Disputas Teológicas II: Questões de 6 a 9 sobre diabo, inferno e prazeres
II.
6. O que é o diabo? O diabo é um artifício retórico muito eficaz. É o bode expiatório onde depositamos a culpa de todas as nossas faltas. Não se enganem, o diabo existe, mas pior que o diabo é o ser-humano que não tem a humildade de assumir seus próprios erros e seus próprios pecados.
Peça a Deus para que Ele lhe mostre o inimigo, e Ele te colocará em frente ao espelho. O diabo em nós é tudo aquilo o que nos afasta do reino de Deus e do caminho do amor, são as nossas boas ações que escondem as intenções perversas. Pisar na cabeça da serpente é limpar do teu corpo e da tua mente tudo aquilo que te afasta da graça misericordiosa de Deus.
7. Céu e Inferno não importam. Não merecemos nem jamais mereceremos o Reino dos Céus, não existe nada o que possamos fazer para nos tornar merecedores, a nossa condição de miserabilidade ontológica é incurável. Ainda assim, porque somos salvos? Pela graça de Cristo, Nosso Senhor. As sagradas palavras de Deus nos ensinam que a fé e o arrependimento são as chaves para o Reino.
No entanto, não devemos ser mesquinhos o suficiente a ponto de achar que alcançaremos a graça de Deus, ou que sabemos quem estará lá ou não. Céu e Inferno não importam porque seremos julgados por nossas ações na terra. Mirar no céu jamais será o suficiente, porque jamais o mereceremos, nada pode nos justificar, não existe nada que possamos fazer para que tenhamos o céu como recompensa. Nossa recompensa é o inferno, mas podemos ser agraciados com o Reino da Luz.
Devemos amar, fazer o bem e sermos misericordiosos não para alcançar uma recompensa que não merecemos, mas porque essas coisas são boas por si mesmas e compensatórias por si mesmas. Se Deus aparecesse na sua frente e lhe dissesse: “você vai para o inferno, está decretado, não há nada que você possa fazer para mudar isso” você deixaria de ser cristão? Se a resposta for sim, seus valores devem ser repensados. Já somos suficientemente agraciados por Deus pela capacidade incutida em nós de amar-mos uns aos outros e fugirmos do pecado, os ensinamentos de Jesus já são generosos o suficiente. Realmente importa o céu ou o inferno? Realmente importa mirar numa recompensa que não merecemos? Devemos amar, fazer o bem, ser generosos e misericordiosos independentemente de júbilos ou recompensas pois essas coisas trazem para a nossa vida o valor da eternidade.
Não queremos ir para o inferno, mas sabemos que o julgamento que receberemos, qualquer que seja, será justo. Viva sua vida fazendo o bem sem esperar uma recompensa (porque você nunca merecerá). Mire no bem, mire no amor, se você vai pro céu ou não, só Deus pode dizer isso.
8. Não ser casto não significa ser pecador. Os prazeres não são bons ou maus. Deus criou também o prazer, mas os excessos não são criações de Deus. O sexo é o movimento através do qual as criaturas se aproximam e se conectam, tornando-se uma só carne, honrando-se mutuamente e aos desígnios de Deus. Não existe pecado em um sexo seguro, respeitoso e consentido, que respeita ao corpo, desejo e dignidade de todas as partes envolvidas. No entanto, via de regra, somos cativos de nossos prazeres. Não é incomum que desejamos utilizar uns aos outros visando os nossos próprios desejos, nesse processo somos cativos de nossas satisfações e tornamos outras pessoas cativas a nós. Devemos sempre mirar naquilo o que tem valor de eternidade, dirigindo nosso corpo, mente e espírito nessa direção, o sujeito que não conhece os valores eternos facilmente se tornará cativo dos prazeres sexuais. Aquilo que aprisiona o corpo, aprisiona também o espírito, aquilo que liberta o corpo liberta também o espírito. Por isso a castidade e a temperança são virtudes louváveis, para além de todo o prazer sensível deve-se pôr o amor como estrela-polar, o amor a Deus é o meta-valor que valoriza todas as outras coisas e nenhum prazer deve estar acima disso, não se deixar ser cativo dos prazeres sensíveis é uma virtude, mas abdicar dos prazeres sensíveis em função dos valores eternos é uma virtude entre as virtudes.
9. Os vícios nos afastam de Deus. O amor é a liberdade, e Cristo veio para nos libertar. O homem é aprisionado o tempo todo e encontra correntes em todos os lugares, tornando-se cativo do corpo e dos prazeres, no entanto, o corpo e os prazeres são finitos e toda a satisfação que vem pela via material aprisiona e reduz a condição humana. Esses preceitos estão presentes em outras religiões, como no gnosticismo, no budismo e no hare krishna. No peito do homem há um vazio infinito, e só Deus pode preenchê-lo, pois só Deus é infinito. Toda outra forma de preencher esse vazio é uma forma de aumentá-lo, pois quando não preenchemos o nosso vazio com amor, tentamos preenchê-lo com outros vazios.
Deus está naquilo o que nos preenche, naquilo o que ultrapassa a nossa condição faltosa e nos conecta com a eternidade. A verdadeira liberdade não está em fazer o que você bem quiser, pois o resultado irrefreável dessa disposição é sentir-se ainda mais vazio e ainda mais faltoso. A verdadeira liberdade é estar para além de todas essas coisas e viver sem correntes, de peito cheio.
O cigarro e a pornografia são dois exemplos eficazes de como preenchemos nossos vazios com outros vazios. A princípio, são artifícios que trazem imensa satisfação, as doses de nicotina do cigarro, que está sempre à disposição preenchem as lacunas que encontramos em nosso cotidiano. Estou entediado? Cigarro. Estou triste? Cigarro. Estou feliz? Cigarro. Tomei café? Cigarro. Logo o prazer que eu adquiri com um cigarro, passo a adquirir com dois, e depois com 4, e depois com uma carteira inteira em um único dia. Logo não é mais possível lidar com as simples disposições humanas sem um cigarro na boca, viver o tédio sem o cigarro se torna insuportável, viver a alegria sem um cigarro se torna insuportável, o cigarro é um dos prazeres que possuem imensa gravidade: fazendo tudo girar ao redor dele. A liberdade está em viver o tédio, a tristeza, a alegria e o café da manhã sem essa muleta química do cigarro (ou de qualquer outro tipo de prazer), tendo o amor como aquilo o que conforta e preenche o peito, e nenhuma coisa a mais.
Baudelaire escreveu sobre os paraísos artificiais: os “baratos” que alcançamos com as drogas e a imensa quantidade de prazer que elas trazem. De fato as drogas e os prazeres sensíveis trazem um satisfação, que, no entanto, são finitas e limitadas. Devemos dirigir nosso corpo não em direção aos paraísos artificiais, mas em direção aos paraísos reais: os efeitos e a graça do Espírito Santo: o amor, a liberdade, a paz, a misericórdia, a generosidade, a comunidade, a humildade, a justiça, a prudência, a caridade, a fé, a esperança e a temperança. Essas virtudes nos aproximam e honram a Deus, ampliando a nossa condição de ser humano e derramando sobre o próximo as graças eficazes do amor e da misericórdia divinos.