ENSAIO DE ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO E PSICOLOGIA INSTITUCIONAL: O FENÔMENO DO POLICATOLICISMO E DO SINCRETISMO CANÔNICO NO BRASIL

A todos que lêem este texto e a todas as igrejas, que a paz e a graça de Deus Pai e de Nosso Senhor Jesus Cristo e o amor da virgem Maria estejam com todos vocês agora e para sempre.

As impressões que norteiam este ensaio procedem de múltiplas referências, a principal delas são as impressões que atravessam a minha conversão ao cristianismo e a minha aproximação com o catolicismo. Alinhadas à minha afinidade teórica com os âmbitos da esquizoanálise e da psicanálise lacaniana.

A falta de uma referência única para a escrita deste ensaio (a religião/o catolicismo) pode aborrecer alguns irmãos de fé. Não ligo a quem vou agradar ou desagradar, estou apenas sublinhando fatos no discurso e na cultura da religião que observo através da minha experiência espiritual e antropológica de aproximação com a mesma.

I. Introdução a um Policatolicismo

Alguns dos católicos mais ortodoxos (com o perdão do trocadilho) defenderão uma forma inflexível e invariável de praticar a fé católico-cristã, que chamarão de “Tradição”. A vivência ordinária (isso é, cotidiana e despretensiosa) da fé católico-cristã vai demonstrar que não existe nada mais contemporâneo, novo e artificial do que a tradição.

Tradição é uma invenção a posteriori, que possui como objeto necessário para a sua existência o “contemporâneo”, o “secular” e a ineptidão, é uma resposta dada posteriormente ao posicionamento desses termos que se reifica através da oposição. A tradição não existe anteriormente à contemporaneidade, ela é, também, uma construção social, a verdade é que a oposição entre "contemporâneo" e "tradicional" é uma falsa dicotomia que não reflete adequadamente a complexidade das práticas sociais e culturais do cristianismo no Brasil. A tradição não é uma essência, não existe anteriormente ao “contemporâneo”, mas coexiste com o contemporâneo, a tradição é um produto.

Será que a tradição e o contemporâneo são tão diametralmente opostos? Necessariamente excludentes? A forma como o brasileiro exerce sua fé demonstra algo muito diferente. O que percebemos é uma espécie de comunhão silenciosa dos opostos, esses conceitos, à guisa do que a intuição propõe, estão em constante processo de hibridização e negociação. O que a igreja defende é uma forma única e universal de professar a fé católica, para a instituição, o catolicismo é A Verdade sobre a forma de ser cristão e de exercer o cristianismo, afinal, a igreja católica é a única fundada por Jesus Cristo. O que proponho aqui é algo diferente (alguns chamarão de herético ou subversivo), mas a vivência da fé demonstra que a essência acidental do catolicismo não é A Verdade, mas sim, O Paradoxo.

Paradoxo nos múltiplos sentidos da palavra, tanto a conjugação de termos aparentemente inconciliáveis como uma para-doxa, quanto um conhecimento que se constitui paralelamente a uma referência universal. Katholikós é esse termo que nos apropriamos do grego para dizer “universal”, que é aberto a todas as nações, com um Deus que não está no templo, mas nos céus, à vista e à disposição de todos. Ora, o universalismo demonstra ter, como consequência necessária, a implosão do particular e até mesmo do contingente quando analisamos as condições socio-culturais dessa universalização. A extensão do catolicismo sobre o globo implica o seu encontro direto com diferentes culturas, costumes, religiões, éticas e regras, espera-se o triunfo da tradição sobre a divergência cultural, mas o que existe de fato é um processo de hibridização entre opostos, a criação de doxas paradoxais, formas novas e inesperadas de se professar a fé que são atravessadas pela diferença e pela oposição.

A tradição se sustenta, via de regra, através de processo de violência e opressão, quando a máquina “celibatária” não opera cortes nos fluxos, eles afluem de tal forma a potencializar a máquina híbrida, de tal forma que o tradicional e seu oposto se confundem e se complexificam, de modo que seus limites se tornam borrosos. Nas regiões não-europeias onde o catolicismo se estendeu, é isso o que percebemos: para-catolicismos, neo-catolicismos, o surgimento de formas alternativas de professar essa fé, além da referência aparentemente monolítica da igreja vaticana. Isso não é um acidente (só para aqueles que acreditam na tradição como termo apriori da operação) mas um modo intrínseco do funcionamento de uma instituição que busca um modo de operação universal.

Pensei em chamar esse fenômeno de esquizocatolicismo, devido ao seu caráter fragmentário, essa nomenclatura, no entanto, poderia remeter ao rizoma, esse meta-sistema aquém de toda referência. A verdade é que esse modo de funcionamento não é rizomático, pois o rizoma aflue na diferença, na criação do impossível, enquanto esse modo de funcionamento de que falo continua possuindo uma referência que conflui os fluxos e o funcionamento das máquinas: Jesus. Essas para-doxas católicas são rizoformes, mas não rizomáticas, são raízes fasciculadas que sim, se estendem no Plano de Imanência, mas através de uma referência transcendental (a máquina-Jesus), não criando necessariamente multiplicidade. Portanto, um termo mais apropriado para o fenômeno seria o de policatolicismo.

II. Religião como Instituição

O policatolicismo não constitui novidade nem criação de nada, é apenas uma mera constatação. E essa constatação se torna ainda mais evidente/esperada quando analisamos a religião lapassadiamente, enquanto uma instituição.

A espiritualidade, a grosso modo, constitui o nosso modo particular de conexão com o Divino, com o Eterno, a religião, por sua vez é uma forma de organizar a espiritualidade. A espiritualidade é fruto de processos que podem ser singulares e singularizantes, a religião é um processo que envolve grupos e estabelecimentos. As formas de conexão com o divino são organizadas segundo normas, regimentos, modos de funcionamento pré-estabelecidos, e instituídos. Enquanto instituição, o modo de funcionamento e criação de verdade das religiões se perpetuam através da repetição. A decalcomania é uma característica do modo de funcionamento institucional.

Enquanto modo de organizar a espiritualidade, se propondo a facilitá-la, as religiões propõem ritos, crenças, práticas sociais, morais, espirituais e comportamentais que podem tanto aproximar as pessoas do divino quanto afastá-las (a depender do seu modo de funcionamento institucional). As experiências das pessoas com as religiões variam, alguns afastam-se da religião sem possibilidade de reconciliação, outros vivem-na do início ao fim da vida, outros a encontram no caminho. Os processos de repetição próprios das instituições podem ser sentidos como opressivos pelas pessoas que vivem o modo institucional, a instituição é uma verdade que precede o sujeito e o inclui sem seu consentimento, a falta de liberdade nesses espaços (religiosos ou não) podem suscitar revoltas contra o sistema (formas paralelas de funcionamento, escoamento grupal etc).

As instituições buscam ser totais, seu objetivo é a manutenção do poder, de fato é isso o que o poder deseja: poder. Aqui não se trata de maniqueísmo, de dizer que as instituições são boas ou más, que as religiões são boas ou más, que o catolicismo é bom ou mal, minha proposta é esquizodramática. Esquizo porque me preocupo sobre COMO esses modos funcionam e dramática porque bem… eu sou dramático. As instituições não são físicas, a instituição religião não está na igreja, no terreiro ou nas florestas, a esses espaços damos o nome de estabelecimento, ao modo de funcionamento dos estabelecimentos chamamos de organização, e ao modo de funcionamento e constituição interna das organizações chamamos de grupos. Instituições são processos sociais através dos quais se perpetuam saberes e modos-de-saber que possuem a função de verdade.

Porque eu disse tudo isso? Porque dentro de um estabelecimento ou de uma organização nem todos estão satisfeitos com o que está instituído, nem a todos convém os processos de instituição da verdade, por mais que esses processos façam a manutenção dos modos de saber (e de se organizar, pois todo modo de saber é um modo de se organizar e vice-versa) existe sempre algo que escapa. A instituição se propõe como um monólito, um obelisco intransponível, inamovível e invariável da verdade, mas existe sempre algo que escapa pelas arestas. É esse escoamento, esse processo de revolta que nos interessa aqui.

O que isso tem a ver com o catolicismo? Ora, do ponto de vista da psicologia institucional, é próprio aos modos de instituição, os modos de revolta. A instituição dispõe cortes nos fluxos, mas esses fluxos têm um caráter autônomo e escorrem para máquinas que estão além da máquina-institucional. A esse transbordamento chamamos de processos instituintes, processos contra-institucionais: outros modos de se organizar, outros modos de ser grupo, outras formas de gerir o estabelecimento, outros saberes para além da verdade instituída.

III. Modos instituintes e modos heréticos

É claro (e esperado) que através da instituição da religião católica e sua - quase - onipresença no espaço brasileiro, haveriam modos instituintes de se praticar e se proferir a fé católica, modos dissidentes, diversos, divergentes, híbridos. Na verdade esses processos existem desde o início do cristianismo, marcado por seitas e sub-seitas que ora foram convertidas pelo amor ora pela espada. Aos modos instituintes de se proferir a fé católica damos o nome de heresias.

As heresias são consequência direta da pretensão universal do modo katholikós, uma verdade não se dissemina sem atravessar um processo dialético de mutabilidade, essa é a característica do movimento, da passagem da potência ao ato. Georges Bataille nos mostra que a interdição suscita a transgressão, de igual maneira, a universalidade (ou katholicidade) suscita a heresia.

A heresia, no entanto, deve ser entendida aqui de maneira desapropriada da gramática católica. Heresia remonta ao grego hairetikós, palavra que significa escolha, uma escolha que acontece voluntariamente. Nesse sentido toda espiritualidade e toda forma de se proferir uma religião tem (ou pode ter) um caráter herético, isso é, um caráter voluntário, um caráter de alguém que busca para si aquilo o que lhe traz maior sentido, melhor direção. Existe heresia no catolicismo, no sentido claro de que, a pedagogia religiosa pode tanto ser imposta (geralmente esses são os modos que afastam as pessoas do divino), quanto podem ser escolhas voluntárias do sujeito. A heresia (escolha voluntária ou modo singular de viver a religião ou o divino) existe independentemente de uma referência. Em algum sentido, toda espiritualidade é herética.

IV. Não importa a sua religião, no Brasil você é católico.

O policatolicismo, portanto, é consequência do catolicismo, como o particular procede do universal, como a potência procede do ato e como as raízes secundárias e terciárias procedem do pivô. Não tenho a pretensão de criticar o policatolicismo, e muito menos o catolicismo. Mas vejo no primeiro destes uma potência singular, modos únicos de se conectar com o divino, com a espiritualidade, com os outros e consigo mesmo. Não é nenhum pouco incomum vermos esse modo: pessoas católicas, que vão à missa, que rezam o terço, que lêem a bíblia, que conhecem as liturgias católicas, mas que também acreditam em rezadeiras, em entidades das florestas, que conhecem as propriedades medicinais (e espirituais) das plantas, que pulam as 7 ondas, que aderem a mística das cores da umbanda, que não concordam com tudo do catolicismo, que acreditam em signos ou horóscopo e que aderem a adornos referentes a outras religiões.

“Não importa a sua religião, no Brasil você é católico” é uma frase atribuída ao sociólogo Sérgio Buarque de Holanda e denota a influência da fé católica sobre a extensão do espaço brasileiro. Alguns dizem, diante disso, que se o Brasil tivesse uma religião oficial, essa seria o catolicismo, mas a realidade é que o sincretismo é a religião oficial do Brasil. Essas misturas, essas hibridizações, esses ciborgues, esses modos novos e alternativos de se ter uma fé foram instaurados através dos processos de colonização e miscigenação do Brasil, a pretensão universal criou a tensão sincrética. Digo tensão justamente como um acúmulo de energia, como uma mais-valia de potência. O policatolicismo é mais comum do que parece, talvez seja até mais comum que o catolicismo.

O que eu defendo aqui, claro, é a tolerância, o respeito e um olhar antropológico cuidadoso com esses modos. Diria que minha pretensão é universalista e portanto, provocativa.

Os policatólicos são menos católicos que os católicos tradicionais? Como, se estes precedem daqueles e aqueles criam estes? A relação entre esses modos de se viver a espiritualidade é muito mais íntima e muito mais misturada do que muitos gostariam de acreditar. Na verdade, raulwrerneck já afirmaram a partir de Bergson que: a mistura é a verdadeira pureza, não existe nada mais puro do que a mistura, a unidade não é outra coisa senão uma dupla tendência que se entrelaça intimamente.

Mistura é pureza: o policatolicismo, no Brasil, tem função de catolicismo e funcionamento de catolicismo. No Brasil, em seus modos de funcionamento e no escoamento de seus fluxos, não existe nada mais canônico que o sincretismo, do que a diversidade.

V. A pluralidade da fé como sinthoma cristão.

V.I A Pluralidade

Uma única religião pode monopolizar Deus? Isso é, um único modo de organizar os ritos e os credos pode ser absoluto de tal forma que todos os outros se tornam inválidos?

São Tomás de Aquino, no argumento LXXII de seu Compêndio de Teologia, vai afirmar que Deus produziu coisas diversas, e que Deus é a causa da pluralidade das coisas:

1 — Se as coisas referem-se à unidade e à multiplicidade como se referem ao ser, e, como vimos acima, se todo o ser das coisas depende de Deus, é necessário que a pluralidade das coisas tenha a Deus como causa. Devemos agora considerar como isso seja verdadeiro (p. 42)

E ele prossegue:

2 — É necessário que todo agente produza algo semelhante a si, na medida do possível. Não seria, porém, possível que as coisas produzidas por Deus repetissem a bondade divina naquela mesma simplicidade em que ela existe em Deus. Foi, portanto, conveniente que aquilo que em Deus é uno e simples fosse representado nas coisas causadas por vários e dessemelhantes modos. É, pois, necessário que haja diversidade nas coisas produzidas por Deus, para que essa diversidade imitasse a perfeição divina, de acordo com o modo de cada coisa. (Ibidem)

A única coisa una só pode ser a Causa Primeira, isso que chamamos de Deus. Pelas operações próprias do funcionamento da natureza, todo agente produz algo semelhante a si. Podemos afirmar que a religião cristã-católica produz algo de semelhante a Deus, a partir do crença em Jesus como fundador da igreja, de semelhante forma, podemos pensar o policatolicismo como uma produção do agente-catolicismo que conserva similitudes e que associa-se, consequentemente, a Deus também.

Isso não é nenhum tipo de escândalo, as coisas criadas por não possuírem a capacidade de refletir com simplicidade a bondade e a grandeza divina se expressarão através da diversidade e da pluralidade, esse é o modo através do qual as coisas criadas podem imitar a perfeição divina. Outrossim, as coisas criadas, pela sua característica de finitude, tornam-se maiores através da adição de outras coisas (a pluralidade/diversidade), a multiplicação de coisas implica na multiplicação de bens, convém a Deus produzir uma multiplicidade de coisas, porque elas multiplicam a multiplicidade do bem, que é o modo como as coisas criadas podem imitar o bem infinito, porém simples e uno de Deus.

A diversidade de credos não difama Deus, mas multiplica Sua bondade. As rotas que criamos para honrar a Deus são diversas, podendo passar pelas instituições religiosas canônicas ou não, os modos de expressar a fé são extremamente particulares e atravessados por características sociais, culturais, políticas e regionais, além das características subjetivas do indivíduo que professa aquela fé. O discurso de uma forma única e incontestável de professar a fé, aliado a uma pedagogia religiosa que falha pode estrangular a multiplicidade do bem adjacente à pluralidade das coisas (e dos credos) de Deus.

V.II A Claritas e o Sinthoma

Em Lacan isso vai aparecer em alguma medida no seminário 23, sobre o sinthoma. O sinthoma, esse neologismo que remete a saint-thomas (São Tomás) vem justamente a quebrar a forma do nó borromeano no qual a sua teoria até então se assentava, propondo uma quarta estrutura numa composição que até então era terciária: o real, o simbólico e o imaginário (a “santíssima trindade” da psicanálise lacaniana). O sinthoma é essa “quarta estrutura” que vem justamente enodar as outras três, que se apresenta como sua condição de sustentação, como um nó propriamente dito. O sinthoma remete a um savoir-faire, um saber-fazer do sintoma. Algo nos diz: esse é seu sintoma, essa é a condição do seu sofrimento, essa é sua fantasia fundamental, sua falta, e nós nos perguntamos: “tudo bem, mas o que eu posso fazer em relação a isso?”. O sinthoma tem uma dimensão estética, trata-se de criar para si um eu-mesmo através do sintoma. Se o sintoma não está ali para ser curado, talvez a sua função seja a de transformação e não a de extinção.

É nessa dimensão estética do sinthoma, do criar para si algo que faça sentido para que seja possível coexistir com o sintoma, que Lacan vai resgatar o conceito de claritas da estética de São Tomás de Aquino. Para o doutor aquinate, claritas é uma das principais propriedades da beleza, é essa iluminação que distingue os objetos belos dos não-belos, tornando-os distintos, é o brilho ou luminosidade recebido pelo aparelho perceptivo que destaca os objetos belos. Em Lacan, claritas se trata de uma forma de iluminar o sinthoma, tornar visível o desejo, é um esclarecimento atravessado por uma revelação de caráter divino, uma revelação que o sujeito permite-se a si mesmo sobre a própria condição. O sintoma diz de algo que o sinthoma permite, esclarece.

De que essa conceitologia da psicanálise serve a esse texto? Ora, estamos analisando a religião católico-cristã no Brasil como uma instituição, e como toda instituição, a religião possui um inconsciente institucional (esse conceito que está em Anzieu, Lapassade, Baremblitt, Loureau entre outros). As instituições são permeadas pelos ditos e pelos não-ditos, existe um discurso que pode fluir e outro que deve ser recalcado. A palavra social, essa que é recalcada, que não é tolerada pelo discurso institucional, no entanto, retorna, escapa pelas arestas. Esse retorno do recalcado, esse transbordamento do não-dito da instituição é o seu sintoma, o seu “problema”, o seu sofrimento. Mas os sujeitos e grupos que participam dessa instituição - que vivem essa espiritualidade, que professam essa fé - têm a liberdade de fazer algo a partir desse sintoma, isso é, desse não-dito, desse algo que a instituição não tolera. O escoamento da palavra social produz os modos híbridos de se proferir a fé: os modos alternativos de ser católico, de ser cristão, de criar para si uma forma própria de se ligar ao divino.

Alguns amam os ritos e os credos, a missa, a catequese e a eucaristia, e está tudo bem, outros encontram Deus (o Deus cristão) no silêncio das próprias orações ou na natureza, e está tudo bem também. Para outros ainda, a espiritualidade e a conexão com o divino é tão particular que não passa por nenhum modo pré-determinado de organização da fé (religião) e seguem a Deus sem se prender a ritos e credos religiosos.

O não-dito escoa, ele produz algo, essa produção tem função de claritas, ela esclarece, é a criação de algo através de uma inspiração transcendental, divina. Cada um encontra para si aquilo o que mais lhe faz sentido, aquilo o que mais lhe apetece, cada um agrada a Deus à sua maneira, cada um se conecta a Deus de sua maneira. Pois Ele é um caminho único, mas as rotas que levam a esse caminho podem ser as mais diversas possíveis. Existem muitas formas de chegar a Deus, existem muitas formas de agradar a Deus, por isso existem tantas religiões, e por isso que, mesmo dentro de uma única religião, existem tantas expressões diversas e distintas de uma mesma fé, e isso não é algo ruim.

A pluralidade da fé, portanto é um sinthoma do catolicismo, é uma consequência esperada de seu modo de funcionamento institucional, é o retorno do recalcado da instituição, é criar com o sintoma, com o não-dito, o lúdico que dança entre o tolerável e o intolerável. A boa transgressão, que cria outras formas de se fazer o bem e de se louvar a Deus. Seria ingênuo esperar que em um país que possui uma extensão tão imensa quanto o Brasil, os mitos e ritos não mudassem. O catolicismo, no Brasil, não é uma religião, mas várias. Existem tantos cristianismos quanto existem cristãos no mundo (e isso é próprio da fé, é sua dimensão singular e singularizante)

VI. O evangelho segundo Dédalo Estevão

Ainda na esteira do pensamento lacaniano sobre religião, Lacan vai pensar as experiências místicas através de dois conceitos principais, que ele chamou de Deus-do-Significante e Deus-do-Real. O Deus-do-Significante é referente às formas sociais de organizar a espiritualidade e a experiência mística, sublinhada pelo modo religioso, essa instituição que já foi extensamente explorada nesse texto. O Deus-do-significante trata-se da experiência mística atravessada e sujeita a normas e regras de um determinado modo social e cultural de se organizar. O Deus-do-Real é o Deus que escapa, é o Deus das arestas, é a experiência mística autônoma, sem referência. Com o Deus-do-Significante buscamos traduzir a experiência com Deus através do simbólico, do aparelho linguístico, dos signos culturais, o Deus-do-Real é o que existe de inominável na experiência com o divino, o que existe de intransmissível e inefável da relação com o transcendental.

Muitas vezes as experiências místicas atravessam as barreiras dos significantes da religião, do que está posto, levam a outros caminhos, mostram outras direções. O Deus-do-Real tem, ou pode ter, a função de sinthoma pro sujeito, uma congruência entre o objeto a e o objeto-Deus. O misticismo infelizmente, sempre estará entre o divino e o diabólico, assim foram acusadas as místicas católicas da idade média, como Santa Tereza D’Ávila. “Afinal, como uma MULHER tem uma contato tão íntimo com Jesus, que direito essa MULHER tem de citar a bíblia?” contestaram alguns padres inquisidores. O gozo místico sempre tem algo de transgressor, porque seus fluxos se dinamizam para além das máquinas sociais e das máquinas de corte.

O catolicismo e o policatolicismo (que em grande medida são a mesma coisa) podem estar em cada uma dessas posições, entre os significantes e o Real, mas mais comumente, o modo católico associa-se ao Deus-do-Significante, enquanto o modo policatólico desliza através do Deus-do-Real, justamente pelo seu caráter de, acidentalmente, questionar a norma no que diz respeito a honrar e glorificar a Deus no campo da espiritualidade.

O personagem conceitual adequado para viver os conceitos de Deus-do-Real, policatolicismo e para se satisfazer através do gozo místico foi aquele que James Joyce escrevera em seu Ulysses, nomeado de Stephen Dedalus. Em Ulysses, Joyce transporta a grécia antiga para a irlanda católica do seu tempo, esse nome aglutina essa dupla temporalidade (a tradição e o contemporâneo, hibridismo), Stephen é um nome que remete a Estevão, primeiro mártir da história da igreja, aquele que foi apedrejado por defender a própria fé, num evento no qual São Paulo estava presente (como agressor e perseguidor cristão na época); enquanto Dedalus remete ao mito grego de Dédalo, herói que criou suas próprias asas para escapar do labirinto em que se encerrara.

Dédalo Estevão é este personagem katholikós, que une referências distintas, épocas distintas, o tradicional e o contemporâneo, o grego e o católico, o universal e o particular, um santo híbrido. Ele poderia gozar ao permitir-se perder-se no labirinto dos significantes institucionais da religião, mas preferiu criar para si asas para sobrevoar as máquinas sociais e normativas, permitiu que as máquinas desejantes produzissem sua espiritualidade de forma um pouco mais livre e autônoma, permitiu-se criar para si uma forma singular de se aproximar do divino (não voando em direção a Ele, mas voando PARA ele). Dédalo Estevão é esse personagem que reitera que existem múltiplas formas de se viver a espiritualidade, de vislumbrar o divino, de honrar a Deus, formas que muitas vezes deslizam de uma referência principal, mas que não são menos válidas ou menos positivas. Dédalo Estevão nos mostra que a diversidade de credos em Jesus está aí para multiplicar o bem, porque o amor ao próximo é a meta de quem segue a Cristo, e não o estrangulamento institucional. Dédalo Estevão nos ajuda a relembrar que espiritualidade é sobre liberdade, que Cristo veio para nos libertar.

Que possamos voar nesse caminho que Cristo nos revela, que a graça, a paz e o amor de nosso Senhor Jesus Cristo estejam com todos vocês!