Vaca Sagrada...? (republicando, sete anos despois...)
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Vaca sagrada?
Era o tempo antigo das rogações e procissões, como já não se mais faz. Vitória do Sacanaz? Quaresma era aquela beleza, com a santaria toda coberta do véu roxo, denotando generalizada paixão que se seguiria de cruxifição e a glória da ressurreição. Década de cinqüenta na profundamente religiosa Velha Serrana, onde cada ato litúrgico era mais que cirúrgico.
E nem era tempo de tantas vacas magras assim. Basta recordar que os animais trazidos pro matadouro, a despeito da significativa baixa de consumo da carne em tempos quaresmais, chegavam aos magotes e iam sendo conduzidos por experientes e expedientes vaqueiros.
E justamente, numa quarta-feira santa, quando as encenações vespertinas se iniciavam com condoída, compungida e concorrida procissão do encontro, espalhou-se rápido pelo burgo e vizinhanças a notícia de que uma vaca havia se desgarrado do bando e, indomada, desorientada, ia pelas ruas vagando, aos vaqueiros desafiando.
As pressurosas mães, os diligentes pais iam recolhendo suas crianças, sem contudo deixar de cumprir a obrigação sacra de participar da procissão, que na realidade eram duas manifestações distintas: do alto da igreja de São Francisco saía um cortejo só de mulheres, chorosas, acompanhando a Virgem Mãe que ia sofrer por antecipação; dos lados da bela e nostálgica igrejinha do Bom Jesus, sairia o Filho Amado, pelos homens levado, para cumprir o destino desatino que o Pai lhe havia traçado. E ambos os cortejos iriam se encontrar no local de sempre, a rua Padre Belchior, que parece propositadamente alargada no trecho em que pontificavam e frontificavam os casarões nobiliárquicos do Doutor Valdemar e do Doutor Romualdo, doutor Dito, assim dito.
Como de hábito, a procissão dos homens, de passos mais largos chegou mais cedo sob aquele breu de meter medo. Já os aguardava do alto de seu púlpito improvisado o vigoroso e entusiástico vigário Guerino, pronto para perorar em sua bela e profunda voz de barítono sem ópera.
Enquanto se esperava a chegada das mulheres, conduzindo a Santa Mãe, a ansiedade aumentava, sobretudo em função do episódio da vaca à solta, que aparentemente o inflamado vigário ignorava. Enquanto a homaiada entre si cochichava: o assunto da vaca era o que dominava...
Até que, subitamente, virando a esquina, eis que surge a bruxuleante iluminação das tochas vanguardeiras, e o vigário, do alto de seu púlpito, visão privilegiada, sem ao menos ter noção da razão daquele cochicho generalizado, exalta-se e brada a plenos pulmões:
E lá vem Ela!!!
Ah, pra quê...? A debandada tumultuada da macharia foi geral. Caos colossal. Muita gente se estropiou, mas chifre, ao que sei, ninguém levou.
Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 05/03/2016
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