CINCO COISAS QUE APRENDI COM SANTO AGOSTINHO
Aurélio Augustinus (Tagaste, 354 - Hipona, 430) é um gênio religioso que desde a sua existência no final da Antiguidade entre o norte da África, Roma e Milão, cintila com prima grandeza no céu da sabedoria ocidental.
Minha marcante experiência com a fruição do pensamento agostiniano foi quando numa chácara as margens do rio Ararí, pude ler com toda a calma e tempo para meditação a sua obra "Confissões". Isso se deu no interior do Amapá, no ano 2009. Dessa vivência marcante me chegou a inspiração para a minha poesia "Eu, Agostinho e o tempo", publicada no meu livro "Boulevard de inverno" (2014).
Com o legado agostiniano, na sua literatura, podemo-nos sentir carregados nos ombros de um gigante. Os escritos do insigne pensador, além da sabedoria filosófica e de um caráter enciclopédico, traz algo de místico: uma presença espiritual, existe algo que nos acalenta na nossa busca de sentido como um fogo transcendente. Não é a toa que um grande estudioso de Agostinho - Joseph Ratzinger - afirmou em uma audiência de ensino que sente como se conversasse amistosamente com o grande pensador cristão todas as vezes que lê os seus escritos.
A ciência e a presença espiritual de Agostinho de Hipona são maravilhosas e cada um pode se aventurar nessa senda; no entanto, nesse artigo pessoal, destaco as cinco coisas extraordinárias que aprendi com santo Agostinho:
1. Desejamos a verdade;
2. O movimento do tempo;
3. Os vestígios da beleza;
4. O livre-arbítrio existe em nós; e
5.Há pecado e há graça.
1.
Agostinho desde a Juventude foi um atento viandante em busca da verdade. O que faz marchar em busca é o desejo, o amor: desejo de beleza: amor à verdade, busca de sentido.
Para os parâmetros da ética e do dogma cristão; nessa busca, Agostinho também se transviou por sendas heterodoxas seja na idolatria do status de retor seja na vida sensual da luxúria, ainda enveredando por sistemas de pensamentos sectários como o Maniqueísmo e o Ceticismo; tais vias, não lhe saciando os anseios, o fez desembocar na filosofia de Cícero e no neoplatonismo para, ocasionalmente, investigando as técnicas retóricas de Ambrósio, bispo de Milão, acabar compreendendo, através da exegese de tão famoso prelado, que as Sagradas escrituras judaico-cristãs não eram as fábulas que ele julgara ser, mas expressões da revelação da verdade eterna sobre o ser humano que só poderia ser compreendida com um método de leitura e meditação desenvolvido pelos Padres da Igreja. Agostinho aprendeu que a verdade não é um objeto que o sujeito do conhecimento pode encontrar mas, antes, é ela quem encontra o ser humano: a Verdade tem um caráter pessoal; como afirmou Edith Stein, no século XX: "eu encontro em meu ser um outro que não é o meu ser e do qual vem o fundamento do meu, sem que ele mesmo precise de fundamento" (ESGA, vol. 11/12, p. 60).
2.
A busca de beleza e de verdade nos põe em movimento: peregrinos rumo à felicidade, pois inquieto está o coração que não encontrou o seu pouso.
Para Agostinho a realidade (que é bondade, beleza e verdade) é acontecimento dado no agora, no eterno presente, pois só existimos no presente; o pretérito é passado do presente que acessamos na recordação e o futuro é o porvir do presente que vislumbramos na esperança; porém o presente do presente é percepção do real, memória viva acontecendo em amor, pois o amor é a vida da memória (Conf. XI, 15, 20; De civ. Dei XII, 15, 2). Nesse sentido a vida espiritual como meditação e escuta da Palavra de Deus, na respiração da vida e no silêncio que pacifica a mente e o corpo, é a porta para entrar na memória vida do existir no agora, expurgando a depressão e a ansiedade.
3.
Na lógica clássica a fonte de tudo o que é belo só pode ser a suma beleza, para Agostinho: Deus, que é absolutamente uno e dinâmico ao comportar em si três relações de amor. Assim, a suma beleza é harmonia e ajustamento perfeitos, assim é justiça. E tudo o que provém dessa fonte só pode ser justo e belo na sua origem.
Se o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, ele não apenas traz em si algo da beleza mas tem sede de beleza e justiça, pois buscando a beleza, busca a sua fonte criadora: a Suma beleza: Deus. Rezou Agostinho: " tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei. Mas eis: estavas dentro e eu estava fora. Lá fora eu te procurava e me atirava, deforme, sobre as formosuras que fizeste. Tu estavas comigo e eu não estava contigo... Chamaste e clamaste e quebraste minha surdez... Tocaste-me, e ardo na tua paz" (Conf. X, 27, 38).
4.
No entanto, percebemos na realidade que nem tudo é beleza e justiça. Ao contrário há bastante desordem e injustiça. O mistério da iniquidade é factual na dimensão subjetiva das pessoas humanas, nas dimensões corporais e sociais e na própria dimensão ecológica.
Perguntamo-nos: Se o Criador é poderoso e justo, suma beleza; qual a razão para a existência do mal, da violência, da fome, do sofrimento?
Por mais que a sociologia, a psicanálise e a genética se oponham, ainda podemos afirmar que há alguma margem para se escolher entre dois opostos que se excluem, mesmo que a grande decisão tenha sido preparada por pequenas e banais escolhas cotidianas: Não somos autômatos; sempre há uma margem de livre-arbítrio!
O pensamento agostiniano nos conduz ao conceito de livre-arbítrio: capacidade de decidir-se pela liberdade ou pela escravidão moral. A liberdade é sempre escolher a bondade.
Liberdade é viver à semelhança de Cristo: Amai-vos uns aos outros! Fazei o bem aos que vos perseguem! Aquilo que desejais que os outros vos façam, fazei primeiro aos outros! Cuidai dos pobres e sofredores! Jesus Cristo na sua vida e morte nunca foi um ser-para-si, mas um ser-para-os-outros (L. Boff, JCLibertador).
Ao contrário, escolher ser-para-si é dobrar-se ao próprio ego e fechar-se para o que nos realiza como pessoas: a alteridade. Ser indiferente para os outros também nos faz ser indiferentes para Deus, empanamos a imagem do Criador em nós a medida que reduzimos à práticamente zero a nossa semelhança com Ele. Erra-se o alvo (é o pecado), escraviza-se moralmente.
O ser humano foi constituído como o guarda da criação e da fraternidade. Mas se o guardião está cindido em si, pois não bebe mais da fonte divina, tudo o que foi colocado sob sua guarda se torna fragmentado, fora do lugar, desajustado, feio: as relações fraternas e a própria casa-comum: a criação. A criatura, com o uso indigno do livre-arbítrio, gera o mistério do mal: escraviza-se e escraviza. Quem o poderá salvar/curar/libertar?
5.
Se há pecado, há graça libertadora!
Graça é um conceito político e penal. Trata-se de um dom supremo recebido imerecidamente: Alguém por seus crimes estava condenado à pena capital e, inesperadamente, recebe do rei ou governante a graça do perdão total, a possibilidade da continuação da vida e a liberdade. Na bíblia, Ester alcançou a graça para o povo hebreu e Pilatos concedeu a graça a Barrabás, condenando Jesus Cristo à morte de cruz.
É no dom da vida e da morte de Jesus que Agostinho ver a graça libertadora do ser humano e do cosmos. Pois só Deus poderia libertar o ser humano da escravidão e da fealdade do pecado e assim restaurar a criação no fim da história. Para a fé Jesus é o Filho de Deus feito ser humano. Ele é a "filiação": uma das três relações que existem no Deus único, as outras duas são "paternidade-maternidade" e "amor/dom". Os escritos dos apóstolos João e Paulo também chamam Jesus Cristo por Sophia (sabedoria), Lógos (palavra, sentido) e Eikon (imagem) de Deus.
Se o ser humano, guardião da fraternidade e da criação, foi criado como reflexo da Imagem (Eikon) de Deus, só a Imagem poderia consertar, em sua forma, a humanidade fragmentada e enfeiada e, assumindo em si a humanidade na Encarnação e na Cruz, transfigurá-la no mistério da ressurreição que terá a última manifestação no fim da história (cf. Von Balthasar).
Se a civilização do egoísmo humano se rege pelo ethos do amor-próprio até o menosprezo de Deus, o ethos da civilização libertada pela manifestação da beleza de Deus é o amor absoluto a Deus no seguimento do ethos de Jesus Cristo.
Trilhados os cinco patamares desta reflexão, vislumbramos, ao modo de introdução, o quanto a sabedoria espiritual de Agostinho pode nos interpelar mesmo na cultura secularizada e na política laica que compassam as tendências contemporâneas. O convite ao colóquio com Agostinho, através dos seus escritos, permanece um convite alvissareiro para nós, independentemente da visão de mundo que tenhamos.
Referências:
AGOSTINHO , S. Confissões. 2.ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia, 2017.
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1986.
COSTA, Marcos R. N. 10 lições sobre Santo Agostinho. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. 2.ed. São Paulo: Paulus; D. Editorial, 2010.
STEIN, Edith. Textos sobre Husserl e Tomás de Aquino. São Paulo: Paulus, 2019.