Shimon Bar Yochai

 

Numa caverna às margens do Mar da Galiléia, o Rabi Shimon Bar Yochai reuniu seus doze discípulos para comentar sobre os mistérios do céu e da terra, que o sagrado livro escrito pelos grandes sábios do seu povo escreveram.

Era o ano 135 da Era Cristã. O mundo estava passando por grandes mudanças em sua estrutura social e principalmente espiritual. O cristianismo era uma doutrina que estava em franco desenvolvimento, ganhando adeptos em todos os cantos do Império Romano. Paulo de Tarso e seus seguidores haviam fundado igrejas em todos os lugares por onde passaram e a doutrina cristã disputava com o mitraísmo e outras crenças de origem grega e orientais, um lugar no coração e na mente das pessoas.

No seu postulado fundamental o cristianismo ensinava que Deus era a única e verdadeira autoridade à qual o homem devia estrita obediência. Essa doutrina opunha-se francamente à religião praticada pelos romanos, que viam no seu imperador a própria figura da divindade, e na estrutura do Estado romano a única e verdadeira fonte de poder na terra.

A crença em um Deus único era um princípio defendido com a própria vida pelos cristãos. Esse postulado tinha como fonte de inspiração a religião judaica. Na crença dos judeus a ideia de que Deus era um Ser único, desconhecido e inominado, que pairava acima de toda e qualquer realidade conhecida pelo ser humano era uma cláusula pétrea. E por essa razão não podia ser representado em imagem nenhuma, nem ter o seu nome pronunciado em vão. Assim, a pretensão do imperador romano, de ser venerado como divindade, e obedecido sem contestação pelos súditos conquistados e escravizados por Roma, para cristãos e judeus se afigurava como uma monstruosa heresia que devia ser combatida mesmo à custa da própria vida. Dai o fato de ambos credos serem perseguidos em todos os territórios dominados por Roma, com cristãos e judeus sendo sistematicamente presos e muitas vezes chacinados em verdadeiros genocídios sem paralelo na história humana.

 

      Por conta da sua crença os judeus eles combateram os invasores durantes todo o tempo em que sua pátria foi ocupada pelos exércitos de Roma. Os filhos de Israel nunca se conformaram com a ocupação do seu país. Revoltas e guerrilhas foram constantes durante todo o tempo em que Roma dominou a Judeia.[1]

No ano 135 da era cristã as tropas romanas invadiram Jerusalém para sufocar uma revolta liderada por um indivíduo chamado Simão Barcoquebas, mais conhecido como Simão Kochba, o “Filho da Estrela” [2]

Simão Barcoquebas chamava-se originalmente Simão bar Coziba. Vários rabinos, do grupo liderados por Aquiba (o mestre de Ben Yochai), consideravam-no o Messias prometido pelas Sagradas Escrituras. A figura do Messias – um líder carismático que libertaria Israel do domínio estrangeiro e reconstituiria o reino israelita nos moldes em que Davi o havia concebido - era uma profecia prevista nos escritos essênios e largamente divulgada e esperada pelos judeus radicais, conhecidos como zelotes. Em 132, Simão bar Coziba assumiu a liderança da revolta dos zelotes contra os romanos, conquistando várias vitórias e reavendo, por algum tempo o controle de Jerusalém. Proclamou a independência de Israel e tornou-se seu príncipe. Mas seu reinado durou pouco. Em 135, os romanos retomaram Jerusalém e destruíram completamente a cidade, massacrando a maior parte da sua população. Os sobreviventes desse massacre foram expulsos da Palestina, na operação que ficou conhecida como a Grande Diáspora.

     Desde então os judeus não tiveram mais pátria, vivendo dispersos pelo mundo até o ano de 1948, quando o Estado de Israel foi finalmente reconstituído. Com o reconhecimento, pela ONU, dos direitos do povo israelita sobre os antigos territórios que constituíam a pátria judaica, o estado de Israel voltou a existir. Mas a volta de grandes contingentes de judeus para a Palestina, e a fundação da república israelense moderna tem sido um grande fator de instabilidade política na região, pois a maioria dos territórios hoje ocupado por Israel estavam, na época, sob o domínio palestino. Repetiu-se, nesse caso, o mesmo episódio ocorrido no século V a. C. quando os judeus cativos na Babilônia foram autorizados a voltar para Jerusalém para reconstruí-la. Naquela época, como agora, uma grande tensão espalhou-se pela Palestina, em razão da resistência dos povos palestinos, que durante a ausência dos judeus, haviam ocupado o território.[3]

 

     Sobre os restos da antiga Jerusalém destruída em 135 os romanos haviam edificado uma cidade no estilo clássico greco—romano, `a qual chamaram de Élia Capitolina. E sobre as ruínas do antigo templo de Jeová, o Deus de Israel, construído pelo Rei Salomão cerca de mil antes de Cristo e reconstruído pelo rabino Zorobabel em 516 a.C., o rei Herodes havia erigido um templo dedicado ao deus romano Júpiter.[4]

     As autoridades romanas sempre consideram a religião dos judeus como a grande responsável pelas seguidas revoltas desse povo contra o domínio de Roma na região. Anteriormente, no ano 70 da era cristã, as tropas romanas sob o comando do futuro imperador Tito, haviam destruído o Templo de Jerusalém, principal símbolo da religião judaica.

     Essa revolta se tornou famosa na história judaica em razão do episódio do massacre dos zelotes na fortaleza de Massada. Desde então, os vários conflitos ocorridos entre judeus e romanos acabaram convencendo as autoridades romanas de que somente destruindo por completo o estado judeu e expulsando da Palestina todos os seus habitantes esse problema seria sanado. A revolta liderada por Simão Barcoquebas em 132 proporcionou o motivo desejado pelos romanos e foi assim que o estado judeu deixou de existir.

      Todavia, nem todos os judeus que escaparam do cerco à Jerusalém em 135 deixaram a Palestina. Muitos se refugiaram nas montanhas da Galileia e do Líbano e nas regiões de difícil acesso da Peréia, Idumeia e Samaria. Esses fugitivos deram continuidade às tradições judaicas, que nunca deixaram de ser cultivadas naquela região, transformando-se em um grande constrangimento para Roma e para as demais potências, que mais tarde, viriam a governar esses territórios.[5]

    O Rabi Shimon Bar Yochai e seus discípulos faziam parte de um desses grupos de sobreviventes do massacre de 135. Escapando da Jerusalém sitiada, eles fugiram para a Galileia e se esconderam nas cavernas existentes nas montanhas daquele território, em locais onde os romanos não conseguiam encontrá-los. Condenados á morte pelas autoridades romanas, Shimon Bar Yochai e seus discípulos constituíram a chamada Grande Assembleia Sagrada, grupo de rabinos que se dedicavam ao estudo da da Torá. Nesses encontros e desses estudos eles desenvolveram uma forma completamente diferente de interpretação dos escritos sagrados, daquela que usualmente era feita pelas autoridades oficiais do judaísmo, ou seja, aquela que consta dos Talmudes.

 

 Rabi Shimon bar Yochai era muito conhecido e respeitado nos meios religiosos judaicos. A tradição confere a ele uma grande sabedoria pessoal e um profundo conhecimento da Torá, que segundo se dizia, lhe fora comunicado pelo próprio profeta Elias, com quem ele falava constantemente em suas peregrinações pelo deserto e em suas solitárias meditações.

Dizia-se inclusive que era capaz de realizar milagres. Por conta dessa fama era constantemente convocado pelos líderes políticos e religiosos judeus para aconselhá-los, e pelo povo em geral para curar suas doenças e orientá-los em suas vidas diárias.

      Consta que, certa vez, antes da queda definitiva de Jerusalém, o Sinédrio enviou-o em embaixada à Roma, com a missão de convencer o imperador romano a revogar o édito que proibia a prática da religião judaica nos territórios dominados pelos romanos. Nessa ocasião, segundo informa o Talmud, ele teria expulsado um demônio que havia possuído a filha do imperador. Verdadeira ou não essa informação, o fato é que o decreto foi revogado e a religião judaica voltou a ser permitida por um certo tempo, sendo novamente proibida depois do cerco de Jerusalém no ano 135, quando os judeus foram definitivamente expulsos da região.

      Shimon bar Yochai, juntamente com outros rabinos, entretanto, não deixaram o país. Ao recusar-se a atender as ordens das autoridades romanas e continuar a pregar as suas crenças e disseminar a resistência contra o opressor estrangeiro, eles atraíram a atenção do imperador Adriano, que decretou pena de morte contra ele e seus seguidores. Perseguido pelas tropas romanas, Shimon bar Yochai e seu filho Eleazar fugiram e se esconderam em uma caverna nas montanhas da Galiléia, lá permanecendo durante treze anos, estudando, noite e dia, a Torá.

     Relatos tidos como lendários dizem que Shimon bar Yochai e Eliazar se sustentaram durante esse tempo dos frutos de uma alfarrobeira e da água de uma fonte, ambos surgidas de uma rocha somente para servi-los. Foi durante os anos em que viveram na caverna, que pai e filho - tendo o estudo da Torá como única ocupação – teriam sido visitados pelos profetas Moisés e Elias, que lhes transmitiram os segredos mais profundos contidos na Torá. E foram exatamente esses segredos que os dois profetas lhes comunicaram na caverna que foram transcritos para o livro conhecido como Zohar – O Livro do Esplendor, obra máxima em que se fundamenta toda a sabedoria contida na Kabbalah. 

 

     Verdade histórica ou não, o fato é que o Rabi Shimon Bar Yochai é um dos nomes mais respeitados da religião judaica e um dos mestres mais destacados entre todos aqueles que se dedicaram ao estudo das realidades espirituais. É considerado o pai do misticismo judaico, razão pela qual o chamamos de Mestre das Almas. Ele é tão respeitado pelos judeus que no próprio Talmude encontramos a assertiva de que toda mulher que dá à luz um filho homem deve pedir a Deus que o desenvolva à imagem de Shimon Bar Yochai.

     Sabe-se que ele tinha um perfeito domínio das Escrituras Sagradas e conhecia, como ninguém o Talmude e todos os demais comentários rabínicos produzidos pelos estudiosos do judaísmo. Sua opinião era pedida sempre que se levantava algum impasse sobre algum aspecto mais controvertido da Torá. Assim, ele não era apenas um profundo conhecedor dos aspectos místicos da religião judaica, mas também discorria com inteira propriedade sobre tudo que se referia à parte canônica da Torá, propriamente dita.

 

     É nesse sentido que se pode dizer que Shimon Bar Yochai integrou as duas faces da Biblia hebraica, que são as suas partes física e metafísica. Fisicamente, como rabi, ele faz a exegese da lei mosaica no plano da realidade positiva, e como profeta ele revela o sentido oculto da Torá, em metáforas de extraordinário sentido espiritual.

     Pode-se dizer que foi o Rabi Shimon que conseguiu, com suas visões, explicar como a Unidade Divina se insere dentro do nosso mundo material. No estudo dos Cinco Livros da Torá ele via um processo com início, meio e fim, como se fosse uma empreitada sagrada, abrangente, que não só explicava a origem do universo, mas também como esse processo influenciava e controlar até os mínimos detalhes da vida humana.

    Uma interessante passagem do Zohar nos conta que, certa vez, a Terra de Israel enfrentava uma grande seca. O povo procurou o Rabi Shimon, pedindo que intercedesse aos Céus para fazer a chuva cair. Ele declamou o versículo 133 dos Salmos, que consagra a conceito de Irmandade como uma força capaz de aliciar uma energia capaz de mover até mesmo a natureza: Terminada a oração, imediatamente as nuvens uma chuva torrencial caiu sobre toda a terra de Israel. Esse relato contém uma sabedoria muito especial que os maçons conhecem muito bem. Não é a toa que as seções de uma Loja maçônica são abertas com a leitura desse Salmo, pois ele consagra o poder da egrégora que se forma com a energia cósmica aliciada por várias mentes em união, dirigidas ao Altíssimo.  Aliás, é na poesia desse Salmo que está o grande segredo da força do povo de Israel, que malgrado todas as vicissitudes pela qual passou ao longo da sua extraordinária história, continua vivo e mantendo suas tradições, quando a grande maioria dos povos, mais fortes e desenvolvidos que ele, já fazem parte do limbo da História. [7]

  

     Rabi Shimon é tão importante para o judaísmo que o dia do seu passamento é conhecido pela expressão Lag Ba'Omer, e é comemorado por toda a comunidade judaica, porque esse foi o dia em que sua alma ascendeu a uma esfera superior no reino dos grandes espíritos.  Os judeus acreditam que essa data é abençoada pela intensa luz que ele introduziu em nosso mundo. É um dia em que os judeus - e todos aqueles que praticam os ensinamentos cabalísticos - encontram condição para buscar a seiva da retidão nas mais íntimas dimensões do mundo (aquelas que estão em nossa alma desde a sua origem) combinadas com os ensinamentos da Torá, consumando uma conexão com Deus. 

 

Rabi Shimon Bar Yochai e seu filho Elazar estão enterrados em Meron, cidade na Alta Galiléia, em Israel. No dia do Lag B'Omer, centenas de milhares de judeus visitam seu túmulo, para pedir a Deus que, através do mérito conquistado por esses dois homens santos, toda a nação de Israel seja contemplada com saúde, descendência saudavel, longaminidade e fartura. Há relatos de que vários milagres têm ocorrido à beira de sua sepultura, nesse dia.

 


[1] Veja-se, a esse respeito as obras de Flávio Josefo, As Guerras dos Judeus, Kleger Publication, Philadelfia, 1981

[2]. “Os Filhos da Estrela” era a denominação dada à uma seita judaica semelhante à cristã, que professava os ensinamentos dos essênios e mantinha uma estrutura de Irmandade, cujo objetivo era preparar a volta do Messias libertador. Veja-se, a esse respeito Hugh Schonfield, A Biblia Tinha Razão, Ibrasa, 1980

[3] Esse episódio é explorado pelo ritual da Maçonaria no Grau 15 do Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA), chamado Cavaleiro do Oriente, que trata da reconstrução de Jerusalém pelo rabino Zorobabel, o Aterzata. Na essência, a teatralização ritualística maçônica busca mostrar que a humanidade está sujeita a um processo de ascensão e quedas, e que o espírito humano deve estar sempre preparado para a reconstrução do que foi destruído, porque o próprio universo se vale desse processo para a sua evolução. A esse respeito ver a nossa obra Conhecendo a Arte Real, publicada pela Editora Madras.

[4] Segundo alguns historiadores, o templo de Salomão teria sido terminado em 1006 a.C. Outros dão como data o ano de 959 a.C. A Biblia hebraica, em Reis 9:10, sustenta que Salomão levou vinte anos para construir o seu palácio e o Templo. Esdras (6:15) em suas crônicas sobre a volta dos judeus para Jerusalém após o cativeiro na Babilônia informa que o segundo templo (o de Zorobabel) ficou pronto no sexto ano do reinado do rei persa Dario, isto é, aproximadamente 516 a.C.  O rei Herodes, o Grande, reinou entre 37 a. C e 4 e..C. No seu reinado nasceu Jesus, na aldeia  de Belém.

[5] Especialmente os muçulmanos, que ocuparam Jerusalém em 638 e os cristãos, que conquistaram Jerusalém em 1099, por ocasião da primeira grande cruzada.

[6] Talmud é uma coletânea de livros que fazem a exegese do judaísmo, definindo e dando forma à religião do povo de Israel. Explica e justifica todas as leis e rituais judaicos previstos na lei geral que constra do Pentateuco (Chumash). O Pentateuco são os cinco primeiros livros da Bíblia, atribuídos a Moisés. O Talmud explica, discute e esclarece a razão das leis e tradições judaicas nele contidas. 

[7] "Ó, como é bom e agradável viverem irmãos irmãos juntos em harmonia. É como o óleo precioso, que unge a cabeça de Aarão, do qual escorrem gotas para sua barba e para a orla das suas vestes. É como o orvalho do Hermon que cai sobre as montanhas de Sion, como bençaos ordenadas pelo Eterno.Sejam elas perpetuadas em sua vida." Bíblia Hebraica, por David Gorodovitrs e Jairo Findlin.