Da Tradição
(Pelo Cônego Boulanger)
"Isso deixa claro que eles [os Apóstolos] não transmitiram tudo por carta, mas que havia muita coisa que não foi escrita. Como a que foi escrita, a não escrita também é digna de crédito. Então consideremos a tradição da Igreja como sendo digna de crédito. Isto é da tradição? Então, não procure outra coisa" (São João Crisóstomo, Homilia sobre a 2ª Epístola aos Tessalonicenses).
I. Definição. — A palavra tradição (lat. "traditio", ato de transmitir), tem duas acepções. — 1. Em sentido largo, tradição é o conjunto das verdades reveladas por Deus e transmitidas até nós, quer por escrito, quer oralmente. 2. — Em sentido estrito, que é o sentido usado aqui, a tradição abrange as verdades ensinadas por Jesus Cristo e pelos Apóstolos, e transmitidas, de século a século, por outro caminho que não seja a Escritura Sagrada.
II. Caracteres da Tradição. — a) A Tradição é anterior à Escritura Sagrada. Foi a catequese o primeiro e principal modo de ensino empregado pelos Apóstolos. Apenas em circunstâncias excepcionais, enviaram estes às igrejas que tinham fundado, instruções por escrito: as epístolas todas de São Paulo foram exigidas pelas ocasiões. Mesmo o Evangelho era espalhado, de primeiro, só por pregação; mais tarde foi que se lembraram de escrevê-lo. Pensando bem, vê-se que era essa mesma a ordem do Divino Mestre aos Apóstolos. Jesus, com efeito, lhes dissera: "Ide, ensinai todas as nações" (Mt 28,19), e não: "Ide, escrevei o que vos ensinei, e sirvam estes vossos escritos de instruir aos outros".
b) É mais extenso, portanto, o domínio da Tradição que o da Escritura Sagrada. Ao terminar o seu Evangelho, adverte São João "haver muitas outras coisas ainda, que Jesus fez; se alguém as quisesse escrever pormenorizadas, penso que o próprio universo não poderia conter os livros que se haveriam de compor" (Jo 21,25).
c) A Tradição é uma fonte da Revelação distinta da Escritura Sagrada, merecedora, porém, da mesma fé. Artigo de fé definido pelo Concílio de Trento, e depois pelo Concílio do Vaticano [I], Const. de Fide, cap. II. Aliás, não é isso dogma novo: na Igreja, sempre foi a tradição, principal regra de fé. Vai uma prova nos seguintes testemunhos de São Paulo: — 1. "Meus irmãos”, escreve ele aos Tessalonicenses, “sede firmes, e observai as tradições que aprendestes, ou de nossos discursos, ou de nossa carta" (2Ts 2,15). — 2. E a Timóteo: "Os ensinos que de mim recebeste, na presença de muitas testemunhas, confia-os a homens fiéis, que os possam comunicar a outros" (2Tm 2,2). No século III, já retorquia Orígenes aos hereges daquela época: "Muito embora argumentem os hereges com as Escrituras, cumpre não darmos fé nas palavras deles, nem afastar-nos da tradição primitiva da Igreja, nem crer outra coisa senão o que foi transmitido por sucessão na Igreja de Deus".
Logo, será erro pretender, como fazem os protestantes, que somente as Escrituras contém o depósito da Revelação (¹).
III. Principais canais da Tradição. — A Tradição está consignada: — 1. nos símbolos e profissões de fé, nas definições dos concílios, nos Atos dos papas (bulas, encíclicas, decisões das congregações romanas homologadas pelo Papa), — 2. nos escritos dos Padres da Igreja, que são um como eco das crenças do seu tempo. — 3. na prática geral e constante da Igreja. 4. — na liturgia, que encerra as preces e os ritos concernentes ao culto público e à administração dos sacramentos. — 5. Patenteia-se também nos Atos dos Mártires e nos monumentos da arte cristã: nas inscrições, nas pinturas das Catacumbas que reproduzem, entre outras coisas, muitas vezes, o ato do culto eucarístico.
Observação. — Tanto a Tradição como a Escritura Sagrada têm, para intérpretes e órgãos infalíveis, quer o Papa sozinho, quer os bispos reunidos em concílio ecumênico, quer, até os bispos separados e em comunhão com o Papa. Daí resulta que o magistério, ou ensinamento da Igreja, é a regra próxima da nossa fé; a Escritura Sagrada e a Tradição, regra remota. Ou por outra, todo o fiel recebe o símbolo e crenças imediatamente da Igreja e mediatamente da Escritura Sagrada e da Tradição.
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Notas
(1) Há, de fato, dogmas, cuja fonte única é a Tradição; exemplo: Não se pode receber sacramento algum antes de haver sido regenerado pelo batismo. A fonte deste dogma encontra-se na 1ª Apologia de São Justino, e nada dizem, a este respeito, as Sagradas Escrituras. Da mesma forma, é pela Tradição que recebemos muitas práticas e crenças: Assunção da Santíssima Virgem, o sinal da Cruz, a água benta, o costume de batizar as criancinhas, etc.
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Publicado no originalmente em "Catolicismo e filosofia", em 04 mar. 2024.