A questão do propósito divino
É comum os religiosos dizerem que tudo que ocorre tem um propósito. Entretanto, esta questão toca em muitos pontos delicados. Com que propósito uma criança é abusada sexualmente? Alguém saberia dizer? Porém, se fizermos este tipo de questionamento para rebatermos quem afirma que os acontecimentos têm um propósito, logo ouviremos todo tido de resposta. Ouviremos que isso não é responsabilidade de Deus mas resultado do mau uso que o ser humano faz do seu livre arbítrio ou então que é porque o mundo jaz no maligno, já que por causa do suposto pecado de Adão e Eva, o pecado teria entrado no mundo. Se analisarmos bem, todas essas afirmações se contradizem entre si. Ou as coisas ocorrem com um propósito ou então são resultado de não sabermos usar bem nossa liberdade. Não dá para essas duas coisas ocorrerem ao mesmo tempo. E, se tudo ocorre por causa do fato de que não sabemos usar nosso livre arbítrio, isso na verdade significaria que Deus não interfere em nada. Quanto à questão de que coisas ruins acontecem porque Adão e Eva comeram o fruto proibido, poderíamos considerar que também soa estranho que Deus tenha criado esse mundo para ser perfeito e, não querendo que o pecado existisse, criou as condições propícias para isso, visto que foi Ele próprio que criou o fruto proibido e deixou a árvore que dava tal fruto acessível a Adão e Eva. Por sinal, esta história do fruto proibido entra em choque com a questão da onisciência divina. Se Deus, sendo onisciente, criou o fruto sabendo que Adão e Eva o comeriam, então Ele é o responsável por todo o pecado ter entrado no mundo, trazendo consigo as desgraças, mortes, doenças e tantos outros males que afligem a humanidade desde os seus primórdios. Esta é uma colocação que ofende a muitos religiosos mas que precisa ser discutida. Não faz sentido um ser que dizem ser onisciente criar todas as condições para que o pecado e as desgraças venham ao mundo. Caso Deus não seja onisciente, por que quis testar Adão e Eva então?
Dizer que tudo acontece com um propósito pode soar bastante cruel mas muitos religiosos dizem, com bastante naturalidade, que muitas vezes é necessário que passemos por certas experiências para aprendermos a ser mais humildes e tenhamos nosso orgulho e nossa vaidade quebrantados. Certo. Muitos aliás usam a história de Jó como exemplo para dizer que temos que ser humildes e aceitar “as provações” mandadas por Deus e não deixar de louvá-Lo nem mesmo nas piores horas. Certo. Então, perguntemos a essas pessoas: é necessário que uma criança de cinco anos seja abusada sexualmente ou maltratada e até morta pelos próprios pais? Uma mulher precisa ser estuprada? Uma pessoa precisa sofrer um acidente e perder as duas pernas? Digamos que eu beba muito e vá dirigir embriagada. Como consequência, eu acabo provocando um grave acidente, atropelando uma pessoa e fazendo com que ela fique paralisada da cintura para baixo, condenada a andar o resto da sua vida numa cadeira de rodas. Essa pessoa, que só deu o azar de estar no lugar errado na hora errada tinha que passar por algo assim para se tornar uma pessoa melhor? Ou então isso ocorreu para que eu aprendesse a ser mais responsável e entendesse as consequências de se dirigir alcoolizado? No final, eu teria que conviver com o peso de ter acabado com a vida de outra pessoa pelo resto de minha vida. Não soa horrível conceber que fosse necessário que algo desse tipo ocorresse?
Como já foi mencionado antes, a ideia de que as coisas acontecem com um propósito entram totalmente em choque com a ideia de livre arbítrio. Imaginar que existe um propósito para tudo que passamos só nos leva a imaginar que tudo que nos vem de bom ou ruim na verdade já estaria predeterminado. Isso dá até a ideia de que vivemos em uma espécie de big brother, sendo monitorados a cada instante, com alguém decidindo que fulano seria atropelado e ficaria aleijado ou que sicrano ficaria desempregado. Não é terrível pensar que na verdade vivemos vigiados, com Deus mandando seus anjos - que teriam a função de nos vigiar - fazer com que coisas ruins ou boas acontecessem nas nossas vidas de acordo com a vontade Dele? E novamente nós podemos nos perguntar: E por que então Deus acharia necessário que certas pessoas sofressem bem muito enquanto outras levariam vidas felizes e satisfatórias? Pensemos numa pessoa que ouviu de outra que devia agradecer a Deus pelos ótimos pais que tinha. Só que o que dizer de uma pessoa que sofre nas mãos de péssimos pais, que a espancam e escravizam? Com que propósito Deus fez com que uma pessoa nascesse filha de pais monstruosos? Lembremos de Bernardo Boldrini, Isabela Nardoni, Henry Borel e também da moça austríaca ou alemã que foi presa pelo pai em um bunker e passou anos sendo violentada, chegando a ter filhos do próprio pai. Que dizer então dos rapazes americanos e negros que passaram quarenta anos na prisão pagando por um crime que não tinham cometido. Eles passaram por tudo isso com que propósito? Alguém pode responder a esta pergunta?
Com certeza, ninguém nunca conseguirá responder a todas estas perguntas de maneira satisfatória. Portanto, seria bom que nos conformássemos com o fato de que coisas ruins acontecem sem nenhum propósito e tudo que nos resta é lidar com os problemas da melhor forma possível, sem tentar posar de donos da verdade.