Não Adianta ir à Igreja se Você Não Ama o Próximo

“E os que de ti procederem edificarão as antigas ruínas; e levantarás os fundamentos de geração em geração; e chamar-te-ão reparador das roturas, e restaurador de veredas para morar.” – Isaías 58.12

Isaías 58 é um texto complexo. Entre as discussões que envolvem esse capítulo, Kenneth Bergland (2018) cita o debate acerca do seu gênero literário, e sobre a questão de que se os versículos 13-14 são parte integrante original do capítulo ou um adendo posterior. Ele concorda com os estudiosos que entendem Isaías 58-59 como uma unidade, de modo que o capítulo 58 trata da verdadeira religião, 59.1-15a fala sobre o fracasso do povo em vivê-la, e 59.15b-21 retrata a ação de Deus em favor de seu povo.

No primeiro versículo de Isaías 58, o profeta convoca uma assembleia solene para tornar conhecidos ao povo os seus pecados. No 2, Deus os acusa de presunção e hipocrisia. No 3, o povo acusa o Senhor de negligência por não ter respondido positivamente às suas práticas religiosas. Do final do 3 até o fim do capítulo, Deus expõe a real intenção por trás do Dia da Expiação ao desenhar os temas de justiça social e compaixão do ano do Jubileu, e o propósito do Dia da Expiação e do sábado semanal como ocasiões para amar o próximo (BERGLAND, 2018).

O jejum, não apenas no Dia da Expiação, mas em qualquer oportunidade em que praticado, deve ser um sinal sincero de submissão a Deus. Isso não combina com a atitude dos religiosos de Isaías 58 de, enquanto jejuavam, explorar seus trabalhadores (v.3); brigar, lutar e até bater uns nos outros (4); apoiar a injustiça e a opressão dos fracos (6 e 9); negar comida aos famintos (7); não fornecer abrigo aos pobres andarilhos (7); ser indiferentes aos sem-teto nus (7) e falar maliciosamente uns contra os outros (9). Tal jejum se tornaria um ritual exterior sem qualquer benefício (WICKHAM, 2009).

Esse princípio pode ser aplicado a todos os atos de culto: a desobediência às leis de Deus anula a adoração. Isaías 66.3 aplica isso ao sacrifício de animais: “Quem mata um boi é como o que tira a vida a um homem; quem sacrifica um cordeiro é como o que degola um cão; quem oferece uma oblação é como o que oferece sangue de porco; quem queima incenso em memorial é como o que bendiz a um ídolo; também estes escolhem os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações”. Sacrificar animais não tinha valor nenhum se isso não os fazia abandonar seus próprios caminhos e obedecer aos mandamentos do Senhor. Nas palavras de Andrew Wickham, Yahweh não precisa de sacrifícios ou rituais, mas ele escolhe ser adorado dessa forma por pessoas que obedecem à sua palavra.

Essa ideia aparece também em outros profetas do Antigo Testamento. Jeremias 6.19-20, por exemplo, diz: “Ouve tu, ó terra! Eis que eu trarei mal sobre este povo, o próprio fruto dos seus pensamentos; porque não estão atentos às minhas palavras, e rejeitam a minha lei. Para que, pois, me vem o incenso de Sabá e a melhor cana aromática de terras remotas? Vossos holocaustos não me agradam, nem me são suaves os vossos sacrifícios”. “Porque eu quero a misericórdia, e não o sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos” (Oseias 6.6). “Odeio, desprezo as vossas festas, e as vossas assembléias solenes não me exalarão bom cheiro. E ainda que me ofereçais holocaustos, ofertas de alimentos, não me agradarei delas; nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais gordos. Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos; porque não ouvirei as melodias das tuas violas. Corra, porém, o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso” (Amós 5.21-24). Rejeitar a Lei do Senhor anula o culto. Ele se importa mais com nossas vidas e com nossos corações do que com nossa liturgia.

Em Isaías 58.12, lemos que a postura de amar ao próximo verdadeiramente, quando praticada por uma comunidade, pode trazer mudanças estruturais que afetarão as gerações futuras. O primeiro passo para isso é conhecer as pessoas ao seu redor, se envolver com elas. Não é possível libertar vidas, fazer justiça ou alimentar os famintos se não estamos vendo os oprimidos, injustiçados e miseráveis. Alguns necessitados podem ser óbvios, mas podemos ter perto de nós pessoas que precisam de ajuda em níveis que demandam um relacionamento mais profundo para que possamos curar suas feridas. Nas palavras de Scott Rawlings (2020), somente quando alguém entende sua vizinhança é que ele pode começar a atender às necessidades das pessoas próximas e criar oportunidades de proclamar e demonstrar o Evangelho.

Não é à toa que Jesus falou do Seu povo muito, muito, muito mais em termos de um Reino do que de uma Assembleia (Igreja). Se reunir é muito importante, mas viver Jesus no dia a dia é mais ainda. Um povo que edifica as antigas ruínas, levanta os fundamentos, repara roturas e restaura veredas é um povo missionário, que busca consertar aquilo que o pecado destruiu. Deixar de fazer sua própria vontade para fazer a do Senhor é se envolver na missão de Deus no mundo, abandonando suas próprias necessidades e preferências para atender as preferências Dele. O povo de Deus adoece quando se volta para si mesmo, mas experimenta cura para si e para os outros quando se volta para a vontade divina.

Uma das maneiras que essa cura se manifesta é no fim de toda desunião. Nas palavras da Confissão de Belhar (1982), separação, inimizade e ódio entre pessoas e grupos é um pecado que Cristo já conquistou, de modo que qualquer coisa que ameace a unidade não pode ter lugar na Igreja e deve ser resistida (João 17.20-23). A recusa a buscar fervorosamente essa unidade visível é pecado.

A Palavra e o Espírito vivificantes de Deus derrotaram os poderes do pecado e da morte e, portanto, também de irreconciliação, ódio, amargura e inimizade, de modo que a Palavra e o Espírito vivificantes capacitarão a Igreja a viver em obediência que abre novas possibilidades de vida (Ef 4: 17-6: 23, Rom. 6; Col. 1: 9-14; Col. 2: 13-19; Col. 3: 1-4: 6). A credibilidade da mensagem do Evangelho é seriamente afetada quando proclamada em uma terra que professa ser cristã, mas na qual a separação forçada de pessoas em uma base racial, social ou de qualquer outra natureza promove e perpetua a alienação, o ódio e a inimizade.

Em Isaías 58 lemos sobre uma justiça que não é sacrificial ou penal, mas compassiva. Nesse sentido, devemos ser “um povo que pratica justiça” e busca os “direitos da justiça” (v.2), de modo que, consequentemente, a justiça “irá adiante” (8) de nós. Nas palavras de Nico Koopman (2008), devemos buscar a restauração da dignidade humana no mundo, mais do que de casas e cidades (mas às vezes incluindo isso!), indo, portanto, contra as ideologias mundanas, inclusive contra parte do mercado global que incentiva individualismo, consumismo, fragmentação e ruptura da coesão e solidariedade. É uma justiça que cuida dos injustiçados, marginalizados e silenciados. É buscar aliviar toda forma de sofrimento.

Koopman relembra que o ofício triplo de Cristo é retratado por João Calvino como a missão de unir o mundo com Deus, nos tornar um com Ele e uns com os outros. Essa comunhão “é como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla das suas vestes. Como o orvalho de Hermom, e como o que desce sobre os montes de Sião, porque ali o Senhor ordena a bênção e a vida para sempre” (Salmo 133).

BERGLAND, Kenneth. Reading as a Disclosure of the Thoughts of the Heart: Proto-Halakhic Reuse and Appropriation between Torah and the Prophets. 2018. Disponível em: <https://digitalcommons.andrews.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2926&context=dissertations>.

KOOPMAN, Nico. On violence, the Belhar Confession and human dignity. Stellenbosch Theological Journal, v. 49, n. 3-4, p. 159-166, 2008.

NORRIS, Patrick Headen. A Missional Resurgence: Helping Bridges Church Rediscover Her Missional Purpose Resulting in Vibrant Growth. 2021. Disponível em: <https://digitalcommons.liberty.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3857&context=doctoral>.

RAWLINGS, Scott. Missionally Engaging Our Neighbors: Equipping Christians to Reach Their Neighbors for Christ. 2020. Tese de Doutorado. Asbury Theological Seminary. Disponível em: <https://place.asburyseminary.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2478&context=ecommonsatsdissertations>.

THE BELHAR CONFESSION. Reformed Church in America. 1982. Disponível em: <https://www.rca.org/about/theology/creeds-and-confessions/the-belhar-confession/>.

WICKHAM, Andrew Daniel. The offering aspect of Israel's cultic observance in the book of Malachi. 2009. Tese de Doutorado. Disponível em: <http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.866.6444&rep=rep1&type=pdf>