Sub tuum praesidium

(Por Dom Geraldo de Proença Sigaud, SVD)

Em sua Providência, Deus como Pai amoroso reserva para as épocas difíceis da Igreja recursos especiais. Para nosso século agitado pelo evolucionismo materialista reservou a descoberta da cultura dos povos primitivos, que nos ensinam que a humanidade pré-histórica era religiosa, monogâmica, tinha alto nível moral, respeitava o direito de propriedade e praticava um culto simples, sincero, em honra do único Deus, Pai e Criador do céu e da terra.

Para este mesmo século materialista, a Providência reservou a descoberta de métodos científicos que possibilitam medir a idade do mundo, corroborando o ensinamento da teologia católica, segundo o qual o mundo foi criado com o tempo e este tem duração limitada. Realmente, a ciência estabelece hoje que entre 5 e 10 bilhões de anos atrás teve início na matéria o processo de formação do mundo atual.

Ainda para este século de racionalismo, Deus reservou a descoberta da fotografia de seu Filho morto e sepultado, que contém o Santo Sudário de Turim. E para confundir o racionalismo do homem moderno, fez com que as cavernas da Palestina e as areias do Egito conservassem por milhares de anos papiros que davam testemunho da verdade das tradições católicas, e os devolvessem à luz do sol precisamente neste século de negação.

Mas Deus pensou também na devoção à Mãe de seu Filho, que em nossos dias haveria de sofrer tantas críticas, ser tão menosprezada, e fez com que o deserto guardasse cuidadosamente um precioso documento mariano e o desse de novo à luz em nossa idade, para nos confirmar em nossa devoção à Virgem Santíssima e encher nossa alma de alegria.

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Pelo fim do século passado e começo deste, os beduínos do deserto da Arábia e da Líbia descobriram que os europeus compravam com avidez quantos objetos antigos lhes eram oferecidos. Não apenas estátuas, amuletos, ânforas, mas até velhos farrapos de papiro em que se notavam sinais de alguma escrita. Penetrando nas cavernas e nas sepulturas, ou andando pelas dunas que os ventos do Saara revolviam, encontravam centenas desses fragmentos, que no Cairo lhes rendiam boas libras esterlinas. Foi assim que a célebre “John Rylands Library” de Manchester, na Inglaterra, adquiriu em 1917 um lote de papiros, provenientes de local não determinado do Egito. Os especialistas daquele estabelecimento passaram longo tempo tratando aquelas delicadas membranas, catalogando-as e preparando a sua publicação. Ao cabo de vinte e um anos, em 1938, C. H. Roberts publicou o 3.° volume do “Catalogue of the Greek and Latin Papyri in the John Rylands Library”. Neste volume vinham os “Theological and literary texts”. Entre esses textos teológicos e literários encontrava-se um pequeno e precioso tesouro mariano (1). Era um papiro de 18 cm de altura por 9,4 cm de largura. Escrito em grego, em elegantes letras maiúsculas, estreitas e altas, tinha o lado esquerdo em bom estado, e o direito bastante danificado. Analisando o documento à luz da paleografia, os cientistas o colocavam no século II ou no máximo no século III.

Não deram os editores maior atenção a este papiro, nem se esforçaram muito por decifrá-lo. Mas a Providência tinha já preparado o estudioso que revelaria o tesouro. Em 1939 um Beneditino francês, da Abadia de Chevetogne, D. Feuillen Mercenier, estudando e decifrando os documentos publicados por Roberts, examinou com carinho o pequeno papiro. Logo lhe saltou à vista na quarta linha, à extrema esquerda, que a Providência conservara intacta, a palavra “Theotoke” — Deigenitriz, Mãe de Deus. O Monge estremeceu. Tinha diante dos olhos um texto cristão do século III, talvez do século em que era invocada a “Theotokos”, a Mãe de Deus. Examinou com mais cuidado o texto e verificou com espanto que tinha diante de si o “Sub tuum praesidium” em sua forma primitiva, num papiro quase dos tempos apostólicos.

Não é provável que seja este o exemplar primitivo escrito pelo próprio autor da oração. Deve tratar-se antes de uma cópia destinada ao uso na liturgia ou na piedade privada. A oração mesma deve ser mais antiga. Assim, este pequeno e venerável papiro nos leva, aproximadamente, a cem ou duzentos anos depois de Cristo, e nos mostra como a Virgem Santíssima era invocada pelos cristãos do Egito já naqueles tempos em que a tradição apostólica ainda era tão recente e vigorosa!

Comparando o fragmento achado com as versões do “Sub tuum praesidium” que se usam atualmente no Oriente, Dom Mercenier verificou que a liturgia copta, isto é, egípcia, conserva quase sem modificação alguma a redação do papiro.

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O texto latino, que todos conhecemos em sua forma original ou na tradução portuguesa, perdeu um pouco do vigor e da simplicidade primitiva.

Vejamos o texto grego do papiro reconstituído. Eis a sua tradução:

“PARA DEBAIXO DE VOSSA

MISERICÓRDIA

CORREMOS A FUGIR,

DEIGENITRIZ! NOSSAS

SÚPLICAS NÃO

DESPREZEIS

NAS NECESSIDADES,

MAS NOS PERIGOS

LIBERTAI-NOS!

VÓS, A ÚNICA PURA,

A ÚNICA BENDITA!”

O autor desta bela e venerável prece recorre à imagem da “umbra alarum”, tão comum na Sagrada Escritura, e de que Nosso Senhor mesmo Se serviu ao falar da galinha que na hora do perigo acolhe os pintainhos sob as suas asas (cf. Mat. 23, 37).

Transportemo-nos para a época em que foi composta esta súplica. A perseguição ceifava a vida dos cristãos, os cárceres regurgitavam de fiéis presos, os soldados romanos vasculhavam as casas, os cemitérios, os ermos, à caça de discípulos de Cristo. Valeriano ou Décio banhavam as arenas com sangue de mártires. Nesta angústia os cristãos recorrem a Nossa Senhora, chamando-a Deigenitriz, Mãe de Deus — Theótokos!

Como pintainhos perseguidos pelo milhafre, correm os fiéis para debaixo da misericórdia de Maria. Note-se que o texto não fala de “eleos”, que é a misericórdia de Deus, mas de “eusplanchnia”, que são as boas entranhas, a misericórdia de uma mãe.

Theotoke! Deigenitriz! Na prece popular e na liturgia do século II e III se usa este nome bendito. Quando no século V o egípcio São Cirilo, Arcebispo de Alexandria, se bater no Concilio de Éfeso (431) em defesa da Maternidade divina de Maria, chamando-a “Theótokos”, Deigenitriz, não estará defendendo apenas um frio termo técnico da escola de Alexandria, mas a expressão da fé popular.

Como soa ardente o brado dos cristãos, perseguidos como se fossem caça, ao rezarem a Maria: “não desprezeis nossas súplicas nas necessidades, mas nos perigos libertai-nos!” No texto latino, a oração termina assim: “dos perigos todos livrai-nos sempre, Virgem gloriosa e bendita”. Segundo a versão grega de que a latina deriva, aqui a vírgula deveria estar entre “livrai-nos” e “sempre”, ou seja: “livrai-nos, sempre Virgem gloriosa e bendita”.

O texto do papiro contém duas expressões diferentes. Ele diz: “nos perigos libertai-nos! Ó Vós, a única pura, a única bendita!” É uma profissão de fé na Imaculada Conceição. Os fiéis proclamavam Maria Deigenitriz, a única pura, a única bendita entre os mulheres!

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Sob o ponto de vista teológico, este papiro constitui maravilhosa confirmação das tradições marianas católicas. Temos nas mãos um documento que contém o texto da mais antiga das orações marianas, se abstrairmos da Ave Maria. Ele testemunha que a Igreja do século II rezava a Maria Santíssima com ardor e confiança, e nEla buscava amparo e socorro nas necessidades e perigos da perseguição. A Igreja, ao rezar esta oração, não se dirigia diretamente a Deus, dirigia-se a Maria. Corria para se refugiar sob a sombra de sua misericórdia materna.

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Quando o comunismo mundial persegue os católicos, e a Santa Igreja em tantos países se refugia nas catacumbas, a Providência Divina nos faz encontrar uma venerável folha de papiro, escrita há 1700 ou 1800 anos, que foi manuseada por nossos irmãos, os mártires do Egito que rezavam: «Para debaixo de vossa misericórdia corremos a fugir, ó Deigenitriz! Nossas súplicas não desprezeis nas necessidades! Mas nos perigos libertai-nos, ó Vós, a única pura, a única bendita!»

(1) Baseia-se este artigo no belo trabalho de Mons. Igino Cecchetti, Subsecretario da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades, publicado na “Enciclopedia Cattolica”, vol. XI, col. 1468–1472, verbete “Sub tuum praesidium”.

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Artigo publicado originalmente no mensário “Catolicismo”, n.º149, de maio de 1963.

Rafael Aparecido
Enviado por Rafael Aparecido em 16/05/2024
Reeditado em 16/05/2024
Código do texto: T8064115
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