O menino raptado pelo papa

Não confio em gente que sabe exatamente o que Deus quer que elas façam. Sempre coincide com aquilo que elas próprias desejam.

Susan Brownell Anthony

Entre os muitos filmes que contam tristes histórias que envolvem a Igreja Católica, podemos citar Rapito (sequestrado, em italiano), de 2023, co-escrito e dirigido por Marco Bellocchio. O filme, baseado no livro de Danielle Scalise, é baseado na história real de Edgardo Mortara, jovem judeu que foi tirado de sua família pela Igreja. Esse caso chocou a opinião pública na época e fez com que houvesse críticas em relação à beatificação do Papa Pio IX.

Em 1851, Edgardo Mortara, o sexto filho de uma família de judeus que vivia na cidade de Bolonha – que fazia parte do Estado Papal- , na Itália, foi secretamente batizado como católico pela criada católica Anna Morisi, que acreditava que o menino estava muito doente e em breve morreria e temia que sua alma fosse para o limbo. Porém, o menino sobreviveu e, sete anos depois, Anna contou ao prior Feletti, que era cabeça do escritório da Santa Inquisição, sobre o batismo. Como o menino havia sido batizado como católico, as leis canônicas não permitiam que fosse criado por não-cristãos. Feletti então decidiu tirar o menino do lar paterno e, em 24 de junho, ele foi tirado dos seus pais e levado a Roma, onde ficou na Casa dei Catecumeni, uma escola para filhos de judeus convertidos.

Os pais, Momolo e Marianna, promoveram uma campanha para chamar a atenção pública, despertando a indignação de intelectuais europeus e não-europeus. Nesta época, o papado atravessava um momento de crise política, com perda de prestígio e autoridade, pois era visto como reacionário e se dizia que atrapalhava a unificação da Itália. Mesmo com todas as dificuldades, Pio IX tomou uma atitude drástica, encarregando-se da educação de Edgardo e ministrando publicamente um segundo batismo(que foi desnecessário).

Meses depois de Edgardo ir a Roma, seus pai obtiveram permissão para visita-lo. Deve-se dizer que os judeus que viviam em Roma estavam relutantes pois temiam se comprometer. Sabe-se que Momolo, quando estava a sós com o filho, disse que estava feliz em vê-lo e que o menino, ao se encontrar sozinho com a mãe, explodiu em lágrimas, revelando que toda noite recitava o Shema Yisrael. Os encarregados da educação do jovem proibiram visitas futuras. Os Mortara tentaram raptar Edgardo no entanto falharam e acabaram por perder todo o apoio dos judeus de Roma.

Consta que, em 1860, Roma foi tomada do papa por um grupo de revoltosos. As autoridades judiciais de Sardenha prenderam Feletti e o puseram em julgamento pelo caso Mortara. Todavia, descobriu-se que o batismo ministrado por Anna Morisi foi válido e o segundo batismo, ministrado por Pio IX, foi considerado irrelevante. Edgardo ficou em Roma, onde cresceu, estudou para padre e assumiu o nome de Pio Maria. Em 1870, Roma se tornou parte do reino da Itália. Riccardo, irmão de Edgardo, que era soldado, procurou por ele e contou que ele podia voltar para casa. Edgardo se recusou, afirmando que sua casa era a Igreja Católica.

Sabe-se que Napoleão III tentou convencer o papa a modernizar o Estado e se irritou ao saber sobre o caso de Edgardo Mortara. Os Rothschild teriam se mobilizado para libertar o menino mas foi tudo inútil. Na Sardenha, o conde Camillo Cavour, primeiro-ministro e idealizador da Itália unificada pelo rei Vittorio Emanuelle II, escreveu cartas em que condenava o sequestro. A família de Edgardo ainda seria atingida por outra tragédia. O pai do jovem foi preso injustamente acusado de assassinar outra empregada da casa, Rosa Tognazzi, sendo inocentado em 1871 e morrendo em seguida.

Anos depois, a mãe de Edgardo estava morrendo e ele, que não havia ido ao funeral do pai, voltou para casa. Ele tentou batizá-la mas ela se recusou, dizendo que morreria como judia. Os irmãos então o expulsaram de casa. Nos créditos finais do filma, consta que ele se ordenou padre, trabalhou como missionário e pregador pela Europa e morreu em um monastério na Bélgica, em 1940, aos 88 anos. Toda a história é uma verdadeira tragédia e, infelizmente, não é conhecida do grande público mas serve para nos mostrar como uma família pode ser duramente atingida quando uma instituição resolve se intrometer na vida de uma família.