A passagem de um amigo querido.
(Por Marco Bittar)
É extremamente difícil expor em palavras sentimentos. É extremante difícil falar uma palavra que realmente consiga consolar um coração enlutado. É extremamente difícil superar o momento da passagem e transformá-lo em um momento de crescimento. É extremamente difícil aceitar a realidade suprema da passagem. E com tantas dificuldades a superar, nos vemos no meio dos nossos sentimentos confusos e até conflitantes. Quem deseja ver quem ama sofrendo? Quem deseja ter suas vontades em desacordo com as da natureza? Quem não espera um milagre a todo momento de dor? Pois é, pensando assim podemos nos perder em emoções. A vida é altamente complexa, temos obrigações para sobreviver, temos obrigações para conviver em sociedade, temos obrigações que nos são impostas por posturas de boas maneiras e boa educação. Entretanto ao nascermos, ninguém nos diz como coadunar todas essas situações para podermos apenas viver. Diferentemente de nós, os ditos animais, possuem essa sabedoria nata, como se viessem programados para saber lidar com isso de uma forma mais coerente que nós. Os humanos se desesperam por inúmeras razões, sejam elas de caráter econômico, emocional e a culpa que todos achamos que temos pelas duas primeiras causas. Se eu tivesse feito isso, se eu tivesse agido assim, se eu tivesse pensado nisso, assim vai a nossa mente. Os animais, se pensam sobre esse fato, com toda certeza são muito mais equilibrados e cônscios da vida eterna e que é mutante.
Um certo dia um macho de qualquer espécie, tinha com ele uma determinada célula viva relacionada a reprodução. Uma fêmea da mesma espécie também tinha determinada célula do seu corpo viva que serviria para a continuidade da espécie. Ambos se encontram. Surge algo e eles resolvem unir-se na “mágica da vida”. Mas vejamos por que mágica da vida se antes ambos estavam vivos e com todas as suas células vivas? A resposta mais comum é que a união dos dois vai gerar um novo ser. Mas as células de ambos estavam vivas, continuaram vivas, mas mudaram de formato após essa união, entretanto não deixaram de ser quem elas eram nas suas individualidades, isto é, carregam ainda a sua identidade genética própria onde carregam todos os seus ancestrais arquivados. Mas agora são ou melhor serão uma nova embalagem, com a mistura dos dois seres que o geraram. Mas e as células? Morreram? Não apenas passaram a outro formato.
Novamente há uma das “mágicas” da natureza, e não ocorreu apenas uma fecundação, mas duas simultaneamente. Seriam então dois seres gerados a partir de quatro células irmãs. E todas quatro vivas e unidas formando dois seres únicos, mas que carregam tudo que eles podem carregar em seus arquivos genéticos. Que fenômeno espetacular, a geração da vida. Mas que vida? Já não estavam todas as células vivas? Bem vamos então chamar de transformação da vida, parece melhor e mais real, pois não eram células mortas, mas sim células vivas que se transformavam em um novo ser, ou no caso dois novos seres.
Imaginemos que ambos os novos seres oriundos daquelas células primeiras, agora com um complexo sistema celular e com vários tecidos em andamento comecem a trocar ideias, uma hipótese bem surreal para muitos, mas continuemos nessa viagem pelo que achamos conhecer.
Imagine eles conversando: “
— Aqui é um lugar legal.” Diz um deles e o outro responde,
— Sim. Tem comida, água, calor suficiente e é bem confortável.
Conclusão brilhante da realidade que eles estão vivendo, pois já esqueceram que eram células e também estavam basicamente na mesma situação, com nutrientes e conforto.
Entretanto aproximam-se os dias do nascimento. Mas o que é nascer para um ser que está vivo? Acho que é apenas vir para o lado de fora do “ovo”. Então começa a insegurança e a pressão emocional, sentimentos que ainda não haviam sentido. Novo diálogo entre eles:
“—Será que seremos expulsos dessa vida que temos?” pergunta um deles.
“—Acho que se formos expulsos não vamos sobreviver.” Responde o outro e imediatamente é retrucado pelo primeiro,
“— Mas não pode ser. Então qual seria o propósito da vida? Viver no aconchego e depois morrer?”. Bem o desconhecido pode ser interpretado como o bem ou como o mal, e, nós seres ditos humanos sempre nos dividimos nesse ponto conforme a nossa esperança, fé, crença religiosa e outras situações típicas da vida que temos associada às nossas experiencias prévias.
Mas no dia do parto, no dia do nascimento, no dia de respirar por conta própria, livre do cordão umbilical, e mais remotamente livre dos canais sanguíneos que os alimentavam ainda como células, descobrem uma liberdade que era inexistente dentro de um ventre. Não mais ficavam em posição fetal, tinham autonomia para respirar e em pouco tempo teriam até autonomia para escolher o que ver, tocar, comer e ir. Estavam mais livres que na primeira fase de uma vida celular, mais livres que a segunda fase de vida embrionária. E a vida continuava. Há quantos anos eles estariam vivos? Quanto de memória dos seus antepassados eles carregavam vivos dentro deles? Então saíram do que poderíamos chamar de “prisão física” para a liberdade. Que maravilha é a liberdade, mas ela ainda não é total, pois ainda há a dor e o desconforto que sentiam ainda no ventre materno. Nem tudo parece ser perfeito. Pois, perfeito e incompreensível para nós, apenas o Eterno, o Criador de tudo desde o tempo até o universo real e emocional, onde o que cria não se envolve, mas envolve contendo sem se abalar.
O tempo passa e novamente está chegando a hora da nova mudança, estamos envelhecendo, ou quem sabe por uma doença, abreviando novamente o tempo de clausura neste corpo físico composto pelas primeiras células.
Então novamente surgem as mesmas perguntas dos embriões, o que nos espera? Como será?
Essas são as angústias individuais de cada um de nós. Mas não estão relacionadas aos nossos entes queridos, sejam da nossa espécie ou de outras espécies ou até mesmo de outros reinos.
Então se para os que passam pela passagem há a angústia e incerteza, para os que os cercam há a frustração e o medo da perda, o buraco e o vazio da ausência. Angústia é para quem parte um sentimento próprio, pessoal e intransferível. Já o medo da perda é um sentimento externo que não pertence ao viajante do momento, mas sim, àqueles que ficarão na estação se despedindo e aguardando o dia da sua viagem.
Eu sei que estas palavras não podem mudar os fatos, mas servem para entendermos de uma nova forma que a vida é eterna, que a viajem sempre será obrigatória, mas o reencontro pode ser uma opção no dia do merecimento. Então devemos sempre, em memória dos que amamos e já viajaram, sermos os melhores possíveis. Mesmo sabendo que um dia outros ficarão na estação nos vendo partir. Não ficaríamos felizes em vê-los sofrendo, muito menos em saber que tomaram atitudes defensivas da dor dizendo: “nunca mais adotarei outro ser vivo”.
O nosso merecimento só é concedido pelo Eterno Criador, mas sempre podemos fazer algo por aqueles que precisam, seja adotando, alimentando, mas principalmente dando todo amor que pudermos, pois o segredo da vida é o amor. Por não ser mais jovem, sei que perdi muitos e muitos seres amados, de todas as espécies e reinos. Mas nunca “Repus” outro ser no lugar, pois não há como repor uma Mãe ou um Pai. Nem mesmo repor um Pet termo bonitinho dito hoje, para as outras espécies que não são consideradas humanas. Nenhum ser vivo é substituível para quem os ama de verdade, mas saber que eles estão agora livres de outras amarras é algo que nos deve confortar. Quando células, nos lesionávamos, quando embriões sentíamos dores, quando aqui do lado de fora também nos lesionávamos e sentíamos dores, mas sem o corpo físico, podemos não sentir mais dores, frio, fome, sede. Entretanto ainda possuímos o medo, a tristeza ao ver os nossos entes queridos sofrendo, porém ainda temos outras cortinas para abrir nessa longa estrada da vida eterna. Amem a todos os seres sem exceção, vivam com muito amor no coração e jamais deixem de acolher aqueles pequenos que não tiveram até o momento a oportunidade de ter um lar, carinho, comida e água fresca. Pois, os que fizeram a passagem vão dizer em algum lugar quem somos e o que fizemos por eles em determinado momento da vida deles. Muitos irão indicar o nosso lar para que outros vejam como é que tratamos os menores seres da grandiosa obra. Então as nossas lágrimas de sofrimento, devem ser enxutas, temos a obrigação de sermos exemplos para os outros seres que apesar do nosso sofrimento ainda temos forças para amar e cuidar dos menores.
Como disse um grande sábio:
"Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante." Albert Schweitzer (Nobel da Paz de 1952)
A todos que neste momento sentem-se enlutados desejo que consigam ter a esperança do reencontro. Força e Fé.
Marco Bittar, Rio de Janeiro, 27 de Junho de 2022.