de hidrogênios, oxigênios, carbonos, fósforos e nitrogênios. Outros componentes foram se aglomerando se fosse necessário. Uma proteína ou DNA que saísse “diferente” poderia ser defeituoso e morrer ou melhor adaptado e conseguir englobar mais moléculas e sobreviver.
Repare que aqui já uso os termos “morrer” e “viver”, é nesse ponto, de proteínas e formação de DNA que a Ciência admite que se formou a vida. A “vida” é nada mais do que a sobrevivência do gene durante o passar do tempo. Os genes foram se especializando e se amontoando, de acordo com as necessidades. Do mesmo modo que um dia foram capazes de elaborar uma célula ao redor deles (uma capa protetora), os vários genes que atravessaram bilhões de anos na formação do ser humano, também elaboraram uma “capa” protetora para si. No caso, a capa protetora somos nós. Nosso corpo, nossas ações, modo de vida, tentativa de sobrevivência, inteligência e capacidade para raciocinar, são a capa protetora que os genes elaboraram para se manterem vivos e continuarem a se reproduzir. Espertinhos esses genes!
Agora ficou fácil retomar o assunto de como você funciona. No seu corpo existem milhões de células. Cada uma contém uma cadeia de DNA. Nesta cadeia estão os genes e em cada célula funcionam o gene necessário para a sobrevivência daquela parte do organismo. Por exemplo, no olho, existem as células que formam a estrutura do olho. No núcleo dessas células, está toda a cadeia de DNA da pessoa (ou seja, todos os genes), mas eles não funcionam todos, somente os genes responsáveis pela manutenção das estruturas do olho. Assim é também nos músculos, no fígado, no estômago, enfim, em todos os órgãos. Os genes são tão econômicos no gasto de energia que, com o tempo, eles se especializaram e hoje, num corpo pluricelular, cada qual tem sua especialidade.
Mas não é sempre assim. Quando é fecundado o óvulo, se forma a vida. Junta-se metade do DNA do pai com metade do DNA da mãe e forma-se um novo ser, de DNA completo. Isso se dá porque no momento de se formarem as células de reprodução (os gametas), elas se dividem meióticamente, ou seja, com a metade do DNA de cada reprodutor. Ao se unirem, metade e metade, forma-se uma vida por completo. Essa nova vida ainda não tem seus genes especializados, afinal, nem sequer existe um corpo, apenas umas poucas células que começam a se dividir rapidamente. Essas células são as famosas células-tronco, por isso são tão requisitadas para a pesquisa e cura de doenças, elas podem se transformar em qualquer célula do corpo. E é o que acontece, pois conforme elas se dividem, vão dando forma à nova vida.
No nascimento, o novo ser já realiza por si só a síntese de suas próprias proteínas, podendo sobreviver como um organismo à parte. A síntese de estruturas é ordenada pelos genes. Tudo o que for necessário para a sobrevivência do gene deve ser feito. Assim, é necessário que cada gene controle seu setor corporal fabricando as proteínas necessárias. Ora, são as proteínas a grande resposta da vida. Os genes estão no núcleo da célula e de lá não saem. Eles apenas ordenam a coordenam o funcionamento da estrutura. Obviamente não fazem isso do nada. A coordenação genética é muito simples, e talvez a mais simples de todas as ações corporais. Para atender às necessidades da célula e do corpo, o gene tem de sintetizar uma proteína, ou seja, fabricá-la. Para isso ele duplica a informação contida nele mesmo. Deve-se compreender que os genes são depósitos de informações. Eles são formados por um fosfato (oxigênio e fósforo), uma pentose (sacarídeo advindo de energia solar, formado de carbono, oxigênio e hidrogênio) e uma base nitrogenada (nitrogênio, oxigênio, hidrogênio e carbono). Sob algumas poucas combinações, esses elementos têm a capacidade de “informar”, de guardar uma espécie de memória, de acordo com as diferentes combinações de seus átomos (que não são tão diferentes, já que formam apenas cinco tipos de bases nitrogenadas e dois tipos de pentoses).
Em todo caso as bases nitrogenadas (esses cinco tipos) se agrupam de dois em dois e formam infinitos, sim isso mesmo, infinitos modos de arranjo, já que não existe um arranjo específico. Um única base pode se repetir apenas uma vez, ou duas, ou dez, ou quem sabe milhares. Até hoje alguns arranjos foram estudados pela Ciência, o chamado (e famoso) código genético. Em todo caso não há uma regra específica para a vida em geral.
As bases se repetem, resumidamente, para guardar essas informações necessárias ao funcionamento de seu setor na célula. Quando é necessário executar algum serviço (praticamente o tempo todo) elas elaboram as proteínas. O DNA copia uma seqüência do gene que tem a informação que a célula precisa, copia também outra seqüência do gene que fabricará uma estrutura para carregar aminoácidos e copia outra estrutura para fabricar um molde que servirá como guia para os aminoácidos.
Veja que o DNA copia três seqüências diferentes de gene. Elas não necessitam estar próximas umas das outras, podem estar muito longe ou não. Essas três seqüências, uma é realmente a informação para se fabricar a proteína (mas repare que as proteínas são feitas de aminoácidos), então outra é para pegar os aminoácidos necessários que estão espalhados pela célula. Mas informação e estrutura não fazem nada sozinhos, então ele fabrica ainda uma outra seqüência, uma espécie de guia, para ler a informação e juntar os aminoácidos da maneira correta, formando assim a proteína que o organismo precisa. Essas estruturas que o DNA copia de si mesmo, são chamadas RNA. O que leva a informação é o RNA-menssageiro, o que transporta aminoácidos é o RNA-transportador e o que guia a construção é o RNA-ribossômico.
Eu imagino que essas são (ou foram) palavras que assustam as pessoas. Mas como foi demonstrado, são extremamente simples e passam muito conhecimento sobre o ser humano e também sobre todas as outras formas de vida. Afinal, até mesmo o susto que tomamos quando se fala em DNA e RNA advém das proteínas neurais, fabricadas por eles. E este é o segredo, ou parte dele, de nossas primeiras dúvidas existencialistas, quando ainda nossos antepassados viviam nas primitivas sociedades, mas com a mesma curiosidade olhavam para o céu noturno e se maravilhavam diante da imensidão do mundo ante a pequenez do homem. Assim como da grandiosidade da vida diante da contradição misteriosa da existência.