A Cabalá Cristã e o movimento Rosacruz

 

             Rosenroth, em sua “Kabbalah Revelada”, refere-se à crença de que a Cabalá foi revelada aos homens por anjos encarregados por Deus para trazer à terra uma forma de realizar a sua reabilitação. Essa pretensão também se estende à Maçonaria, tanto que James Anderson, no preâmbulo das Constituições, diz que a Arte Real teria sido introduzida já no Jardim do Éden, pois Adão era versado nela.[1]

                 Isso porque, segundo aquele autor, em consequência da sua queda os homens haviam perdido a nobreza e o esplendor inicial com que haviam sido revestidos pela ocasião da sua criação. Como diz a Bíblia, o homem tinha, antes da queda, um status semelhante aos dos anjos, mas em razão da sua desobediência foi rebaixado a um nível inferior, onde o dever seria uma limitação à sua proficiência.[2]

         Como já dissemos em outra obra da nossa autoria, a Cabalá mística deve muitos dos seus temas aos filósofos neoplatônicos, tendo no judeu Philo de Alexandria o seu precursor. Depois ela foi adotada por vários escritores e místicos gnósticos durante os primeiros séculos da era cristã e largamente ampliada pelos cabalistas medievais, especialmente o grande Moisés de Leon, tido como o verdadeiro autor do Zhoar. Por isso muitos historiadores acreditam que a Cabalá não é mais do que uma doutrina nascida na esteira da cultura hermética que foi dominante na Europa nos primeiros séculos do Cristianismo. O próprio Gershon Scholem, um dos maiores historiadores da Cabalá, acreditava nessa possibilidade, pois segundo ele a Cabalá foi um movimento produzido pelos rabinos sefardistas como contraponto ao rigorismo e o conservadorismo dos talmudistas.[3]

              Como vimos, a Cabalá cristã alcançaria o seu apogeu como doutrina no início da Idade Moderna, com os pensadores do chamado movimento Rosacruz, e que foram esses místicos pesquisadores da natureza da matéria que deram origem à tradição da moderna Maçonaria.

              Em nossa opinião a Maçonaria institucional é uma aplicação prática da doutrina pregada por essa suposta Irmandade. Embora suas raízes e origens possam ser recenseadas em períodos bem anteriores ao surgimento do movimento rosacruciano, não há dúvida que ela, como instituição que emergiu da fusão das quatro Lojas Inglesas, teve no movimento inaugurado pelos alquimistas alemães a sua principal fonte de inspiração. E o movimento Rosacruz, como sabemos, tem na Cabalá uma das suas mais fecundas inspirações.[4]

              Por outro lado, o resgate do homem como “medida de todas as coisas”, que foi o principal mote do Renascimento, teve no cabalista Isaac Luria o seu principal articulador. Luria introduziu na doutrina da Cabalá um sistema de moral que substituiu a ideia messiânica de uma salvação futura, em um mundo alhures, incognoscível e inatingível pela mente humana, como o que era pregado pelos doutrinadores judaico-cristãos, por uma doutrina de salvação aqui e agora. Esse resultado seria atingido pela adoção de um comportamento ético e moral, que segundo ele, estava todo previsto na Torá e era desvelado na doutrina cabalística em sua mística tentativa de explicar como funcionavam as leis de evolução cósmica e as intenções de Deus com relação à humanidade.

           Ele tinha razão, porquanto o Zhoar veicula um conceito filosófico diferente daquele que é informado pelos comentaristas do Talmud e os teólogos do cristianismo, no sentido de que ele ensina que há uma substância universal que pensa e age constantemente, submetendo o mundo a uma eterna e inexorável evolução, bem oposta à ideia de um mundo estático, saído pronto e imutável da Cabeça do Criador. E que, principalmente, era o homem, na sua função de pensar e agir, que dava vida e sentido ao universo.

         Nessa visão, pensar, existir, desenvolver a si mesmo, era sinônimo de criar, e dessa forma o ideal contido na frase sofista de que o homem era a medida de todas as coisas ganhava corpo e consistência, operando uma regeneração que as doutrinas anteriores não permitiam. Era um sistema que valia não só para a alma do indivíduo judeu, mas também para todos os povos, porque a Torá não era um livro escrito só para Israel, mas para toda a huma-nidade. Com isso ele lançou a tese de que a redenção espiritual estava vinculada à redenção social e ela só viria quando ambas fossem realizadas.

       Ideias, que como se pode supor, caíram como luvas perfeitas para mãos que desejavam construir uma sociedade livre de dogmas e obscurantismos que castravam a criatividade humana em proveito de uma redenção incerta em um mundo futuro que ninguém conseguia provar que existia. Era simplesmente a volta triunfal de um ideal que havia sido esquecido com o fim do predomínio cultural grego e a vitória do cristianismo dominado por Roma. Só que agora esse ideal vinha reforçado por uma interpretação liberal da Torá para reforçar o espírito dos seus apoiadores. A teologia associava-se à sociologia para fornecer ao homem uma justificativa para o seu desenvolvimento espiritual e social.

        E como se sabe, a teologia tem um poder de aliciamento espiritual muito maior do que a filosofia. O fato de a doutrina cristã vir agora revestida de uma roupagem nova, que valorava muito mais a atitude humana do que a própria fé, foi um dos grandes trunfos da Reforma Protestante, fazendo muitos adeptos entre os luteranos, presbiterianos, batistas e calvinistas principalmente, justificando, por outro lado, boa parte das especulações dos filósofos iluministas.[5]

 

Influência no Renascimento

 

              Esses eram exatamente os argumentos que os pensadores da chamada Renascença estavam procurando para justificar as suas especulações. Assim, como diz Gershon Scholem, se o messianismo sabataísta forneceu o estofo para os argumentos sociológicos dos teóricos do Iluminismo, foi Isaac Lúria quem lhes deu a base para a sustentação teológica de suas teses pois, como ele diz “o desejo de libertação total, que desempenhou um papel tão trágico no desenvolvimento do niilismo sabataísta, não foi de maneira alguma puramente uma força autodestrutiva; ao contrário, debaixo da superfície da ausência da lei, do antinomismo e da negação catastrófica, poderosas forças construtivas estavam em ação.” [6]  

            Scholem se refere à grande comoção que o sabataísmo provocou nas hostes mais conservadoras do judaísmo com as ideias de um livre arbítrio que concedia ao homem o leme de seu próprio destino. Nesse sentido, a ideia do Shabbat, introduzido pela locução bíblica que falava do descanso de Deus após a criação do homem era um verdadeiro apelo ao nihilismo ativo, no sentido de que tudo, a partir da chegada no homem no cenário da criação, passava a ser de sua responsabilidade. Era como se Deus se ausentasse do mundo a partir desse momento e o universo passasse a ser regido pela mente humana. Essa metáfora estaria registrada na Torá no episódio em que o casal humano, ao comer do fruto do conhecimento do bem e do mal, tornou-se responsável pelo seu próprio destino e por isso teria que “ganhar seu sustento com o suor do seu rosto” e a mulher daria luz aos seus filhos com dor e sofrimento. A partir daí, ele seria responsável por tudo que lhe acontecesse, porque, ao escolher ser “igual aos deuses”, ele ficou por conta do seu próprio livre arbítrio.

        Essa é a interpretação cabalista cristã desse episódio, que serviu para o desenvolvimento das ideias nihilistas que se propagaram a partir de então. Algo que, curiosamente, os cientistas que estudam a mecânica quântica também parecem acreditar a partir das descobertas feitas nesse campo particular da física.[7]

           Como já referido, as ideias desenvolvidas por Luria e os cabalistas que aderiram a esse sistema de interpretação da Bíblia exerceram um papel preponderante na formação do pensamento ocidental, especialmente naquele que emergiu da Reforma Protestante. Como diz o referido autor, no plano teórico, essa nova visão trazida pelo Zhoar e pelos cabalistas da Renascença preparou o terreno para o moderno secularismo e o surgimento do chamado Século das Luzes. Isso porque a Lei expressa na Torá, como diz Scholem, agora era vista com claros contornos visionários, no sentido de que ela “não é mais que uma sombra do Divino Nome, do mesmo modo que se pode falar em uma sombra da Lei, cuja projeção é cada vez mais longa ao redor da vida dos judeus. Mas, na Cabalá, o pétreo muro da Lei se faz gradualmente, de forma transparente. (...) Essa alquimia da Lei é um dos mais profundos paradoxos da Cabalá (...)[8].

         Isso porque, na Cabalá, a ideia não é a de que Deus fez o mundo físico a partir do nada (uma criação ex-nihilo) como anteriormente se pensava, e que no final voltaria ao nada através de um apocalipse final, mas sim que o universo é um cadinho de formas sem fim, manifestadas pela Vontade Divina de Ser e desenvolvida pelas leis universais, uma das quais, a mais importante, é a do pensamento. Tudo que existe é parte da Essência Divina e toma forma através do pensamento humano. É uma forma de nihilismo ativo, que atribui à consciência humana a tarefa de construção da realidade. Um pensamento que, como vimos está no cerne da proposta da Maçonaria como agentes de construção do edifício cósmico.

          Evidentemente essas ideias nunca tiveram a concordância dos rabinos conservadores. Para estes a Cabalá era uma monstruosa heresia. Da mesma forma pensavam os padres católicos, que viam nas teses cabalistas mais uma estratégia dos reformistas protestantes para enfraquecer o domínio espiritual da Igreja Romana. E boa parte da liderança protestante acreditava que era a Igreja Católica que se valia da Cabalá para contaminar as propostas reformistas. Porém, como bem observa Alexandrian, os humanistas que confraternizaram com os rabinos para estudar a Cabalá foram os campeões da liberdade de pensamento.[9] Por isso nós vemos nesse movimento a origem do próprio iluminismo, sistema de pensamento que se tornaria a religião da ciência e da intelectualidade nos séculos dezoito, dezenove e vinte, responsável pelas grandes modificações sociais, políticas e espirituais que aconteceram a partir de então.

 


[1] ANDERSON, James. As Constituições, Ed. Fraternidade, 1982.

[2] Knor Von Rosenroth -A Kabbalah Revelada- Madras, 2012

[3] Sefarditas ou sefaraditas (em hebraico ספרדיםsefaradim; plural de sefaradi ספרדי) é o termo usado para se referir à colônia judaica radicada na Península Ibérica (Portugal e Espanha), chamada pelos judeus de  (Sefaradספרד). Utilizavam a língua sefardim, uma espécie de mistura de hebraico com espanhol como língua litúrgica e tinham tradições, língua e hábito próprios. Praticavam ritos diferenciados dos judeus que habitavam outras partes da Europa, por isso eram considerados como hereges pelos ortodoxos.

[4] A esse respeito, vide nossa obra “Cabala e Maçonaria”, publicada pela Editora Madras em 2018. A respeito da influência da Rosacruz na Maçonaria moderna, veja-se Frances Yates. Giordano Bruno e a Tradição Hermética e o Iluminismo Rosacruz- Cultrix,1964 e 1967. respectivamente.

[5] O calvinismo é uma seita cristã fundada pelo pastor francês João Calvino que surgiu durante a Reforma Protestante. Sua doutrina se baseia na predestinação, na valorização dos bons costumes e na defesa do trabalho e do lucro, ideias que contrastavam com as defendidas pelo clero católico da época. A chamada “ética calvinista” foi o principal fundamento espiritual dos colonizadores europeus que se mudaram para a América do Norte, para ali praticarem os seus valores. Eles estão no cerne da filosofia do povo americano. Ver, nesse sentido, Leo Huberman- A História da Riqueza do Homem, Zahr Editores, 1959, obra na qual o autor analisa o impacto da Reforma Protestante no pensamento social e econômico do Ocidente.

[6] Cabala e Contra História, citado, pg. 101. O sabataísmo é uma corrente do pensamento judaico fundada por Shabatai Tizvi (famoso rabino judeu-turco que se auto nomeou Messias e deu origem à doutrina que leva o seu nome. Essa doutrina também é conhecida como messianismo. Na imagem, o rabino Isaac Lúria: fonte: Kabbalah Center

[7] Nihilismo (nihil, nada) é a doutrina que atribui à consciência humana a responsabilidade pelo preenchimento da realidade no universo, pois ele é um vazio sem ordem nem sentido, e só adquire essas qualidades através da mente do ser humano. Seus principais representantes na filosofia foram os alemães Friederich Nietszche, Arthur Schopenhauer e o francês Jean Paul Sartre. Quanto ao vínculo entre as ideias nihilistas e a física quântica, veja-se Chopra e Kafatos-Você é o Universo- Ed Alaúde, São Paulo, 2017

[8] Cabalá e Contra História. Op citado pg 96.

[9] História da Filosofia Oculta, op. citado