MOISÉS E OS HEBREUS NO EGITO

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O segundo livro do Antigo Testamento, o Êxodo, narra as peripécias do povo hebraico e a sua luta contra um cruel faraó, o surgimento de um de seus maiores guias e, enfim, a manifestação do próprio Javé no meio da multidão: «O Senhor falava com Moisés frente a frente, como um homem fala com o seu amigo» (Êx. 33:11). De acordo com o Catecismo católico, a figura de Moisés é fundamental para o sustento da fé cristã, sendo que, no parágrafo 2574 do mesmo lemos: «Quando começa a realizar-se a promessa (a Páscoa, o Êxodo, o dom da Lei e a conclusão da Aliança), a oração de Moisés é a tocante figura da oração de intercessão, que terá a sua realização no Mediador único entre Deus e os homens, Cristo Jesus». Com ou sem a interpretação católica do A.T., a figura heroica de Moisés confrontando o tirânico faraó e liderando um gigantesco êxodo de uma nação oprimida, permanece central na história bíblica e a ilumina com sua personalidade possante. Essa história da libertação dos israelitas de seu cativeiro é tão importante que os 4/5 das escrituras fundamentais de Israel (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) são devotados a esses eventos significativos. Durante quarenta anos ocorreram os milagres da sarça ardente, das pragas, da divisão do Mar Vermelho, do maná no deserto e da revelação da Lei no Monte Sinai. Em suma, o Deus de Israel, previamente conhecido apenas por meio de revelações pessoais aos patriarcas, aqui se mostra à toda a nação come deidade universal. A pergunta é: estamos de frente a fatos históricos ou apenas lendas e mitologias? Vejamos…

Segundo a Bíblia, os primeiros setenta Israelitas teriam chegado no Egito 430 anos antes dos eventos descritos no Êxodo e, mesmo sem se misturar com os egípcios, «Os filhos de Israel foram fecundos e se multiplicaram; tornaram-se cada vez mais numerosos e poderosos, a tal ponto que o país ficou repleto deles» (Êx. 1:7). Como a família de Jacó conseguiu tal façanha sem a menor integração econômica, linguística e cultural com o povo que os hospedou permanece um mistério. Considere-se, também, que nem do ponto de vista religioso havia o menor estorvo sendo que o antigo deus dos Patriarcas nunca mais havia se manifestado, deixando livre os israelitas, caso o desejassem, de abraçar a fé dos egípcios. Mas o que mais surpreende é comparar os resultados culturais da estadia (lendária) de todo um povo no Egito durante mais de quatro séculos seguidos, com a estadia (histórica) de poucas décadas na Babilônia (menos de 15.000 pessoas durante apenas cinquenta anos). Enquanto no primeiro caso a sociedade egípcia não deixou algum vestígio na religião, na literatura, na lei e nos costumes hebraicos, a segunda marcou a quase totalidade da cultura daquele pequeno povo e todos os elementos mais marcantes do judaísmo são de origem babilônia. Como exemplo basta lembrar que o mito do Dilúvio já se encontrava no “Enuma Elish”, o grande poema da criação e de Utnapistim que, com sua arca, salvou todas as espécies animais da época. Já essa comparação lança não poucas sombras sobre a veracidade dos eventos narrados no Êxodo.

Quanto à figura de Moisés, nascido do incesto entre o pai e a tia dele, não há nenhuma evidência, histórica ou arqueológica, que comprove que ele realmente existiu ou se qualquer evento narrado na Bíblia cristã ou no Torá judaico, como a abertura do mar Vermelho, tenham realmente ocorrido. As incongruências e as falsidades contidas no texto bíblico são gritantes, como, por exemplo, a lenda segundo a qual Moisés foi encontrado num cesto de papiro calafetado com betume e piche (Êx. 2:3) enquanto, na verdade, sabemos que esses dois materiais foram introduzidos no Egito somente em época ptolomaica, ou seja, não antes do ano 300 a.C.

De alguma forma, toda a história se desenrola com uma aproximação impressionante que a torna parecida a uma telenovela mexicana: a filha do faraó (Moisés, mesmo conhecendo-o pessoalmente, nunca pronuncia o nome desse soberano), potencial esposa de Rá, toma banho no Nilo apesar de o palácio dispor de piscinas obviamente mais confortáveis e seguras do que um rio onde crocodilos, animais sagrados, dominam sem serem perturbados. A mesma teimosa princesa abre o cesto flutuante e, percebendo que o conteúdo é um filho dos hebreus (Êx. 2:6) - que de acordo com o édito de seu pai deveria ser afogado - decide prover para ele, mas se livra imediatamente entregando-o a uma ama de leite judia que seria a própria mãe da criança, para tê-lo de volta já adulto e ciente da sua nacionalidade para completar a sua educação na corte enquanto o faraó perseguidor nada tinha a objetar. Tudo isso é honestamente paradoxal!

Mas onde a fantasia desenfreada alcança o clímax é na narração das “pragas do Egito” que merecem ser analisadas em detalhe. Trata-se de uma das páginas mais perturbadoras da literatura religiosa de todos os tempos e, se fossem verdadeiras, mostrariam o retrato de um deus sádico, vaidoso e cruel à enésima potência.

Já com a primeira praga toda a água do Egito foi transformada em sangue vindo a morrer todos os peixes. A Bíblia afirma que os magos egípcios conseguiram replicar essa praga, mas não se entende como, posto que toda a água havia já sido transformada em sangue por Javé. A segunda praga, a proliferação das rãs, não acarreta consequências práticas, a não ser, talvez, a alegria dos gastrônomos.

Na terceira e quarta praga piolhos e moscas agridem os animais e a população deixando milagrosamente em paz os Hebreus. Na quinta surge uma praga entre os animais e muitos morrem; os que sobrevivem têm o corpo coberto de pústulas - a sexta praga - que, dessa vez, não poupa nem os seres humanos.

Os efeitos da sétima praga, a chuva de granizo, são geralmente subestimados pelos comentadores. Esse cataclismo matou todas as pessoas e todos os animais (quais?) que não haviam procurado abrigo e até as árvores foram derrubadas. O ignoto escriba não se deu conta que, sendo o Egito uma terra bastante árida, as casas não eram feitas de pedras como na Palestina, mas de tijolos secados ao sol e com tetos de palha. Destarte, diante de tanta violência, de pouco ou nada teria adiantado ficar dentro das casas, que haveriam sido imediatamente derrubadas e derretidas. As destruições causadas pela chuva de granizo teriam sido simplesmente catastróficas acarretando o extermínio da grande maioria da população do Egito.

Com a nona praga uma nuvem de gafanhotos ataca o pouco que havia sobrado das plantações, condenando à morte por fome aqueles que, porventura, tivessem sobrevivido às pragas anteriores.

A nona praga, as trevas, não produz algum efeito prático devastador, mas apenas medo. Na última praga falecem todos os primogênitos tanto dos homens come dos animais: para esses últimos, seria a terceira morte em poucos dias. Quanto aos seres humanos, provavelmente os únicos a serem castigados teriam sido os filhos daqueles que moravam nos palácios reais, as únicas construções com os tetos de pedra ou telhas. O trabalho de aniquilação será concluído com a morte do faraó e do seu exército, cavaleiros e cavalos, entre as ondas do Mar Vermelho. É fácil imaginar o alívio dos pobres cavalos, animais inocentes cansados de tantos castigos.

Em resumo, quando o povo de Israel finalmente sai do Egito, não deve ter sobrado muito dessa nação, ou pelo menos é isso que se passa na mente do escriba judeu.

No entanto, a história escrita pelos egípcios (e outros povos da época) não concorda em nada com esse conto. Primeiro, não faz nenhuma menção aos judeus ou ao seu deus, nem aos seus prodígios e nos propõe, pelo contrário, a narração duma expedição militar à Síria culminando na histórica batalha de Cades e o entendimento com os Hititas durante o reinado de Ramsés II. Há, também, a famosa tentativa de invasão oriunda da Líbia, prontamente rechaçada pelo exército egípcio liderado por Ramsés III; são ambos fatos comprovados atestando a solidez do estado e do poder egípcio que, de acordo com o Antigo Testamento, deveriam ter sido aniquilados como se a nação tivesse sofrido um ataque nuclear.

É pelo menos estranho que este deus tão poderoso que devastou a nação mais próspera do Mundo Antigo – tendo a liderança de um povo com uma força armada de seiscentos mil soldados - tenha se acovardado diante dos Filisteus ao ponto de evitar o itinerário paralelo à costa que teria levado esta imensa massa de pessoas até o objetivo dentro alguns dias e, em vez disso, as conduziu pelo deserto com medo que a oposição armada dos Filisteus pudesse induzir os judeus amedrontados a voltar para o Egito. O motivo dado pelo narrador é ridículo por pelo menos três motivos:

1) Os Filisteus ainda não ocupavam a parte costeira da Palestina que, pelo contrário, era ocupada pelas tropas egípcias abrigadas em fortalezas que lhes permitiam o controle militar e administrativo da região;

Um exército com 600.000 guerreiros é a maior máquina militar de toda a história antiga, superior até à do Império Romano que, no máximo, alcançou meio milhão de tropas. Inclusive, surge uma pergunta: come podia o faraó, que na época disponha de uma força armada de apenas 20.000 homens ter “escravizado” 600.000 combatentes?

3) Porque uma força armada composta de 600.000 elementos foge diante dos restos das tropas do faraó, compostas por apenas quatro regimentos de 5.000 homens cada um, com o corpo coberto de úlceras e sem cavalos (exterminado pelas pragas) quando poderia facilmente se apossar de todo o Egito? Lembramos que Alexandre, o Grande, conquistou aquela nação dispondo de “apenas” 30.000 soldados.

Estranhamente, o povo judeu, se adentrou no deserto, uma comunidade de nada menos que dois milhões e meios de indivíduos, sem contar os inúmeros animais. Essa tropa de seres humanos e de gado teria necessitado, durante quarenta anos, de 20.000 metros cúbicos de água por dia, quantidade que o deserto do Sinai não pode fornecer nem durante um ano inteiro.

Objetivamente, como relatam fontes arqueológicas e independentes, houve sim imigração de semitas de Canaã para o Egito e os Egípcios expulsando-os com a força em torno de 1570 a.C., ou seja, mais de 300 anos antes dos eventos descritos no Êxodo. De alguma forma, nunca se fala em israelitas e não se conhece nenhuma evidência arqueológica da presença de Israel no Egito; além disso, são claras as provas que os Hebreus emergiram de forma gradual, como grupo distinto em Canãan, apenas no final do século XIII a.C. Em outras palavras, como atestado pela estela de Meneptah, os Judeus eram autóctones da região de Canaãn, e não os seus conquistadores. Outra prova que os Judeus nunca estiveram no Egito se deduz pelo fato que deles não se fala nas inscrições nos templos, nas sepulturas e nem nos papiros: Israel inexiste como possível inimigo do Egito, como amigo ou como nação escravizada. Muito menos existem achados arquelógicos justificando a concentração de migrantes filhos de Israel vivendo na terra de Gessen (Gênesis 47:27). Pelo contrário, registros históricos atestam que, em época ptolomaica (IV-III século a.C.), cerca de um quinto da população do Egito era composta por israelitas e é legítimo perguntar como é possível que alguém tenha migrado da Palestina para a terra que viu a opressão se seus antigos ancestrais: quem não teria temido a represália de um povo que, por causa de Javé, havia sofrido dez pragas que culminaram com o assassinato de todos seus primogênitos? E com qual espírito e qual coerência os Hebreus teriam celebrado, em pleno Egito, a festa da Páscoa para celebrar o fim da opressão dos egípcios? A resposta é: unicamente se esses últimos tivessem considerado como lendária e sem valor a narrativa bíblica.

Como observa o arqueólogo e historiador israelense Israel Finkelstein: «De acordo com o relato bíblico, os filhos de Israel vagaram pelo deserto, movimentando-se pelas montanhas da península do Sinai e acampando em lugares diferentes, durante quarenta anos. […] Alguns traços arqueológicos dessa geração que vagou por longo tempo no Sinai deveriam ser aparentes. Entretanto, exceto pelos fortes egípcios ao longo da costa norte, nem um único sinal de acampamento ou de ocupação da época de Ramsés II e de seus imediatos predecessores e sucessores jamais foi identificado no Sinai. E não foi por falta de inúmeras tentativas. Repetidas pesquisas arqueológicas realizadas em todas as regiões da península, […] não produziram senão evidências negativas: nem mesmo um único caco ou fragmento, nem uma única casa, nenhum traço de acampamento antigo. Pode-se argumentar que não se esperaria de um bando relativamente pequeno de nômades israelitas [o número fornecido pelo A.T. é considerado exagerado por Finkelstein] que deixasse restos materiais para trás. Mas as modernas técnicas arqueológicas dispõem de muitos recursos para traçar, ainda que escassos, remanescentes da passagem ou de acampamentos de caçadores ou de pastores nômades no mundo inteiro. De fato, o registro arqueológico da península do Sinai releva evidência de atividade pastoral em épocas remotas, como o III milênio a.C. e os períodos helenístico e bizantino. Simplesmente não há nenhuma evidência do suposto tempo do Êxodo, no século XIII a.C.» Trata-se, portanto, de um mito mais recente, provavelmente da época do rei Josias (649-609 a.C.) creditado pela maioria dos historiadores de ter estabelecido ou compilado Escrituras Hebraicas importantes para suportar a reforma deuteronômica que ocorreu durante seu governo.

Quanto aos lugares mencionados na narrativa do Êxodo, eles são reais, mas estavam desocupados na época que, segundo os registros bíblicos, desempenharam uma função nos acontecimentos da peregrinação dos filhos de Israel no deserto. Ficou, por exemplo, bem claro que não existiam reis em Edom para serem encontrados e confrontados pelos israelitas e que a cidade de Hesebon, capital de Seon, o rei dos amorreus, não existiu na Idade do bronze, nem mesmo uma pequena aldeia, apesar de o local ter sido mencionado em Números 21:21-25, Deuteronômio 2:24-35 e Juízes 11:19-21.

Embora não seja objeto específico desse trabalho, iremos mencionar que também a conquista da terra de Canaã não passa de um mito. Um dos momentos mais épicos, o da tomada da cidade de Jericó, foi totalmente inventado sendo que a moderna arqueologia desmentiu que no século XIII a.C. existisse uma cidade fortificada com esse nome; aliás, nenhuma cidade da época possuía muralhas. Assim, como escreve Finkelstein, «a famosa cena das forças israelitas marchando ao redor da cidade murada com a Arca da Aliança, provocando o desmoronamento das poderosas muralhas pelo clangor estarrecedor de suas trombetas de guerra era, para simplificar, uma miragem romântica». Se, por um lado, a destruição de cidades como Betel, Lachish, e outras de Canaã aconteceu realmente, pelo outro temos evidências de outras partes do Oriente Médio e do leste do Mediterrâneo sugerindo que os destruidores não foram os israelitas. Provavelmente, os responsáveis foram grupos misteriosos e violentos chamados “Povos do Mar”, migrantes que chegaram por mar e por terra do oeste, devastando tudo o que encontraram em seu caminho e, efetivamente, os registros de Ugarit e do Egito do começo do século XII a.C. mencionam esses saqueadores. Portanto, embora o Livro de Josué declare que os israelitas tomaram posse de toda a terra que Javé prometera derrotando todos os seus inimigos, outras passagens nesse Livro e no dos Juízes deixam claro que muitos cananeus e muitos filisteus coabitavam com os israelitas em estreita proximidade. Ainda, a moderna arquelogia comprova que o povo que ocupava as antigas cidades “israelitas” era formado por habitantes nativos de Canaã, os quais só gradualmente desenvolveram a identidade étnica que pôde ser denominada israelita não existindo, por volta de 1200 a.C., sinais de invasão violenta ou mesmo da infiltração de um grupo étnico definido.

Em resumo, citando novamente as palavras de Finkelstein, «O processo aqui descrito [no livro dele] é, de fato, o oposto do que está na Bíblia: a emergência do antigo Israel foi o resultado do colapso da cultura cananeia, e não a sua causa. A maioria dos israelitas não chegou de fora de Canaã, surgiu do interior da própria região. Não houve êxodo em massa do Egito. Não houve uma conquista violenta de Canaã. A maioria das pessoas que formou o antigo Israel era a população local, as mesmas pessoas que vemos nas regiões montanhosas através das Idades do Bronze e do Ferro. Os antigos israelitas eram – ironia das ironias – eles próprios, originalmente cananeus».

Então, nos perguntamos qual é o real significado da Bíblia e a resposta nasce da comparação com outras culturas da época. Assim como os antigos Romanos inventaram uma descendência divina através de Eneias, filho da deusa Afrodite, cujos descendentes irão fundar Roma, a segunda Troia, os antigos Hebreus sentiram a necessidade de criar a sua própria mitologia cujo sucesso tornou-se, em seguida, universal. O poder da saga bíblica, principalmente do Êxodo, deriva do fato que é uma narrativa muitíssimo interessante e relativamente coerente, capaz de manifestar temas intemporais da libertação de um povo, da resistência à opressão e da busca pela igualdade social. Essa saga expressa o sentimento profundamente arraigado de origens, experiências e destinos compartilhados de que toda a comunidade humana precisa para sobreviver.

Foram os teólogos que, séculos depois, transformaram esses fatos épicos, fruto da fantasia e da criatividade humana, na “palavra de Deus”, edificando um colossal monumento dogmático em cima de eventos comprovadamente mitológico.

NOTA: Também esse artigo foi adicionado ao meu E-livro intitulado: "Viagem ao centro do Cristianismo" que pode ser baixado na minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 08/08/2021
Reeditado em 12/08/2021
Código do texto: T7316453
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