Reconstruir ou construir um novo Rio Grande do Sul?
O mundo todo fica consternado diante da tragédia que acometeu o estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Tantas mortes, tantos desabrigados, tantas dores! E também atitudes desumanas! Confesso que fiquei acometido por um profundo choque existencial, pois sempre presenciei enchentes. Nunca com essa magnitude. Também nunca vi tanta hipocrisia e instrumentalização da desgraça para objetivos e interesses pessoais. Ao mesmo tempo é lindo ver o crescimento da solidariedade do povo para ajudar os irmãos despejados de suas casas pelas águas revoltas! Como dizia Dom João Batista da Mota e Albuquerque: “Somente o povo pode salvar o povo”.
Hoje só me vem à cabeça as palavras do Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’: a nossa “irmã/mãe terra clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou”. Fomos dominando tudo que vinha pela frente, apropriando de maneira absoluta do solo e das matas, das águas e das encostas. Agora em vez dos variados frutos com flores coloridas e verduras os nossos irmãos gaúchos encontram ratos e baratas subindo pelos telhados das casas.
O pecado vislumbra-se “nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. E entre os pobres abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que geme e sofre as dores do parto”. Nós somos terra, somos água. Somos o ar que respiramos. Contudo, transformamos a terra em propriedade e nos consideramos seus dominadores. Então realizamos um verdadeiro saque retirando-lhe tudo o que lhe pertencia e lhe fazia tão bela e segura. Fomos saqueando dia após dia e hoje, desnuda, não teve mais como conter a força das aguas que caiam dos céus.
A solidariedade é emergencial, urgente e necessária. Contudo, é apenas uma parte de nossa responsabilidade. Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco em mais de trinta vezes nos pede para que cuidemos da casa comum. De nada adianta reconstruir nos mesmos moldes do modelo anterior de ocupação da terra. A tragédia foi preparada ao longo dos anos com o descuidado, com a liberação das encostas, das margens protetoras das águas, com o desmatamento.
A terra se mostrou extremamente fragilizada e por esse motivo a tragédia. A situação no Brasil vem piorando a cada ano. Já esquecemos São Sebastião em São Paulo, Petrópolis no Rio de Janeiro, Mimoso do Sul no Espírito Santo. Amanhã o nosso querido Rio Grande também cairá no esquecimento? E a seca recente na Amazônia? Essas catástrofes deveriam servir para aprendermos a mudar as formas de presença no solo. Com certeza, foi a nossa falta de cuidado da casa comum que propiciou ou agravou a intensidade dessas tragédias.
A construção de um novo espaço para viver requer investir na formação de uma cultura do cuidado em toda a sociedade. Os cristãos, inspirados pela narrativa bíblica da criação, são chamados a assumir a conversão ecológica, não apenas para a preservação da casa comum, mas também para a construção de um novo território sobre os escombros deixados pelas tragédias. Um cuidado que “interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o novo poder” (LS 78).
Uma economia que se apoia na diretriz do maior lucro possível no prazo mais curto, cujos condutores (empresários e governos) não apenas não se importam com as mudanças climáticas, mas negam os efeitos de sua ação predadora, só nos exporá a maiores tragédias daqui para frente. Como barrar a queima de combustíveis fósseis? Como impedir de modo radical o desmatamento de florestas tropicais e construir uma nova sociedade com muito menos consumo do que temos hoje?
Os cientistas estão alertando a todo instante sobre o aumento de temperatura para os países tropicais que devem ocasionar o aumento na frequência e na intensidade dos eventos climáticos extremos como vimos esses. Por ano, o mundo lança na atmosfera 62 bilhões de toneladas de CO2, com crescimento na ordem de 2% anual. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU recomenda uma queda anual de 5% a 7% nessas emissões para chegarmos a zero em 2050.
A lição que ressurge das águas no Rio Grande indica ser urgente mudar a trajetória atual de ocupação das terras, preparar-se melhor para eventos climáticos extremos, pressionar os países para que haja não apenas uma redução como a eliminação na queima de combustíveis fósseis, e fazer o nosso dever de casa que é zerar o desmatamento da Amazônia até 2030. Cuidar da criação depois dessa tragédia também implica na recuperação ecológica dos ecossistemas destruídos nas últimas décadas.
Por fim, caberia uma pergunta: será que o lucro das empresas do agronegócio dos últimos dez anos seria suficiente para reconstruir os espaços devastados pelas águas? Parece-me que o balancete ficará no vermelho. O preço das vidas ceifadas deverá ser embutido na responsabilidade de cada um. Os gritos de morte e de dor ecoam em todos os cantos. Deus, com certeza, nos perguntará no juízo final não apenas onde está o nosso irmão Abel, mas também onde está a nossa irmã terra, a nossa irmã água, o nosso irmão ar.