A atualidade de um tema: “Reflexão teológica numa sociedade de gratificação imediata”
Preâmbulo:
Escrevi sobre a gratificação imediata pela primeira vez em 2000, naquele ano o tema me parecia relevante. Era uma realidade que tinha todo o potencial para ser o novo normal para a maioria das pessoas, notadamente aquelas frequentes e que referenciavam sua vida cotidiana a partir da adesão e prática religiosa. Percebo, hoje, que minha intuição não estava equivocada.
Abaixo retomo na íntegra o artigo, e mesmo reconhecendo algumas de suas limitações, considero que seguem válidas as proposições nele apresentadas. É óbvio que desde então ‘muita água correu por debaixo da ponte’, portanto, há autores que aprofundaram e deram novas perspectivas a este tema, mas isso será abordado num outro artigo.
O artigo:
Queremos, neste artigo, de forma resumida, apresentar algumas de nossas inquietações com a sociedade em que vivemos. Com maior ou menor intensidade, reproduzimos valores e costumes impostos a partir dos centros dinâmicos da economia, da ideologia e do poder. Este fato nos relaciona, de uma forma subalterna, com os países do Primeiro Mundo e, de um modo geral, nos torna periferia econômica na nova, e velha, ordem neoliberal.
A vivência da fé é fundamental para a definição de nossa identidade, pois, a busca de Deus e da realização de sua vontade são critérios básicos que construímos em nossas comunidades e, em última análise, são indicativos daquilo que entendemos como essencial à plenitude humana.
Buscar a Deus numa sociedade sem coração, sem compaixão, muitas vezes lembra a atitude de Dom Quixote a ferir moinhos de vento, pensando atacar gigantes. Contudo, para homens e mulheres que dedicam sua vida à construção do Reino de Deus, o momento presente é espaço de busca incessante de coerência e fidelidade a Jesus.
O artigo está dividido em 4 partes, sendo que primeira refere-se à elaboração teológica, situando seus limites e possibilidades. Já a segunda parte nos põe a questão da pertinência teológica num contexto de modernidade e pós-modernidade.
Na terceira parte deste artigo, nos perguntamos pelas utopias que podem acalentar nossos sonhos, mas, principalmente, podem ser instrumentos poderosos de resistência ao sistema neoliberal e suas práticas de exclusão e morte das maiorias.
A teologia da prosperidade é o tema da quarta parte deste artigo. Teologia esta que reproduz na relação entre riqueza e bem estar pessoal, a certeza de uma ação favorável da divindade a nosso favor, mas que por outro lado, demoniza as situações que impedem o acesso aos bens materiais, sem entretanto, visualizar as relações socioeconômicas que fundamentam a inserção humana no próprio mercado.
É a teologia da prosperidade que transparece numa compreensão da vida como realização de desejos consumistas. O desejo não é uma expressão negativa de nossa humanidade, mas, quando criado e alimentado como fruição de bens materiais ou de obtenção de satisfação a qualquer preço, torna-se pecado, sinal inconteste da presença demoníaca entre nós.
Finalizamos este artigo com a afirmação de que a teologia tem um papel a desempenhar nesta sociedade de gratificação imediata. O desafio posto às teologias cristãs está em conservar a memória perigosa de Jesus, como referência fundamental para a prática comunitária e social, bem como, continuar a afirmar uma transcendência que não se esgota no imediato, mas que se abre à plenitude com Deus na vida eterna.
Teologia: aclarando o conceito
A teologia é sempre uma reflexão sistemática sobre o sagrado, onde o conhecimento de (os) Deus (es) e do conjunto de práticas religiosas fundamenta uma relação de salvação. Na teologia encontramos a elaboração teórica de práticas já em curso nas comunidades de fé.
A teologia não ocorre no vazio; ela, de fato, está sempre situada num contexto histórico e social específico. O pensamento teológico reflete as intrincadas relações entre a busca de fidelidade e o quotidiano de homens e mulheres que ‘temem a Deus’. Toda teologia, nesse sentido, carrega a limitação de conjuntura, mesmo que esta seja de longa duração.
As conjunturas de longa duração, na percepção histórica tem relação direta com mentalidades. Uma história das mentalidades costuma trabalhar com lapsos de tempo acima de século, e considera o ‘espírito de época’ como o pano de fundo onde se desenvolve a vida social, econômica, cultural e religiosa.
A teologia, portanto, é sempre aberta ao presente, pois ele deverá ser interpretado, colocado à luz do conjunto de afirmações que constroem uma vivência religiosa. Assim, a teologia não afirma verdades abstratas, mas conceitos que existencialmente sejam significativos para os fiéis. Refletir teologicamente implica fundamentalmente colocar-se em sintonia com ‘os sinais dos tempos’.
Isto não significa que exista somente uma teologia em curso no presente, pois há teologias em igual proporção às religiões e correntes de pensamento existentes em cada religiosidade. O plural ‘teologias’ é mais coerente com a realidade existente, sendo o papel desempenhado por cada uma delas sempre relativo à importância e força institucional de seus adeptos.
Dentro de uma eclesialidade, por exemplo, o catolicismo no Brasil, interagem conflitivamente diversas correntes de pensamento teológico. É evidente que há sempre uma teologia que expressa o discurso oficial da instituição, existindo também expressões teológicas complementares a este mesmo discurso.
As teologias marginais refletem grupos dentro de uma instituição religiosa, com práticas e valores divergentes em relação à proposta eclesial dominante. Estas teologias quase sempre refletem grupos que disputam o controle da instituição, mas não conseguem impor sua hegemonia. A teologia do negro, do índio, da mulher e da libertação são compreendidas na atualidade como teologias marginais no contexto católico romano.
Teologia em tempos pós-modernidade
Na modernidade, o discurso científico tornou-se basicamente instrumental, construído a partir da experimentação e do estabelecimento de verdades tangíveis. A racionalidade está em construir verdades em cima de experimentos, a partir dos sentidos e controlável pelo homem/humanidade, considerado o único sujeito capaz de atos reflexivos.
A teologia, numa concepção positivista, ficou relegada a um passado que necessariamente estava sendo superado. Religião, superstição, mito, tríade símbolo do atraso, do primitivo e arcaico modo de pensar impulsionado pela igreja com suas teologias. A própria modernidade construiu seus mitos, tais como o progresso, a verdade científica como inquestionável, o evolucionismo social, a razão como instrumento capaz de decifrar qualquer mistério, a sociedade sem classes, o mercado, o super-homem etc.
Sem afirmar o discurso teológico das igrejas, principalmente naquilo que eles tinham de transcendente, a modernidade teceu utopias sociais a partir do triunfo da ciência e um paraíso sem Deus. Mas isto não se tornou realidade para toda a humanidade e, pelo contrário, lançou o ser humano em duas grandes guerras mundiais e gerou o sistema neoliberal.
Há possibilidades sociais de bem-estar, alimento e tudo o mais que o ser humano necessite, entretanto, não há ações concretas que ponham isto a serviço de toda a humanidade. Os avanços da ciência e da técnica são oferecidos a parcelas selecionadas, consumidoras de um mercado exigente e em expansão. A grande maioria vive à margem desta ‘realidade’, e quase sempre gasta sua existência na luta diária por continuar vivo.
Para construir o conceito de ser humano na modernidade, perdeu-se a noção de Ser e sua totalidade. Morin afirma que:
“Até há uns 20 ou 30 anos, a ciência clássica havia desintegrado o cosmos, havia desintegrado a vida dizendo que a vida não existia, que há moléculas, comportamentos, gens, mas, a vida? Que é isso? Não a conheço...desintegraram o problema global e inclusive o homem, posto que, definitivamente, podia considerar-se o homem como um objeto indigno do conhecimento especializado, quase uma ilusão.”
Teologias e utopias
O ser humano sempre reagiu diante da realidade que o oprimia e, para tanto, forjou complexos sistemas sociais e, ao mesmo tempo, elaborou o não lugar (u-topos) onde sempre se poderia sonhar com um mundo diferente, geralmente alcançável pelo esforço e merecimento de indivíduos ou grupos. As utopias sociais, generosamente apontavam para uma felicidade futura, mesmo que no presente ainda houvessem privações, lutas e o Estado ainda fosse um tutor da sociedade.
Atualizando minhas considerações
Olhando da janela, disponível para mim em 2024, percebo as conexões entre gratificação imediata e teologia da prosperidade. Constato, também, que as práticas comunitárias geradas por este horizonte teológico sustentam posturas extremamente conservadoras – na moral e nos costumes -, e sustentam no horizonte da política posicionamentos que estão no campo da direita e até mesmo da extrema direita no Brasil.
Na prática a comunidade tem menor importância que o indivíduo e a salvação por ele almejada. É no indivíduo que reside o ato de fé e o efetivo reconhecimento por parte de Deus de sua fidelidade. Reconhecimento esse que está presente em suas conquistas materiais (bens, riqueza, beleza, felicidade). Acreditar aqui é colher no imediato os resultados.
A utopia do Reinado de Deus trazida por Jesus é lida neste contexto sem nenhuma incidência sobre a sociedade e/ou os outros que não façam parte da comunidade/igreja. A salvação é do individuo e, o único coletivo significativo, é aquele resultante do conjunto de indivíduos que interpretam a realidade no mesmo horizonte teológico e, vivenciam social e culturalmente estas ‘verdades’.
Os que estiverem fora deste horizonte – enquanto não se converterem – tem a danação eterna (o inferno e o demoniáco) como único resultado construído ao longo de sua vida.
As utopias presentes nas teologias marginais, obviamente, rechaçam totalmente a ideia de gratificação imediata e tudo o que teologicamente está nela presente. Utopias nascidas no contexto da resistência necessariamente articulam o coletivo como lugar de salvação, o indivíduo que se torna parte de um povo, parte de um processo de transformação social. O Reinado de Deus não está – em sua plenitude – entre nós, mas em semente germina nas praticas sociais e comunitárias que buscam o bem viver, o usufruir dos bens e serviços para todos.