A SUSTENTAÇÃO DA EXISTÊNCIA: O APORTE FILOSÓFICO DE LOUIS LAVELLE PARA A TEOLOGIA

 

     O presente artigo trata da existência de Deus pela perspectiva filosófica, especificamente pela filosofia de Louis Lavelle. É buscado um dialogo entre os pressupostos teológicos que tratam da existência de Deus e os princípios filosóficos que tratam da sustentação da existência. O que se busca clarificar é a estreita relação entre teologia e filosofia no que tange à metafísica. A escolha de Louis Lavelle como fonte de consulta filosófica se dá pela densidade da obra do filósofo francês, que fora chamado pelo padre A. D. Sertillanges de “o Platão de nossos dias”. Será, pois, o livro de Lavelle — Do ser - Dialética do eterno presente — que o presente artigo tomará como base para buscar as respostas pretendidas. A conclusão a que se chegará demonstrará que as premissas metafísicas que tratam da estrutura da realidade se coadunam perfeitamente bem com todo o edifício teológico construído pela tradição cristã.

     Há uma área específica da teologia para tratar do estudo de Deus propriamente dito, a teontologia. Tratar da existência de Deus pela perspectiva teológica implica admitir um Ser onipotente, onisciente e onipresente, que é criador de tudo quanto há. Entretanto, a teologia bebe de outras fontes, ora ratificando conhecimentos seculares, ora os tomando como subsídios para investigações. A filosofia, por sua vez, sempre foi uma ferramenta de extrema valia para a teologia, haja vista todo o legado da filosofia da Idade Média deixou para a teologia, notadamente a patrística e a escolástica. Em verdade, durante um bom período da filosofia, o estudo da metafísica sempre se concentrou nestes dois eixos principais, os estudos do ser e de Deus, tanto que para os gregos antigos, a teologia era estudada dentro da metafísica, ela não era considerada uma área de estudo independente e autônoma, assim como a ciência também não o era. Posto isso, este artigo buscará estabelecer um diálogo entre a teologia e a filosofia no que tange à existência de Deus e principalmente sobre a existência da realidade, pois, como restará demonstrado, pouco diferem uma coisa da outra. O fato de a filosofia de Louis Lavelle ser uma das mais pujantes do século XX justifica a escolha para o estabelecimento do diálogo pretendido. A metafísica de Louis Lavelle, dada sua densidade e profundidade, é um excelente ambiente para averiguar se a investigação filosófica acerca do ser e de Deus aponta de fato para os mesmos postulados e princípios teológicos acerca da existência de Deus.

     Antes de tudo, é preciso que a ideia de existência seja adequadamente circunscrita no contexto da filosofia do filósofo francês Louis Lavelle. Existência não é o conjunto dos existentes, ela é muito mais abrangente. Quando se tenta, através de um exercício mental, suprimir tudo o que existe, até mesmo a própria consciência, algo no espírito humano se perturba e denuncia de forma contundente o fato de que sempre algo está presente, ou, em outras palavras, que “algo há”. É a essa presença impermutável e irrecorrível que denominaremos existência. A presença do ser se confunde com o próprio ser. Assim, diante da inescusabilidade que toda consciência carrega no que diz respeito ao ser, vê-se que o ser não é apenas um ente particular manifesto na existência, mas é, antes, o sustentáculo que torna a existência existente e que dá à realidade a sua unidade, a sua coerência e a sua continuidade.

     Mais ainda, existência não é um atributo que acompanha aquilo que vem a existir: A existência é anterior a toda manifestação de qualquer ente no tempo. É a existência primeira que injeta existência na existência segunda. O ser, em sua primazia ontológica, é que torna possível a existência da realidade tal qual é conhecida, pois é ele que garante a possibilidade de que algo venha a existir. Pontue-se que possibilidade, em termos metafísicos, não se trata de mera probabilidade, mas sim daquilo que é contrário ao impossível, ou seja, tudo o que veio a existir veio a existir porque sua existência era possível, pois se fosse impossível, logo, não viria a existir. A possibilidade da existência de algo não vem à existência simultaneamente à existência desse mesmo algo, ela necessariamente tem de anteceder à existência do ente, porque se assim não fosse, não haveria a possibilidade da existência desse algo e, por fim, sua existência seria impossível. Vê-se, dessa forma, que a possibilidade tem uma existência necessariamente independente e anterior à existência dos entes. A existência da possibilidade é que torna possível a existência de qualquer realidade existencial e, no entanto, essa possibilidade não tem uma existência diminuída ou incompleta, antes, ela é também uma existência, a existência que nutre a sustenta tudo quanto existe. Dessa forma, a possibilidade é alçada a um estatuto ontológico unívoco e pleno, algo que Louis Lavelle (2019, p. 47) ratificaria de pronto: “... a possibilidade é uma forma de existência”. A existência da possibilidade é inescusável a qualquer consciência, porque ninguém pode negar que algo há, e que para que esse algo de existência inegável possa existir, necessariamente essa possibilidade teria que estar sustentada de antemão de forma ordenada e coesa, existindo com a mesma plenitude de ser que goza qualquer outro ente manifesto na existência material.

     Uma vez posto que a possibilidade da existência de um ente antecede a existência do ente mesmo, e que essa possibilidade não é nada menos do que também uma existência, de tal forma tão real e plena de ser quanto tudo o que dela emana, então a possibilidade de um ente existir não só tem a primazia em relação à existência desse ente, como ela esteve presente no ser desde a eternidade. Ora, se em algum momento fosse impossível que algo existisse, nada existiria, e, ainda que a impossibilidade pudesse vir a se converter em possibilidade, essa mudança mesma teria que estar sustentada e ser também possível de antemão. Logo, a possibilidade tem primazia à manifestação de qualquer ente.

     Seria essa possibilidade um conjunto de fórmulas e equações que estão dadas de forma aleatória e inconsciente, de tal forma que não passam de mera presas ao alcance da inteligência humana? Ora, se existe não só entes e seres, mas também consciência e inteligência, é forçoso admitir que, uma vez que a possibilidade antecede a existência, a possibilidade primeira abrange a abarca tanto o ser quanto a consciência e a inteligência. Como a possibilidade é uma forma de existência que contém em si não só o ser, a consciência e a inteligência, mas também a totalidade da realidade de forma unívoca e simultânea, ela pode ser concebida como uma forma mais alta de existência, uma vez que é ela que nutre a existência dos entes e dos seres em suas manifestações no tempo. É claro que considerar a existência da possibilidade dessa forma serve apenas para uma melhor compreensão, pois não existe existência maior ou menor do que outra: entre o ser e o não-ser, não existe meio-termo. Tertium non datur.

     Quando a existência é entendida não só como a manifestação de algo, mas como independente e prescindível de toda e qualquer manifestação material, pode-se dar um passo além e considerar a existência como sendo o próprio ser. Afinal, quando Louis Lavelle se refere ao ser, ele está se referindo à existência una e total que sustenta tudo o que há e tudo o que ainda pode haver. Neste ponto, possibilidade, existência e ser se confundem, e, de fato, as camadas mais profundas da ontologia não são alcançadas senão perpassando por certos níveis de abstração.

 

     Assim, quando dizemos que Deus cria o mundo, queremos dizer que, se Deus cessasse de ser para si e se tornasse um espetáculo para um espectador que fosse posto fora dele – graças a uma espécie de contradição, uma vez que todo espetáculo exige uma operação daquele que o contempla e que toda operação nos faz participar interiormente da essência de Deus definido como um ato puro -, o mundo seria sua forma visível e sua revelação. É precisamente porque não há dado sem alguém para que ele seja tal, que o mundo, apesar de se distinguir de Deus, não pode, porém, destacar-se dele. Um ser limitado não pode aparecer a seus próprios olhos e por seus próprios limites senão como parte do mundo, esperando que a atividade de sua vida espiritual lhe permita criar seu ser interior reencontrando nele o ser interior de que o mundo depende. (LAVELLE, 2019, p. 38).

 

     Como o ser sustenta a possibilidade da existência, tudo o que existe só existe porque tem sua existência sustentada pelo ser, de tal forma que nada é alheio ao ser nem lhe é fugidio. Quando algo vem à existência, vem como uma derivação do ser, posto que existir é participar da existência e, portanto, estar contido na totalidade do ser. É inconcebível admitir a existência de algo cuja existência seja impossível, ou sugerir que algo tenha existência sem se nutrir de ser, e isso porque não há absolutamente nada fora do ser. Como dizia Lavelle (2019, p. 47), “não há nada que saia do ser ou que o penetre de fora”. Essa verdade metafísica inescapável foi descrita pelo Apóstolo Paulo no livro dos Atos dos Apóstolos, no capítulo 17, nos versículos 25 e 28: “[...] pois Ele mesmo é que dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas [...]”; “[...] porque nEle vivemos, e nos movemos, existimos [...]”. Traduzidas em linguagem teológica, as conquistas da filosofia de Lavelle encontram paralelos precisamente coadunados com o que diz a Bíblia acerca do Ser que sustenta a existência: “Tu só és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto neles há; e tu os guarda em vida a todos [...]” (Neemias 9:6). Em verdade, a Bíblia não aponta Deus somente como o criador do universo, mas também, e principalmente, como o sustentador de toda a realidade, de tal forma que não existe nada que se mantenha existente sem estar nEle enxertado. Há uma plêiade de citações em que as Sagradas Escrituras mostra que Deus preserva a sua criação: “Todos esperam de ti que lhes dês o seu sustento no tempo oportuno. Dando-lho tu, eles o recolhem; abres a tua mão e enchem-se de bens.” (Salmos 104: 27, 28). “Os olhos de todos esperam em ti, e tu lhes dás o seu mantimento a seu tempo. Abres a mão e satisfazes os desejos de todos os viventes.” (Salmos 145:15, 16). “Os leõezinhos bramam pela presa e de Deus buscam seu sustento.” (Salmos 104:21). “Quem prepara para os corvos o seu alimento, quando os seus pintainhos gritam a Deus e andam vagueando, por não terem que comer?” (Jó 38:41). “Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta.” (Mateus 6:26). É claro que o preservar constante da realidade não se restringe ao mundo material e aos animais, pois o homem também tem sua existência sustentada e preservada por Deus: “[...] que é o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem para que o visites?” (Salmos 8:4). “Pois Ele conhece a nossa estrutura; lembra-se de que somos pó.” (Salmos 103:14). “Mas tu és o que me tiraste do ventre; o que me preservaste estando ainda aos seios de minha mãe. Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe.” (Salmos 22:9, 10). “E até mesmo os cabelos de vossa cabeça estão todos contados.” (Mateus 10:30). Assim, cessam as distinções entre possibilidade e existência, entre atualidade e potencialidade, posto que no ser tudo existe de forma total e unívoca.

 

     O ser em sentido lato compreende pois em si ao mesmo tempo a possibilidade e a atualidade, pois a possibilidade não difere da atualidade senão segundo a perspectiva de um ser particular que funda no ser total a existência que lhe é própria. (LAVELLE, 2019, p. 74).

 

     O fato de Deus sustentar a existência de tal forma que nada exista fora dele não deve ser confundido com um panteísmo ou mesmo com um equivalente do estoicismo, onde a natureza material e o próprio Deus se confundem em um único e mesmo ser, atribuindo a deus um caráter exclusivamente imanente sem transcendência alguma.

 

     E se responderá facilmente à censura de panteísmo mostrando que Deus não pode comunicar a outro ser senão o próprio ser que lhe é próprio, isto é, um ser que é causa sui, de modo que toda relação que nós temos com ele nos libera, assim como toda relação que temos com a natureza nos subjuga, ou ainda que ele próprio não cria senão liberdades, sendo o mundo o instrumento dessa criação antes que seu objeto. (LAVELLE, 2019, p.19).

 

     Como poderia algo existir fora do ser? Como poderia algo vir a existir sem estar nutrido pela existência subjacente? Deus não pode ser atingido de fora nem tocar algo que exista independente dele. É por isso que Lavelle (2019, p. 163) afirmava que “Não se deve esquecer sem dúvida que descobrir a existência do eu é não descobrir a presença do ser no interior do eu, mas a presença do eu no interior do ser”.

     E é por isso também que erra quem busca os primeiros princípios ou as causas primeiras de tudo quanto há nas evidências materiais, como a teoria do big-bang ou a teoria da panspermia cósmica, apenas para citar alguns exemplos, pois o que importa saber não é quando e como tudo começou, mas o que mantém a realidade existindo até hoje. Este é o ponto fulcral: encontrar os princípios que sustentam a realidade independentemente do tempo, pois tudo que existiu sempre existiu no presente, posto que não há existência no passado ou no futuro. É neste eterno presente que o ser manifesta às consciências a existência. Sobre o instante presente, Lavelle (2019, p. 55) dizia que “O instante não é uma transição temporal senão para nos dar o meio de penetrar um presente eterno.” Mais ainda:

 

     O instante, é verdade, ainda que evanescente, goza a esse respeito de uma espécie de privilégio. Ele é como um encontro que a consciência tem com o ser numa coincidência fugitiva, e eu lamento somente não poder conservá-la, não poder transformar a instantaneidade em onipresença. Esse privilégio do instante pode ser justificado por duas razões: a primeira é que o instante é uma presença em que o passado e o futuro não só são negados, mas ao mesmo tempo implicados; a segunda é que a presença que me é descoberta no instante é a presença do objeto, isto é, uma presença que me é imposta e que me supera e já não uma presença simplesmente subjetiva como a que eu poderia atribuir quer ao passado, quer ao futuro. (LAVELLE, 2019, p. 54, 55).

 

     Passado e futuro só existem como uma relação que tem o presente como ponto absoluto. O presente é onde o ser se manifesta, passado e futuro são relações lógicas que não existem materialmente. Ninguém jamais existiu senão experienciando um presente; não o presente em um sentido de um instante atomístico inapreensível, que escorre incessantemente tanto para o passado quanto para o futuro, mas presente no sentido da constante, simultânea e contínua presença da existência.

 

     O tempo não consiste na relação entre uma presença e uma não presença, mas na substituição da presença de um objeto pela presença de uma lembrança. E se dirá o mesmo do futuro enquanto futuro: eu não posso descobri-lo senão por um pensamento presente que posso ver como a um pensamento indeterminado e que, quando esse futuro se realizar, me dará uma percepção presente: assim, uma vez que eu considero o futuro, o tempo se torna para mim, em verdade, uma relação entre duas presenças. (LAVELLE, 2019, p. 48, 49).

 

     Nesse sentido, pouco importa como a vida se originou neste planeta ou quando o átomo passou a ser estável, ou quando as primeiras moléculas de matéria se aglutinaram, porque a existência não foi apenas posta em movimento, mas ela continua sendo sustentada neste exato instante. Com isso, o ser se manifesta às consciências a ponto de que sejam inescusáveis diante da constante presença da existência que se escancara bem diante delas.

 

     Mas é impossível que Deus, na generosidade sem reticência do ato criador, chame as coisas para se beneficiarem de outra existência que aquela de que ele próprio goza eternamente. Não há existência diminuída ou bastarda, porque a existência de cada objeto é a presença nele do ato divino sem o qual ele não seria nada. (LAVELLE, 2019, p. 75).

 

     A presença do ser não pode ser negada. Mesmo um exercício mental que busque suprimir todos os existentes até não sobrar absolutamente nada, nem mesmo o próprio ser pensante, esbarra em uma repulsa do espírito que sega a admitir o nada absoluto, ratificando eloquentemente a presença do ser. As implicações dessa verdade metafísica são tão sólidas que o nada não pode sequer ser pensado como um conceito, uma vez que o nada, propriamente dito, é a negação do ser, é a total ausência de qualquer esseidade, o que acaba por torná-lo um conceito nulo, pois mesmo nomeá-lo e conceituá-lo já é tratá-lo como algo, como um existente.

 

     Assim, não há nada no tempo além de uma passagem contínua da percepção à lembrança, isto é, de uma forma de existência a uma natureza: não há nada que saia do ser ou que o penetre de fora. Todas as dificuldades concernentes à ideia de ser têm origem na experiência que temos do Tempo. Há uma espécie de antinomia entre o ser e o tempo, de modo que a afirmação do ser sempre se volta contra o devir e a do devir contra o ser. Parece que o devir é sempre um misto de ser e de nada e que a experiência que ele nos dá é precisamente a do nada na medida em que o ser não cessa de surgir dele para nele mergulhar. (LAVELLE, 2019, p. 47).

 

     Como dantes visto, a possibilidade antecede a existência e ela mesma é também uma existência não menos plena do que uma manifestação material, e disso se segue que o ser tem primazia em relação à existência. Ora, esse primado, todavia, não é temporal, é, antes, a estrutura metafísica da realidade. Tudo o que há existe em primeiro lugar no ser, para só depois tomar lugar na existência temporal; a relação temporal que permuta os existentes entre passado, presente e futuro é, portanto, posterior ao ser. Conforme escreveu Lavelle (2019, p. 48), ”não se pode pois manter a universalidade do ser senão mostrando que há uma forma de existência própria ao presente, ao passado e ao futuro, que nenhum ser particular se realiza senão pela relação que os une.” Esclarecendo a natureza do primado do ser, assim escreveu Lavelle:

 

     O primado do ser não é um primado segundo o tempo cronológico, nem lógico, pois o tempo que faz parte do ser o supõe e, se se pudesse imaginar contraditoriamente uma ordem temporal entre o ser e o tempo, é o tempo inteiro que seria posterior ao ser. (LAVELLE, 2019, p. 32).

 

     Não há nada que não pertença ao ser e que não deva ser posto alternadamente como passado, como presente e como futuro. Mas não se pode excluir nenhum termo de um desses modos de existência sem incluí-lo imediatamente em um dos dois outros. (LAVELLE, 2019, p. 48).

 

     Que é então o tempo? De acordo com a filosofia de Louis Lavelle, o tempo é um construto que se desdobra em uma importante engrenagem para a estrutura da realidade e da existência tal qual a experienciada pelos existentes. Por isso, dizia Lavelle (2019, p. 113) que “é necessário, no entanto, um tempo lógico para que o juízo possa conceber dois termos simultaneamente como distintos e como unidos”. Aqui, chega-se a um ponto demasiado importante para se entender a estrutura da existência pela perspectiva da filosofia de Louis Lavelle: a relação. O tempo lógico se revela como sendo uma peça fundamental para que seres finitos se manifestem na existência. Nas palavras do próprio Lavelle,

 

     ...tempo lógico, que é uma criação artificial de nosso espírito, intermediária entre a eternidade, que atribuímos ao ser, e o tempo real em que o mundo desdobra suas formas particulares aos olhos de um ser finito. (LAVELLE, 2019, p. 90).

 

     Cada ser que entra na existência assume uma relação com tudo o mais que existe. A individuação de cada ser existente se dá pela absorção da totalidade restante. Entrar na existência é sofrer uma acidentalização, uma acidentalização necessária para a manifestação de qualquer essência na existência material, posto que é a relação com a totalidade que determina os acidentes intrínsecos a cada ser em particular.

     Para melhor compreensão desse ponto, pode-se recorrer a observações geométricas: A ideia que se tem de um triângulo é perfeita em si mesma e não admite medições; somente quando um triângulo se manifesta materialmente é que ele assume uma acidentalização, ou seja, ele tem 9 centímetros de lado, ou 9 metros, ou até mesmo 9 quilômetros, e isso necessariamente, porque nenhum triângulo existente materialmente se confunde perfeitamente com a essência pura de triângulo, com a triangularidade. Para que uma essência se manifeste na existência material ela necessariamente deve se acidentalizar, deve assumir caracteres que lhe são não essenciais e que ao mesmo tempo o individualiza. Tomando agora a ideia de ponto como ponto de partida, percebe-se que a ideia de ponto não ocupa nenhum lugar no espaço, a essência do ponto, geometricamente falando, só passa a ocupar um lugar no espaço quando se manifesta na existência material. A entrada do ponto na existência, por sua vez, é acidentalizada porque a única diferença entre esse ponto e os demais pontos é justamente a relação entre um ponto e outro. Como explica Lavelle (2019, p. 91), “Por isso é verdadeiro dizer que todos os conceitos se implicam e que, qualquer que seja o que se adota como primeiro termo, há entre eles uma espécie de apelo recíproco.” Assim como um ponto se torna existente pelas coordenadas que lhe são entregues e que diferem de todos os demais pontos do universo, assim também o ser que entra na existência funda sua existência na relação com a totalidade que difere dele.

 

     O papel da relação é tão somente fazer aparecer a impossibilidade para uma coisa de se bastar independentemente de suas conexões com todas as outras na unidade do mesmo todo. Assim, a relação é, por assim dizer, o meio de lhe dar a existência. E essa existência que é a do todo das relações é sempre a mesma, conquanto ela seja ao mesmo tempo própria a cada coisa que constitui no momento todo um centro único e insubstituível. (LAVELLE, 2019, p. 65).

 

     Tudo o que há existe em um sistema total do qual não pode ser amputado. Uma árvore só pode ser uma árvore, se ela se diferir de uma pedra, de um pássaro e de uma nuvem, e é por isso que, nesse sentido, todo ser existente é uma espécie de universo ao contrário, um universo invertido, posto que cada ser carrega em si não só aquilo que ele é, mas também tudo aquilo que ele não é. Mas a relação não se restringe apenas ao aspecto digamos “relativo”: Uma árvore só pode existir se também existir um solo abaixo dela no qual possa penetrar suas raízes, assim como só pode existir se houver um sol acima dela que alimente suas folhas com luz. Existir é estar enxertado em um todo, em uma relação total que abarca a existência em uma unidade perfeitamente coerente.

 

     Posto isso, ninguém poderia sustentar que o eu continuaria ainda a existir se ele cessasse de ser um ponto de vista original com respeito ao todo do universo, isto é, um lugar privilegiado onde se encontram as influências provenientes dos pontos mais afastados do espaço e do tempo e as reações que, partindo dele como centro, se propagam por sua vez indefinidamente. (LAVELLE, 2019, p. 164).

 

     Demasiado nítida se torna a rigidez da metafísica de Lavelle quando ele trata da relação como um princípio que assume o caráter de necessidade (em oposição ao de contingência). A articulação dialética elaborada por Louis Lavelle no tocante à existência, a totalidade e a relação é uma das maiores conquistas filosóficas do século XX. O construto elaborado por Lavelle mostra como a existência é sustentada por Deus, e somente nele subsiste, sem que haja qualquer desvio para o panteísmo, de forma que, ainda que tudo exista em Deus e esteja nele sustentado, o seu próprio Ser não se confunde com as coisas existentes. Em termos escolásticos, Deus é ao mesmo tempo imanente e transcendente.

 

     Que cada parte não possa ser pensada sem todas as demais é a prova de que, apesar de sua originalidade qualitativa, o ser que ela dispõe não se distingue do ser delas, isto é, do próprio ser do todo no interior do qual é preciso necessariamente pô-las todas. [...] Aceitando identificar o ser com a concreção qualificada de cada objeto, fundamenta-se, por conseguinte, sua univocidade, pois os objetos particulares não se tornam concretos senão pelo lugar que ocupam e pelo papel que desempenham num mesmo e vasto todo que se basta inteiramente a si mesmo. (LAVELLE, 2019, p. 66).

 

     As observações colhidas até aqui permitem concluir que a existência de um ser não se dá de forma isolada, mas implica sempre uma relação universal recíproca, algo que se parece muito com a monadologia de G. W. Leibniz. Como escreveu Lavelle (2019, p. 68), “O ser não mede seus dons. Ele se dá inteiramente a cada um de seus membros. Sua presença não pode ser senão total.” O ser individual implica todo o universo que o circunda, ao mesmo tempo em que a totalidade distinta do ser individual coopera para sua existência. Por isso Lavelle (2019, p. 111) diz que “... o ser, uma vez pensado, exige que se inscreva nele todo o restante, incluída a própria relação.” A impressão que se tem é que o filósofo Louis Lavelle está construindo um edifício com o intuito de corroborar o que está escrito em Atos dos Apóstolos 17:25, 28: “[...] pois Ele mesmo é que dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas [...]”; “[...] porque nEle vivemos, e nos movemos, e existimos [...]”.

 

     Pois, por um lado, podemos dizer que em cada ponto do universo há lugar para uma perspectiva particular que encerra em si todo o universo e que é constitutiva de um ser individual; e, por outro, não só um ser individual é solidário do todo pelas relações que o unem a todas as suas partes, mas podemos dizer ainda que sua subjetividade e a própria possibilidade do todo que ele atualiza por uma espécie de operações que nunca têm fim. (LAVELLE, 2019, p. 86).

 

     Quando a noção de totalidade e suas implicações relacionais são inteligidas, é possível dar mais um passo e constatar que o Todo não se trata de uma soma de tudo quanto há, mas sim de uma unidade que coere os existentes e os sustenta simultaneamente em uma relação mútua que não nunca cessa. É na univocidade do todo que, mais uma vez, Deus pode ser encontrado, posto que é apenas para consciências finitas e particulares que o mundo aparece como uma série interminável de existentes independentes entre si. Para Deus, não somente o tempo é a posse simultânea de todos os momentos, passado, presente e futuro, mas também a existência é, para Ele, uma totalidade que não é jamais penetrada de fora nem tem em sua constituição o que quer que seja que lhe escape.

 

     O todo não é uma denominação extrínseca que se acrescentaria posteriormente a uma diversidade dada antes de tudo para que o espírito possa percorrê-la com um só olhar; ele é a perfeição dessa unidade concreta que não pode manifestar-se ao indivíduo senão por uma abundância infinita de qualidades; pois o indivíduo, se tem dele seu ser e se não cessa de lhe permanecer presente, não pode distinguir-se dele senão prosseguindo sua própria vida na duração, isto é, tornando a presença do ser efetiva para ele graças a uma sequência de incidências momentâneas. (LAVELLE, 2019, p. 129).

 

     A existência dos seres particulares, pois, é sempre uma unilateralidade dentro uma totalidade. E tem de ser necessariamente assim, para que os seres tomem consciência da presença do ser naquilo que para eles é o “não-eu”.

     A presença do ser é o sustentáculo da existência. Toda consciência que entra na existência experiencia um ponto específico da totalidade e estabelece com ela uma relação que nutre ao mesmo tempo a totalidade e os particulares. Existir é testemunhar o espetáculo do ser de um ponto de vista privilegiado. Quando Moisés (Êxodo 3:14) perguntou a Deus pelo seu nome, a resposta que ele ouviu tratava de uma definição ancestral do ser: “EUSOU O QUE SOU. Disse mais: assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós”. Ainda que o judaísmo antigo não tenha um arcabouço que possa ser considerado como uma unidade filosófica, não há como negar que o escrito veterotestamentário se confundirá com o que os gregos, séculos mais tarde, virão a chamar de metafísica. Conforme Lavelle, o espírito humano tem uma tendência natural a investigar a sustentação da existência e a entender os mistérios do ser:

 

     O que a inteligência busca é o ser. É nele que ela haure, é para ele que ela tende. E os juízos de conhecimento nos revelam seus fragmentos. A necessidade em que estamos de atribuir o ser a todos os termos que a análise nos permite isolar no mundo, o mal-estar que experimentamos, no que concerne a cada um deles, quando limitamos nossa afirmação a seu ser sem determina-lo, o sentimento certo de que o ser não convém plenamente a nenhum objeto particular, mas somente ao todo de que faz parte com todos os outros, obrigam-nos a admitir que não há senão uma única forma do juízo de existência que seja legítima: é a que se exprime dizendo “o ser é”. [...] Essa é pois a potência absoluta da afirmação, e, longe de crer que as afirmações particulares a acrescentam, é preciso dizer que não seriam possíveis sem ela, que elas recebem dela toda a seiva que as anima e as nutre. (LAVELLE, 2019, p. 125).

 

     Enquanto Gênesis 1:1 inaugura o Antigo Testamento com seu Bereshit, falando de uma criação que se fez no passado, ou “no princípio”, O evangelho de João alude, também no capítulo e versículo primeiros, a esse mesmo princípio não como uma ação passada e acabada, mas destacando o primado do ser diante da existência: “No princípio era o verbo...” A diferença entre os dois “princípios” é que Moisés escreveu para os judeus ancestrais, em um tempo em que a manifestação de Deus na Terra foi a mais intensa já presenciada por Israel, por outro lado, João escreveu para a Igreja, em um tempo em que o helenismo era a cultura hegemônica por toda a Ásia. João sabia que não bastava apenas apresentar Deus como aquele que criou o universo ou que pôs a existência em marcha — essa ideia já se encontrava nas filosofias pagãs na figura do Demiurgo —; era preciso demonstrar que tudo o que existe não só teve início, mas está sendo sustentado neste exato instante como uma sucessão contínua e ininterrupta do ato criador. Isso indica que quando João fala em verbo, do grego logos, ele não está falando de conjugação verbal ou de alguma espécie de transcendência temporal, ele está falando de uma ação, de um ato. É esse ato que sustenta tudo o que existe e nutre a presença da totalidade que os entes experienciam em suas existências. Essas conclusões levaram Louis Lavelle a afirmar que

 

     A identidade entre o ser e o Ato é a chave da metafísica. Ela nos obriga a elevar-nos sempre do dado até o ato que se lhe dá, isto é, a confundir o ser com o Verbo e não com a coisa. Assim este Ser-Ato seria dito muito mais justamente Ato de Ser. (LAVELLE, 2019, p. 229).

 

     A obra de Louis Lavelle se constitui em um verdadeiro monumento filosófico e expõe uma metafísica que parece seguir em uma linha inescapável em direção ao que os postulados teológicos mais fundamentais afirmam. Parece que após Louis Lavelle escalar uma gigantesca montanha, já havia no topo alguns teólogos com um olhar receptivo. Era sabendo disso que o Apóstolo Paulo escreveu em Atos 17:27 que “Para que buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem achar; ainda que não está longe de cada um de nós.” Assim, o teólogo que consultar a filosofia de Louis Lavelle encontrará uma das obras metafísicas mais ricas dos últimos séculos. Quando Lavelle trata da ontologia, ou “Do ser”, ele está, ao mesmo tempo, tratando de uma teontologia.

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.

 

JUNG, Carl Gustav. Espiritualidade e transcendência. Petrópolis: Vozes, 2015.

 

LAVELLE, Louis. Do Ser. São Paulo: É Realizações, 2019.

Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 18/07/2022
Reeditado em 18/07/2022
Código do texto: T7562464
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