- DESVENDANDO O SISTEMA CABALÍSTICO
A Cabalá é um sistema iniciático que procura desenvolver os temas do Velho Testamento através de uma linguagem metafórica, própria dos filósofos da chamada escola gnóstica, que esteve muito em voga entre os dois primeiros séculos antes da era cristã e perdurou até o início do quarto século depois de Cristo, quando a Igreja de Roma estabeleceu seu domínio sobre o pensamento religioso ocidental.
É muito difícil dizer, com certeza, quando a Cabalá começou a ser utilizada como fórmula mística de interpretação da Bíblia. O que se sabe é que o Zhoar, o livro base dessa estranha e envolvente tradição só se tornou conhecido no Ocidente através dos trabalhos publicados pelo rabino espanhol Moisés de Leon (1250-1305).
A crença geral dos estudiosos desse tema é a de que o próprio Moisés de Leon o escreveu, já que o livro todo se insere numa forma de literatura que era muito estimada na época medieval, especialmente nos territórios onde grandes contingentes de população judaica e muçulmana conviviam em relativa paz com os cristãos. Esses territórios correspondem hoje ao sul da França e várias províncias da Espanha, onde o misticismo já era uma tendência natural das pessoas que habitavam essas regiões.[1]
Era comum nessa época escritores de obras religiosas produzirem trabalhos de sua lavra e atribuírem as mesmas à personagens históricos, especialmente bíblicos. Isso lhes dava um ar de autoridade e antiguidade que ajudava na sua divulgação, além de atrair um interesse que normalmente não conseguiriam se fossem publicados com o nome do autor.
Contudo, Moisés de Leon sempre afirmou que o Zhoar era um escrito antigo que havia chegado às suas mãos e que ele somente o publicou. Ele o atribuía a um antigo rabino tanaíta, chamado Shimon ben Yochai, muito famoso e conhecido na tradição rabínica de Israel.[2]
Segundo Moisés de Leon, o Zhoar teria sido compilado pelos discípulos de Shimon ben Yochai a partir de seus ensinamentos, mas estes seriam inspirados em conhecimentos ainda mais antigos, que supostamente teriam sido comunicados pelo próprio Deus a Moisés e Arão, e depois a profetas como Isaias, Elias e Daniel, bem como a Salomão. Essa, aliás, seria a fonte da proverbial sabedoria atribuída ao famoso rei.
Essas narrativas de Moisés de Leon provocaram um grande interesse pelo Zhoar e logo as lendas sobre ele começaram a crescer. Uma delas, a mais divulgada, sustentava que a Cabalá, como ficou conhecida a doutrina veiculada pelo Zhoar, era uma tradição muito antiga, provavelmente anterior a Abraão, que já que era usada pelos sacerdotes caldeus antes mesmo da emigração desse patriarca e sua família para a Palestina. Originalmente seria uma coleção de fórmulas e frases soltas, usadas principalmente nos rituais secretos presididos esses sacerdotes. Por tradição oral acabaram sendo apropriadas por rabinos israelitas, provavelmente da seita essênia, e a codificação da tradição cabalística e sua estruturação sistemática num todo organizado teria sido feita por eles.
Historicamente sabe-se que o sentimento religioso dos judeus os levou a recusar a aceitação de divindades estrangeiras em seus templos e honrar o imperador romano como Deus. Essa foi a causa principal da revolta do povo de Israel contra Roma, revolta essa, que entre os anos 66-70 degenerou-se numa sangrenta guerra que custou a destruição total de Jerusalém e a dispersão dos seus habitantes pelo mundo mais tarde, no episódio que ficou conhecido como Diáspora. E foi justamente para conservar suas tradições religiosas que os rabinos judeus, a exemplo dos essênios dois séculos antes, desenvolveram os métodos da Cabala, ocultando através de alegorias numéricas e construções metafóricas os segredos de sua religião.[3]
Diz-se que ben Yochai viveu cerca de treze anos em cavernas no deserto, ocultando-se das tropas romanas. Nesse longo período de exílio ele tornou-se um visionário, transformando as visões que tinha em símbolos numéricos e palavras, compondo significados diversos das passagens bíblicas com interações de letras e números do alfabeto hebraico. Vivia-se uma época de intensa agitação política e religiosa, inclusive com a disseminação do cristianismo por todo o Império Romano, o que acentuava ainda mais o sentimento antissemita das autoridades romanas contra a população judaica e ensejava muitas perseguições.
Yochai transmitiu sua doutrina a poucos discípulos, seguindo a tradição de que a popularização de um conhecimento o abastarda. Seu filho Eliezer e seu principal discípulo, Rabbi Abba, teriam recolhido seus ensinamentos e composto o Zohar, que significa “Livro do Esplendor”, que se tornou a Bíblia cabalística por excelência.
(continua)
[1] Esses territórios correspondiam ao antigo reino da Septimania, situada no atual sul da França, conhecida como Ocitânia. Essa região também abarcava províncias que hoje fazem parte da Espanha, como a Catalunha, Andaluzia e outras. Essas regiões estiveram sobre o controle dos muçulmanos no século VIII, fazendo parte do império mouro conhecido como Al-Andalus. O território da Septmânia foi anexado à França no início do século XIII em decorrência da chamada Cruzada Albigense, guerra travada pelo Vaticano, junto com o governo francês, contra os hereges cátaros que tinham o apoio dos príncipes da região.
[2] Os rabinos tanaítas eram bastante conhecidos entre os séculos II e V da era cristã, por seus trabalhos publicados no Talmud. Shimon ben Yochai é citado nessas crônicas como um dos grandes estudiosos da Bíblia. Ele é conhecido principalmente pelos seus livros apocalípticos, mas não há nenhum registro histórico que conste que ele teria escrito o Zhoar.
[3] Um exemplo dessa resistência é o livro do Apocalipse, supostamente escrito pelo apóstolo João, que consta do Novo Testamento. Esse livro, cabalístico por excelência, é um libelo contra o domínio de Roma e seus governantes, prevendo um fim de mundo com a queda do Império Romano e a condenação final de seus governantes e apoiadores, que na opinião do autor, era um império comandado pelo Diabo. Esse império seria vencido pela nova doutrina trazida ao mundo por Jesus, o Messias reformador.