Análise das eleições a partir do mundo religioso
As eleições para a presidência do Brasil desse ano mostraram um papel muito forte dos segmentos religiosos, com pregações que na verdade eram campanha eleitoral disfarçada de culto religioso. Temos visto crescente influência do papel da religião no resultado das campanhas eleitorais nos últimos 20 anos. Mas nesse ano de 2022 a situação ficou mais nítida e motivo de profundas reflexões e análises. O Brasil está mudando muito rapidamente e nem sempre conseguimos acompanhar essas mudanças. E foi assim que no mesmo dia em que foram publicados os resultados vimos um pais paralisado por bloqueios das rodovias, muito bem articulados e com a conivência de determinadas autoridades de segurança. Então caímos na ingenuidade de achar que se está na normalidade de dez anos atrás.
O Instituto Datafolha realizou uma pesquisa no dia 29 de outubro, portanto, às vésperas do segundo turno para eleição presidencial, tomando como referência a intenção de voto a partir do perfil religioso. Como era de se esperar, Bolsonaro manteve ampla vantagem no quesito “voto evangélico”. Enquanto Lula aparecia com 11.725.823 de intenções de voto nesse segmento, Bolsonaro atingia a cifra dos 26.099.413. Lula teve aqui um resultado bem negativo com uma diferença de 14.373.590 de votos para Bolsonaro.
Quando se toma o segmento católico que também tem muitos adeptos da tendência pentecostal semelhante ao mundo evangélico, Lula alcança um total de 34.574.630 intenções de voto e Bolsonaro ficou apenas com 24.527.301. Uma diferença de 10.047.328 a favor de Lula. Mas isso não significa que o mundo católico foi determinante na eleição de Lula. É bom também registrar que há uma transição religiosa no interior do próprio catolicismo recuperando elementos pré-Vaticano II, de cunho nitidamente conservador e alinhado às posturas pentecostais em grande parte.
A transição religiosa no Brasil exige que se olhe atentamente para outro segmento, que nada está relacionado com Igrejas, e é composto por pessoas que declaradamente se dizem sem religião. Nesse grupo há muitas pessoas que abandonaram as instituições religiosas considerando-se “desigrejados”. A tendência dos jovens é estar nesse segmento. Lula aqui alcançou 10.018.487 milhões de votos e Bolsonaro apenas 4.165.977 intenções. Ao compararmos a diferença dos votos totais entre Lula e Bolsonaro que foi de 2.097.028 milhões de votos, vemos como o segmento das pessoas que se dizem sem religião foi determinante para a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva.
A transição religiosa que está ocorrendo é conduzida pela extrema direita liderada pelo ex-presidente Donald Trump e Steve Bannon que garantem a orientação política para o mundo todo e aqui é representada pelo bolsonarismo. Sua base religiosa está situada na Direita Cristã que está espalhada no mundo todo. Ela nasceu nos Estados Unidos em 1935 com a reunião do empresariado e industriais para salvação da economia em torno da fé cristã. Foi ali que se iniciou um movimento político de cunho religioso que serviu de base para a base ideológica da extrema direita internacional.
Outro dado que merece análise é o ritmo de crescimento da percentagem de evangélicos no Brasil. Como ainda não temos os dados do IBGE, estima-se que os evangélicos hoje compõem em torno de 32% da população brasileira e os católicos com 50%. Considerando a perspectiva de crescimento do percentual de evangélicos no Brasil, é preciso registrar que o bolsonarismo apesar de ter perdido as eleições continua ainda muito forte no meio da sociedade com tendência a crescimento. Quando se toma apenas o eleitorado cristão, Bolsonaro fica em grande vantagem.
Ao olharmos o resultado geral pelo Brasil, logo é digno de nota a vitória de Lula no Nordeste. Essa região tem uma predominância maior de católicos e sem religião. Ao contrário, no Acre, Rondônia e Roraima que tem mais evangélicos, ali Bolsonaro ganhou. Um caso à parte é o estado de Santa Catarina que possui maioria católica e Bolsonaro venceu. O que está acontecendo nesse Estado?
Esses dados podem servir como objeto de algumas reflexões. Em primeiro lugar, há que se indagar sobre que cristianismo é esse pregado no mundo evangélico. As perspectivas fundamentalistas produzem um efeito nefasto e devastador no seio de um cristianismo mais comprometido com os direitos humanos, com as opções pelos pobres, com uma pregação mais coerente com o Evangelho de Jesus Cristo.
A extrema direita está enraizada no mundo evangélico pentecostal e neopentecostal e no catolicismo conservador, que desde o Concílio Vaticano II reage contra qualquer mudança na vida religiosa, aderindo às práticas ultrapassadas de um catolicismo não mais existente. Além de sua presença nas esferas políticas dos poderes federal, estaduais e municipais, eles também são encontrados no campo externo à política, especialmente nos centros produtores de informação como rádios, jornais e redes de televisão. É bom não esquecermos daquela reunião convocada em Brasília com os diretores de Meios de Comunicação (evangélicos e católicos) para receberam verbas gordas em prol de imagens positivas do governo federal.
Além disso, vemos como muitos veículos de comunicação serviram e servem de maneira intempestiva com seus pregadores, verdadeiros gurus da vida religiosa, criando um amálgama ideológico. Não podemos ignorar o papel dos centros de formação de novas lideranças religiosas como seminários, faculdades, cursos e centros educativos. Como possuem excelente base econômica, esses grupos e instituições investem pesados na produção de materiais de primeiríssima qualidade, dando a impressão de serem os verdadeiros intelectuais zelosos da doutrina religiosa. Muitas vezes, sem nenhuma autorização eclesiástica esses centros formativos vão conduzindo cursos teológicos de modo fundamentalista e não alinhado ao Magistério da Igreja no caso católico e às organizações evangélicas que zelam pela fundamentação teológica.
Também deveríamos prestar muita atenção como ao longo dos últimos anos inclusive o Presidente da República tem utilizado o slogan “Deus, Pátria e Família”. Esse é o slogan do regime fascista inaugurado há cem anos atrás na Itália por Benito Mussolini. Esse slogan mostra a verdadeira identidade da extrema direita, pois foi nesses pilares que cresceram no século passado os regimes fascistas e nazistas. A moldura é religiosa, mas o conteúdo é conservador e totalitário. Temos no Brasil atual, o que pode ser percebido nesse bloqueio das estradas brasileiras, um grupo coeso e habilidoso em configurar novas práticas, novas táticas, inserido no universo religioso, capaz de exaltar a pátria cantando o Hino Nacional com saudação nazista, apelando ao medo quase sempre, à intolerância, ao radicalismo, e produzindo uma sensação de pânico e insegurança.
Os quatro anos do governo Bolsonaro podem ser considerados como um grande laboratório de aplicação das táticas planejadas pela extrema direita. Em seu curto discurso após 44 horas do resultado das eleições proclamado pelo TSE fez questão de trazer o slogan – “Deus, Pátria, Família e Liberdade” – não dando nenhum sinal de civilidade estendendo a mão ao vencedor como é de costume na vida republicana.
Desta forma, as eleições brasileiras de 2022 nos mostram que a religião se tornou o principal elemento de constituição da base social da extrema direita. Contudo, trata-se de uma religião ultraconservadora que no contexto católico é capaz de contestar o Concílio Vaticano II, a colegialidade episcopal representada pela CNBB, e a negação do Sínodo que está sendo realizado no momento e se concluirá em outubro de 2023. A extrema direita brasileira está alinhada mundialmente e retira símbolos do cristianismo para a formação de uma verdadeira milícia religiosa, produzindo um imaginário social de guerra do bem contra o mal. Os valores tradicionais são proferidos a todo instante em qualquer ato público e a condenação a todos os valores que representam a civilização moderna como a ciência, a democracia. Engana-se quem acha que essa extrema direita seja zelosa pelos valores do Evangelho. A cruzada religiosa que é criada como tática fascista bloqueia qualquer possibilidade de debate, de diálogo.
Por fim, é ingênuo pensar que esse cristianismo “professado” pela extrema direita que usa e instrumentaliza a todo instante a Bíblia esteja na linha católica conduzida pelo Papa Francisco e Bispos. Seu alinhamento está enraizado na extrema direita norte americana e seus grupos supremacistas com lideranças evangélicas e católicas, alinhada com Viktor Orban da Hungria, com Vladimir Putin que é aliado da Igreja Católica Ortodoxa Russa, com Le Pen na França e demais extremistas da Espanha, Inglaterra e neonazistas alemães.
Por fim, vimos como Bispos católicos brasileiros procuraram alertar os fiéis a respeito das eleições, mostrando os riscos e enviando cartas pastorais, cartas ao povo em geral e mensagens sob diversos níveis. Somente no Leste 3 da CNBB foram duas Cartas endereçadas aos católicos das quatro dioceses. A vigilância da fé precisa ser mantida e não permitir que algum regime fascista, mesmo ostentando o verde e amarelo como roupa, que já produziu tantas dores e mortes no passado possa reerguer-se dos escombros dos campos de concentração, da força das armas e prática de tortura. O nome de Deus foi profanado em tantos lugares. O nome de Deus está sendo profanado a todo momento. O ovo da serpente foi chocado em muitos centros de formação. É tarde chorar quando se vê o desrespeito às autoridades religiosas como fazem com o Papa, os Bispos, a CNBB. A história deve ser nossa mestra. Amanhã pode ser tarde demais!