Desconstruindo argumentos sem consistência
Há algum tempo, quando eu escrevi meu texto “Não faz a menor diferença”, eu tinha a intenção de mostrar que a crença ou descrença ou Deus não influi no caráter de uma pessoa, visto que nós, por experiência, pudemos ver que tanto há pessoas religiosas de bom ou mau-caráter quanto ateias de bom ou mau-caráter. Entretanto, houve quem rebateu meu texto dizendo que faz sim diferença, acrescentando que faltariam aos ateus os princípios morais sólidos do cristianismo e que, segundo o reacionário Padre Duvivier, dava-se para desconfiar da honradez dos ateus porque ela seria apenas de fachada. Analisando esses dizeres, podemos afirmar que eles não têm consistência. Em primeiro lugar, se realmente houvesse diferença, não encontraríamos pessoas que se dizem cristãs – tanto faz serem católicas ou protestantes – de mau-caráter. Em segundo lugar, a partir de que base Duvivier afirma que a honradez dos ateus é apenas de fachada e eles são decentes por conveniência social? Ele fez algum estudo sério para poder dizer isso com tanta certeza? Outro argumento sem consistência é o de dizer que faltam ao ateu os princípios morais sólidos do cristianismo, sugerindo que seja a única religião com princípios morais. Antes do cristianismo, outras religiões tiveram e/ou têm princípios morais, como o budismo, o hinduísmo e o confucionismo.
Entre os que atacam o ateísmo, há os que dizem que é dogmático, reforçando que os ateus são arrogantes e se julgam donos da verdade. Entretanto, antes de concordar ou discordar de tal afirmação, vamos entender o que é dogma. Pela teologia, dogma é o centro fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e irrefutável. Também se admite que dogma seja uma doutrina (filosófica ou política) considerada indiscutível. Então, podemos dizer que o ateísmo é dogmático? Não. O ateísmo não é dogmático, até porque não é uma religião nem uma filosofia ou doutrina política. É uma questão de ponto de vista. Os ateus, basicamente, não creem em divindades por falta de prova, ao passo que os agnósticos duvidam tanto por falta de provas quanto por analisar os princípios religiosos. Assim, não podemos dizer que ateus ou agnósticos são dogmáticos, porque eles não seguem doutrinas como verdades absolutas, mas analisam e discutem, passando a duvidar ou descrer por não encontrar evidências ou fundamento.
Existem sim ateus arrogantes. Eles se julgam intelectualmente superiores, dizendo que os crentes acreditam em contos de fadas. Porém, não dá para esquecermos que existem muitos religiosos bastante arrogantes, que se aferram aos dogmas de suas religiões como verdades absolutas e tentam impor suas crenças, considerando os que pensam de forma diferente como se fossem infiéis ou até mesmo “servos do diabo”. Vários evangélicos radicais depredam terreiros de umbanda e candomblé e dizem que os ateus são pessoas sem princípios morais que um dia sofrerão por não ter reconhecido Jesus como o único Salvador.
Dizer que os ateus são decentes por conveniência social é uma afirmação preconceituosa e um achismo, assim como afirmar que o ateísmo, por não crer em algo transcendente, levaria as pessoas a um estado em que elas terminariam se suicidando. Mais uma vez: a partir de que base, que estudo, alguém pode fazer tal tipo de afirmação? Pode-se contestar quem afirma isso usando os argumentos de Phil Zuckerman, sociólogo norte-americano que pesquisou muitos dos países menos religiosos que existem, entre eles os escandinavos, o Japão e tantos outros onde o ateísmo tem crescido. Zuckerman, em seu livro Sociedades sem Deus- o que as nações menos religiosas podem nos dizer a respeito de satisfação, contraria os que afirmam que uma sociedade sem religião iria fatalmente cair na imoralidade e destruição. As pesquisas de Zuckerman constataram que, nessas nações, praticamente não há crimes, pobreza, analfabetismo e tantos outros problemas. E que muitas das pessoas entrevistadas na pesquisa se diziam satisfeitas com suas vidas.
Em uma palestra, Zuckerman – que ainda diz que não podemos considerar ditaduras comunistas como a China e a Coreia do Norte como exemplos – fala sobre os grupos mais religiosos e os menos religiosos nos Estados Unidos. Ele observa que os grupos mais religiosos, que são os afro-americanos, apresentam problemas como gravidez na adolescência, criminalidade e pobreza e que nos grupos seculares, como os judeus e os asiáticos americanos, as pessoas tinham melhores perspectivas de vida. O sociólogo também aponta para outros aspectos, lembrando que os mais religiosos são a favor de ter armas, da pena de morte e de guerras, ao passo que os menos religiosos são contra pena de morte, por exemplo. E Zuckerman, em uma de suas palestras, salientou que, na África do Sul, os mais religiosos eram a favor do apartheid. Isso prova que Deus não existe e que a razão está com o ateísmo? Obviamente, não. Até porque não se pode provar a existência de uma divindade a partir de debates. Porém, isso reforça o que afirmamos: que não dá para usar a crença em divindades como único parâmetro para se julgar o caráter de ninguém.
Infelizmente, muitos se recusam a ver a verdade e inclusive, quando tentamos fazê-los enxergar os fatos, eles continuam querendo que o mundo seja conforme eles acreditam. Se lhes mostrarmos casos de pessoas que se dizem cristãs e são de mau-caráter, dirão que é porque “não são verdadeiros cristãos”. Tal argumento não passa de uma falácia. É a falácia do “verdadeiro escocês” que, basicamente é assim: uma pessoa diz que escoceses não põem açúcar no mingau mas aí outra pessoa rebate: “Eu sou escocês e coloco açúcar no meu mingau”. E qual a resposta que vem em seguida? A resposta é: “É porque você não é um verdadeiro escocês.” Esta falácia do escocês de verdade é muito usada por aqueles que insistem em associar a crença em uma divindade a ter ou não um bom caráter, levando a conversa para um círculo interminável. É o mesmo que alguém dizer que todos os cisnes são brancos e, se você disser que viu um cisne negro, a pessoa dirá que não é um cisne verdadeiro.
Quando se procura mostrar a realidade aos cristãos mais fanáticos, explicando por exemplo que há muitos sacerdotes pedófilos, eles prontamente respondem: “Aquele padre não era um cristão de verdade” e essa resposta é dada para qualquer outro comportamento errado, ou seja, quem comete pecado não é cristão. Esses senhores esquecem até a palavra de Cristo quando disse “Ninguém é bom, senão um, que é Deus!” (Lucas 18,19). Portanto, considerado que todos somos pecadores, aplicando essa lógica chegaríamos à conclusão que ninguém é cristão, nem o próprio Papa!
Insistindo: se a crença realmente influísse no caráter de uma pessoa, só encontraríamos – nas igrejas ou templos – pessoas equilibradas, justas e bondosas. Mas, tanto nas missas quanto nos cultos evangélicos, encontramos pessoas maledicentes, desequilibradas, vaidosas e hipócritas, que usam a religião como se fosse um distintivo para parecer melhores do que as outras. E todos os ateus seriam pessoas arrogantes e de péssimo caráter. Outro argumento inválido que diz que a crença influi no caráter de uma pessoa sustenta que pode haver ateus bons porque Deus planta em todos os gérmens da bondade, mas que os ateus, mesmo bons, não podem se elevar porque não buscam a santidade. Entretanto, como explicar que Deus plante semente de bondade em ateus e não as plante em tantos cristãos, considerando que há cristãos de mau-caráter?
Falando sobre mais argumentos sem fundamento, lembremo-nos de quem tenta minimizar o regime de terror que a Igreja instaurou com a Inquisição, dizendo que ninguém matou mais do que o ateísmo. De fato, não podemos negar que uns regimes comunistas, tanto o de Stalin como de outros, ceifaram um enorme número de vidas humanas. Mas isso não torna menos grave o fato de que a Inquisição estabeleceu um regime de terror, no qual pessoas viviam com medo de ser denunciadas e bastava qualquer suspeita para ser preso por heresia, torturado e morto. Tentar negar o horror da Inquisição falando das mortes provocadas pelas ditaduras comunistas é dizer que uma pessoa é menos assassina que outra porque matou apenas vinte pessoas enquanto a outra matou cem.
Temos de evitar qualquer negacionismo, admitir essas manchas na história da humanidade para aprender com o passado e inclusive evitar repetir esses erros. E, se uma pessoa não deve ser ateia porque as ditaduras comunistas mataram tanta gente, então os cristãos deveriam deixar de acreditar em Deus por causa da Inquisição?
Vamos admitir que ninguém é melhor ou pior por causa da crença ou descrença em divindades e, principalmente, respeitar as pessoas em suas totalidades, não tentando obriga-las a acreditar – ou deixar de acreditar – como se aquilo que acreditássemos fosse uma verdade absoluta. Eu ainda lembro de quando um rapaz perguntou por que eu não queria ser missionária e eu rebati que não queria fazer a cabeça de ninguém, mas ele falou que pregar o cristianismo era ensinar a verdade, não fazer a cabeça dos outros. Entretanto, vale salientar que verdade é algo que sabemos, não algo em que acreditamos. Verdade é, principalmente, uma coisa que pode ser comprovada. E, mesmo que algo seja verdade, não temos o direito de obrigar ninguém a aceitar, assim como já afirmou José Saramago ao dizer que tentar convencer os outros é um desrespeito, é uma forma de tentar colonizar a mente da outra pessoa.