A lógica do plano de Deus
É muito comum ouvirmos que Deus tem um plano para nossas vidas. Entretanto, se analisarmos bem esta questão, veremos que é uma lógica bastante cruel e que contrasta com a ideia de que somos livres e responsáveis pelos nossos atos. Basta que observemos a questão do livre arbítrio. Se Deus tem planos para nossas vidas, então onde entra nosso livre arbítrio? Da mesma maneira, podemos dizer que se, ao nascermos, tudo está programado, então, como podemos dizer que somos responsáveis pelo que acontece na nossa vida?
O livre arbítrio também não deixa de ser uma questão complicada. Embora se fale muito de livre arbítrio, devemos lembrar que somos condicionados pelo ambiente em que nascemos e vivemos e pela educação que recebemos. E a nossa educação foi o que nos transmitiu as noções de certo e errado que pautam nossas ações. Vale ainda frisar outros aspectos delicados como a homossexualidade. O Cristianismo diz que a homossexualidade é uma abominação aos olhos de Deus. Mas como condenar uma pessoa por algo que ela não escolheu ser? Nenhuma pessoa escolheu ser o que é. E todos os homossexuais, mesmo os assumidos, afirmam que, se desse para escolher, seriam heterossexuais. Do mesmo jeito, muitos bissexuais e transexuais reforçam que prefeririam ser heterossexuais.
Se existe um Deus, e Ele já fez planos de antemão para todos nós, isso não significaria que de nada adianta termos nossos sonhos porque Deus já decidiu como seria nossa vida? Então, somos simples marionetes? Fazer tais perguntas causa mais confusão, porque sabemos muito bem que somos seres dotados da capacidade de pensar, de tomar decisões e fazer escolhas. Falar que Deus tem planos para nossas vidas na verdade é ilógico e fortalece a ideia de que somos nós que criamos Deus à nossa imagem e semelhança, transformando-o num ser que joga com as vidas das pessoas.
Imaginemos tantas tragédias que destroem vidas inocentes, como a do menino Henry, da escola em Santa Catarina e da favela do Jacarezinho. Quer dizer que tudo aquilo já estava previsto, que Deus planejou que essas pessoas morressem de forma cruel? Isso também não significaria que os que mataram foram instrumentos da vontade divina? Infelizmente, se lançarmos tais questões ao discutirmos com um crente, ele logo dirá que Deus não teve nada a ver, que tudo isso foi o mau uso do livre arbítrio por parte das pessoas que cometeram os crimes. Os crentes sempre darão um jeito de eximir Deus de qualquer responsabilidade pelas tragédias que ocorrem no mundo. Mas, se alguém se salva de um desastre onde morreram dezenas de pessoas, dizem que foi a mão de Deus que operou naquele instante, mesmo que apenas uma pessoa tenha sobrevivido. Soa bastante estranho o ato desse Deus. Tais circunstâncias deixam espaço para que se pense que Deus faz acepção de pessoas. Porém, os crentes ainda irão usar argumentos como os de que não podemos tentar entender os mistérios de Deus, que estão além do nosso entendimento e da nossa capacidade intelectual.
Falar que Deus tem planos levanta sérias questões porque teríamos de admitir que Deus favorece uns e a outros não. Digamos que uma pessoa quer ser médica e faz todos os esforços mas, por ter nascido num meio miserável e ser obrigada desde jovem a trabalhar para se sustentar, ela tem de se contentar com um emprego humilde de auxiliar de serviços gerais. Já outra pessoa, filha de pais abastados, que lhe proporcionarão todos os meios, terá mais chances de realizar seus sonhos de ser juíza de Direito. Assim, uma não conseguiu se tornar médica e a outra conseguiu se tornar juíza porque Deus quis que fosse desse jeito?
Outro ponto a debater é que, com frequência quando se fala em Deus ter planos para nós, é para dizer que Ele se intromete em assuntos particulares das vidas das pessoas que, em princípio, interessam apenas a elas. Uma moça ouviu muito da mãe que talvez Deus a quisesse solteira para que ela não sofresse com um marido que a faria sofrer. Porém, por que Deus não interfere quando o presidente de um país quer declarar guerra a outro país? Podemos também perguntar por que Ele não impede um maluco de entrar numa escola e atirar em crianças nem um terrorista de invadir um lugar público e se explodir com outras dezenas ou centenas de pessoas. O que vemos é que Deus parece preferir interferir apenas nos aspectos mais insignificantes das vidas das pessoas, como favorecer uma determinada pessoa para que ela consiga uma vaga no mercado de trabalho, case com alguém que goste ou consiga uma casa própria.
Admitir que Deus tem planos também pode dar espaço para uma fé narcisista. A pessoa, ouvindo que Deus tem algo maravilhoso para ela, pode acabar se atribuindo demasiada importância, de acordo com Sam Harris. Nos templos evangélicos, é bastante comum que os pastores digam para certas pessoas que Deus tem planos fantásticos para a vida delas, dizendo que elas são os “ungidos do Senhor”. Esse tipo de fé narcisista prejudica, e muito, a nossa forma de ver a vida. Várias pessoas, acreditando-se ungidas, podem mesmo deixar de lutar e de tomar atitudes que resolvam logo suas vidas, acreditando que há algo especial reservado para elas, como se as soluções para suas vidas viessem numa bandeja de prata ou num embrulho com fita dourada.
E logo vêm as frustrações, pois nada na nossa vida se resolve magicamente como os pastores nos levam ou levaram a crer (muitos ex-evangélicos afirmam isso) e muitas pessoas vão ficando impacientes porque veem o tempo passar e nada mudar em suas vidas. Entretanto, elas ouvirão boas desculpas do tipo: “Calma, é que, para os ungidos do Senhor, tudo demora mais e é mais difícil, mas você tem que ter fé.” Só que a vida se encarrega de nos mostrar que nada funciona como os crentes costumam afirmar. Nada mais irreal do que ficar acreditando que um dia virá o emprego certo, de acordo com seu nível ou que, em um dia qualquer, sua família será restaurada, até porque as redes sociais estão fartas de nos mostrar que os religiosos enfrentam muitos problemas familiares e, todos os dias, somos bombardeados com notícias de pastores enfrentando problemas como adultério, violência doméstica e filhos desajustados.
Muitos ex-religiosos que têm canais no Youtube e falam contra a religião são pródigos em mostrar como o argumento de que Deus tem planos para nós é falacioso e superficial, apontando não apenas que a ideia de plano de Deus contrasta com a do livre arbítrio como também reunindo depoimentos de pessoas enganadas por pastores que falam como perderam bens materiais e anos de suas vidas esperando por milagres que esses pastores teriam profetizado. Não são poucos os casos de pessoas que perderam carros, lojas e até mesmo suas casas, acreditando que receberiam em dobro o que estavam doando para a igreja. Um caso que chama a atenção é o da modelo Andressa Urach, que se tornou evangélica e fiel da Igreja Universal do Reino de Deus e hoje, desigrejada, está com um processo contra a Igreja, alegando que perdeu vários bens.
Os únicos que vemos lucrar e prosperar com essa ideia de plano de Deus são os pastores, que enganam os fiéis, dizendo apenas o que eles desejam ouvir, pronunciando palavras que parecem saídas de livros de autoajuda para os que estão enfrentando crises familiares, financeiras ou emocionais e berrando promessas garantindo que Deus um dia “dará a vitória” aos que n’Ele acreditarem, como se vitória fosse um presente, não o resultado de uma árdua luta.
Portanto, não aceitemos mais certos dogmas. Discutamos, pensemos e analisemos tudo usando a nossa capacidade de pensar. Se temos de admitir que Deus tem planos para cada um de nós, então teremos de admitir, forçosamente, que Ele não é justo, principalmente ao vermos pessoas que parecem ter nascido com toda a sorte do mundo e outras que parecem só ter nascido para sofrer e não conseguem ver nada melhorar nas suas vidas por mais que lutem.