O VATICANO E O CASAMENTO HOMOAFETIVO

Com aval do papa Francisco, a Igreja Católica anunciou ontem (15/março/2021) que padres não podem abençoar uniões homoafetivas. Vaticano diz que “Deus não pode abençoar o pecado”.

Mas, será verdade que Deus acha pecado o amor entre duas pessoas, só porque são do mesmo sexo? De onde a Igreja tirou essa ideia?

Sim, da Bíblia. Mais exatamente da Lei de Moisés, que, segundo a crença, foi entregue por Deus no Monte Sinai: “Se um homem dormir com outro homem, como se fosse mulher, ambos cometerão uma coisa abominável. Serão punidos de morte e levarão a sua culpa.” (Levítico 20,13).

Acontece que a maioria dos estudiosos e historiadores concorda que a Lei de Moisés não é obra de Deus, e sim dos escribas do Templo de Jerusalém, em uma reforma social e religiosa provavelmente no século VII a.C.

“Para combater o politeísmo e o culto de imagens, que cresciam entre os judeus, os rabinos inventaram um novo código de leis e histórias de patriarcas heroicos que recebiam ensinamentos diretamente de Jeová.” (Revista Superinteressante, 2002).

Segundo esses especialistas, havia o costume entre legisladores da Antiguidade atribuir a autoria de suas leis a um deus, pois dava mais respeito e credibilidade.

Os homens bíblicos, dizem eles, seguiram essa tendência. Como as pessoas daquele tempo (parece que não mudou muita coisa) eram pouco cultas e facilmente manipuladas, não foi difícil convencê-las de que estavam vivendo sob a jurisdição de um deus, e que seriam severamente punidas caso se negassem a seguir aquelas leis. Nada melhor do que o medo e as ameaças para manter um povo quieto e obediente.

“Todo aquele que não observar a Lei de teu Deus e a lei do rei será castigado rigorosamente, seja com a morte, seja com o desterro, seja com uma multa, ou mesmo com a prisão.” (Bíblia, livro de Esdras 7,26).

A fim de escapar dos castigos prometidos, o homem religioso dá mais importância à Lei, mesmo quando ela é vil, injusta e perigosa do que aos mandamentos de amor e caridade propostos por Jesus.

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679) diz em seu Leviatã: “Portanto, os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes cuidados: primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus... a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceitas.”

A Nova Bíblia Pastoral, Editora Paulus, 2014, diz em uma nota:

“Os sacerdotes buscaram legitimar o próprio poder, apresentando suas leis e instituições como ‘torá’, isto é, instruções dadas diretamente por Deus, ou através de Moisés, ainda durante a caminhada mítica do povo eleito em direção a Canaã.”

Antes da Bíblia, tivemos outros legisladores bons de lábia que conseguiram convencer populações inteiras de que o autor de seu código legislativo era um deus. Veremos três deles:

Rei Ur-Nammu na Suméria, autor do “Pai dos Códigos”, considerado por muitos historiadores a primeira legislação entregue à Humanidade. Segundo a lenda, ele a recebeu do deus Shamash por volta de 2040 a.C.

Rei Lipit-Ishtar de Isin, quarta dinastia da Babilônia.

Rei Hamurabi, fundador do 1º Império Babilônico, autor do famoso Código de Hamurabi. No corpo de seu código, ele registrou: “Quando Marduk [deus babilônico] concedeu-me o poder de governar sobre os homens, para dar proteção de direito à terra, eu o fiz de forma justa e correta.”

Voltando à questão do casamento homossexual. Por que os sacerdotes judeus proibiram a homossexualidade entre o povo de Israel?

Muito simples: relações entre pessoas de igual sexo representavam um perigo para seu povo, pois não gera descendentes, e a nação de Israel precisava crescer. Mais gente, mais mão de obra no futuro e soldados para o exército. Então, para eliminar a prática, criaram uma lei punindo homossexuais com a pena de morte.

Note que a lei pune somente homossexuais homens. No Antigo Testamento não existe nenhuma lei contra o lesbianismo. A criminalização do sexo entre mulheres chegará mais tarde, no Novo Testamento, com o apóstolo Paulo (Romanos 1,24).

Séculos de doutrinação exaustiva criaram um forte sentimento homofóbico em sucessivas gerações de cristãos. Durante a Santa Inquisição, milhares de homossexuais foram perseguidos, torturados e mortos. Mas o drama não acabou. Ainda hoje líderes religiosos pregam contra o direito de pessoas amarem seus iguais.

Sabendo de tudo isso, você ainda acredita que Deus considera relações homoafetivas um pecado?

*Fernando Bastos, pesquisador de religiões, autor de Teofania (Design Editora, 2009) e Crimes em nome de Deus (Mil Palavras, 2015).