Pedofilia na Igreja Católica espanhola: "Na Espanha, ninguém faz nada".

De acordo com o jornal espanhol “El País”, depois que os jesuítas admitiram casos de pedofilia, outras ordens religiosas têm seguido seu modelo, totalizando um número de 126 padres e mais de 500 vítimas. Mais casos de abusos de crianças por parte de sacerdotes da Igreja Católica na Espanha estão vindo lentamente à luz. Depois da Companhia de Jesus, conhecida como os Jesuítas, reconhecer 81 vítimas desde 1927 e anunciar planos de compensação, outras congregações religiosas têm começado a seguir o exemplo. El País falou com dez das principais ordens católicas na Espanha, das quais sete disseram que têm conduzido ou estão investigando casos passados de abusos e que estão igualmente abertas a compensar as vítimas.

O reconhecimento, por parte dos Jesuítas, dos casos de pedofilia, dando início ao mesmo procedimento por parte de outras ordens religiosas, tem exposto uma grave ferida da Igreja Católica na Espanha. Entretanto, as investigações ainda não têm se aprofundado, limitando-se a simples revisões de arquivos. O estudo e a investigação que foram feitos na Espanha ainda estão longe de se aprofundar no estudo dos casos de pedofilia e abuso de menores como tem ocorrido em outros países, como a Alemanha, onde uma auditoria descobriu que 3.677 menores tinham sido abusados por membros da Igreja.

Das dez ordens consultadas, três – Os irmãos Marianistas, Os irmãos de la Salle e a Ordem de Santo Agostinho, - continuam a se recusar a investigar as alegações de abuso. As sete remanescentes têm admitido 61 casos de padres pedófilos, 42 dos quais eram desconhecidos até agora. Se este número for adicionado aos descobertos pelo inquérito dos Jesuítas – 65 casos, 54 deles desconhecidos até então, de acordo com as estimativas de El País – as ordens Católicas têm admitido 126 casos de padres pedófilos. Destes, 96 permaneceram na obscuridade até agora. Os casos elevam o número de vítimas da Igreja Católica Espanhola para mais de 500, segundo contagem de El País, baseando-se em sentenças criminais, reportagens da mídia e investigações dos próprios jornais.

O número crescente de admissão de casos de pedofilia na Igreja apenas nos leva a concluir que estamos na “ponta do iceberg”, isto é, que ainda há muito mais a ser desvendado acerca de um problema sobre o qual sempre se falou, mas que também sobre o qual pouco tem sido feito: a pedofilia e o abuso sexual de menores cometido por padres em todo o mundo. Por causa da questão do celibato, costumamos ter a imagem dos padres católicos como pessoas que estão acima das paixões mundanas e dos apelos da carne, capazes de resistir às tentações. Esses casos que estão vindo à tona nos mostram que vários padres estão bem longe de corresponder a esse ideal.

Faz-se necessário que as autoridades maiores da Igreja Católica não apenas façam uma investigação profunda, mas que também punam exemplarmente os envolvidos, principalmente porque sempre se comentou que, quando um padre abusava de algum menor, como um coroinha, por exemplo, os seus superiores nada faziam além de mudá-lo de lugar para evitar falatórios. E nenhuma justiça era feita às vítimas. Muitos são os adultos que foram abusados por padres que dizem como tiveram suas vidas arruinadas não apenas por causa dos abusos sofridos como também por causa do descaso por parte de quem nada fez para punir os padres pedófilos.

Estas investigações são apenas o primeiro passo para descobrir a verdade. A Igreja Católica da Espanha permaneceu silenciosa a respeito dos abusos de crianças até 2018 e temos de admitir que ainda há muito mais a ser apurado a respeito de um assunto sério que não pode mais ser tratado com omissão e descaso. A Conferência Episcopal Espanhola, ao contrário de outras instituições católicas em outros países, se recusa a investigar o passado e considerar possíveis compensações para as vítimas. Lembramos que a Igreja espanhola foi uma das principais ferramentas do poder fascista durante a ditadura e que o próprio Francisco Franco definiu o clero como sendo a “sexta coluna” do regime dentro da Espanha. O “Caudillo” foi apoiado pelo clero católico a todos os níveis seja durante e depois da Guerra Civil, quando todos os párocos da Espanha entregavam à polícia a lista dos paroquianos que não frequentavam as missas. Muitos cidadãos foram fuzilados com base nessas listas!

Falar em compensações é fácil porque, se refletirmos bem, não há nada que possa compensar pessoas que foram abusadas em tenra idade e tiveram sua inocência roubada de forma brutal, sem ter a quem recorrer. Muitos desses jovens, ao buscar ajuda, foram tratados com indiferença. Houve mesmo quem dissesse que era calúnia e difamação contra os padres abusadores.

Diz-se que, na Espanha, ninguém faz nada. Ninguém está interessado em tomar uma providência, nem a Igreja, nem o Estado, segundo Juan Ignácio Cortés, autor do livro “Pedofilia na Igreja Católica Espanhola”. E realmente precisamos admitir que as investigações para apurar os fatos têm sido feitas a passos lentos, visto que há muitos interesses em jogo.

Dois anos se passaram desde que o Papa Francisco levantou a questão da pedofilia na Conferência do Vaticano em Fevereiro de 2019, e a Igreja Católica Espanhola tem feito muito pouco a respeito do problema. Por ordens do Papa, a Igreja abriu escritórios para prestar assistência às vítimas em cada diocese. Em Outubro de 2018, uma comissão que investigava pedofilia foi forçada a atualizar os protocolos anacrônicos da Igreja, mas, dois anos depois, não houve notícias de progressos. A Conferência Episcopal da Espanha, por sua parte, tem se recusado a responder a questionamentos feitos por El País.

Último novembro, o porta-voz dos bispos, Luis Argüello, disse que eles tinham recebido poucos ou nenhum caso de abuso. A resposta de 70 dioceses espanholas bem sido lenta e nada transparente. Com exceção de poucos casos, bispos se recusam a tornar públicos os números de casos que têm sido reportados.

Percebemos que a Igreja não está tratando o problema da pedofilia com a transparência devida e, enquanto a Igreja nada faz, crianças têm sua inocência roubada. Juan Cuatrecasas, presidente da associação Crianças Roubadas, a primeira associação para vítimas de abuso, acredita que, apesar das ordens expressas do Papa, algumas ordens não têm feito quase nada para compensar as vítimas. Segundo as queixas, diz-se que as ordens dizem que ajudam as vítimas, mas não têm publicado nenhum caso e não têm contatado a associação, segundo queixa de Cuatrecasas, pai de uma vítima de abusos.

Gemma Varona, criminologista da Universidade do País Basco, argumenta que é preciso que se façam estudos mais aprofundados. De acordo com Varona, o recente inquérito Jesuíta é “incompleto e muito questionável em sua metodologia”. “As reportagens devem ser para as vítimas, que são os que mais precisam delas, e é por isso que elas devem ser transparentes e bem conduzidas”, diz Varona. “Você deve fazer essas perguntas: por que as vítimas não reportam os casos? Por que elas não ousam fazê-lo? Esta é a razão pela qual o número é tão baixo.”

Uma explicação razoável para as vítimas não reportarem os casos é o sentimento de culpa e vergonha que costuma acometer quem sofre qualquer tipo de violência sexual. No caso de abusos cometidos por padres, há o agravante de eles serem figuras que representam autoridade. Ninguém quer acreditar que um padre seja capaz de cometer um ato dessa natureza. Preferimos pensar nos padres como figuras paternais e bondosas que representam Deus na terra. Entretanto, a realidade está muito longe de corresponder a essa imagem que se insiste em ter dos padres.

Outro fator que pode contribuir para que poucos casos sejam reportados é que os superiores, isto é, os bispos, prefiram fingir que nada aconteceu e o resultado é que muitas vítimas acabam desacreditadas. Ainda há os fanáticos religiosos que insistem em não ver os crimes cometidos pela Igreja Católica e afirmam que essas denúncias de abusos são tentativas de denegrir a imagem da Igreja para desacreditá-la. Entretanto, a querer impor o “segredo pontifício” sobre os delitos cometidos pelos religiosos, foi o chefe da Congregação pela doutrina da fé (ex Santo Ofício) liderada pelo então cardeal Ratzinger (em seguida, papa Bento XVI). Ele, com uma circular enviada aso bispos de todo o mundo aos 18 de maio de 2001, obrigou ao silêncio quem chegasse ao conhecimento desses fatos revelando, também, que o autor ideal dessa diretiva havia sido o papa João Paulo II.

Hoje não podemos mais fechar os olhos para a realidade, persistindo em acreditar em belas mentiras. Uma história que pode mostrar bem como o abuso sexual cometido contra menores deixa marcas indeléveis é o caso de Javier Paz, vítima de abuso em Salamanca, que lança uma luz sobre o porquê de tantas vítimas não reportarem os crimes para a Igreja Católica. Ele reportou o abuso de que fora vítima em 2011, mas a Igreja Católica, em vez de ajudá-lo, tentou mantê-lo em silêncio por aproximadamente uma década. No fim, ele se tornou uma das primeiras vítimas a tornar pública sua história, contando-a a televisão. Paz afirma que a Igreja roubou nove anos de sua vida e que o processo canônico foi apenas um show para enganá-lo e mantê-lo em silêncio. De acordo com Paz, a Igreja ainda o acusou de só querer dinheiro, humilhando-o. Isso o levou a ir até à televisão para tornar pública sua história. Porém, segundo ele, a ferida nunca será curada.

O abuso sexual sofrido na infância ou adolescência é uma ferida que nunca cicatrizará, principalmente quando parte de quem é alguém em quem a vítima confia, como um parente, professor, amigo da família ou padre. Não são poucos os padres que cometem tais abusos valendo-se da autoridade de que dispõem e, como qualquer abusador, eles utilizam ameaças e intimidação para que a vítima fique em silêncio.

Devemos ficar em alerta porque a história dos abusos que estão sendo investigados apenas nos revela que a Igreja Católica – não apenas a da Espanha, mas a de vários países – tem muitos segredos sujos encobertos.

https://brasil.elpais.com/internacional/2021-02-01/ordens-religiosas-reconhecem-centenas-de-abusos-e-escancaram-ferida-da-igreja-catolica-na-espanha.html